Durante boa parte do concerto de Olivia Rodrigo, duas fãs filmavam incansavelmente e, aqui e ali, surpreendiam ao virar num gesto repentino e suave a câmara para as próprias enquanto gesticulavam e cantavam as letras com convicção. Para consumo próprio ou para o TikTok, pouco interessa, o que importa é que se olhava em volta e o comportamento repetia-se, às dezenas. Nem sempre com o mesmo nível de mestria no foco e no ângulo, mas sempre cantando e gesticulando para a câmara, registando um momento — ou vários — para a posteridade e, mais importante, procurando guardar uma certa cumplicidade com a cantora filipino-americana de 21 anos.

A singularidade de Olivia Rodrigo neste preciso momento — e o preciso pode ser agora, ou desde que surgiu em 2021 com Driver’s Licence — passa pela forma como une quem a ouve através de um sentimento de revolta associado à perda. Por regra, uma perda que tem a ver com relações. A revolta assume diversas formas, muitas vezes em autoanálise e no assumir de erros que se repetem, uma repetição associada à noção de que o que está a acontecer é inevitável.

O amor adolescente e pós-adolescente é uma montanha-russa nas canções de Olivia Rodrigo e deixa quase uma sensação de universo monotemático — é só uma sensação, porque nem todas as canções são sobre isso — como se ela estivesse sempre a tentar exorcizar o mesmo demónio mas por caminhos diferentes. E esta ideia é importante: tentar o mesmo de diversas maneiras, conseguir aludir a um sem número de situações que podem, na verdade, ser a mesma. É essa multiplicidade de cenários que torna a sua música tão relacional, tão objetiva para um público adolescente como apaixonante para outras gerações. Olivia Rodrigo apresenta-se como a estrela pop-punk que faltava, sem rodriguinhos, sem infantilidades, com palavrões e em linha para quem se quer olhar a um espelho ou gravar-se com a ajuda de uma câmara e dizer umas quantas palavras de ordem. No fundo, é quase terapia.

Por isso, quando chega ao palco para dar início à sua estreia em Portugal e começa a lançar os primeiros versos de Bad Idea Right?, é impossível ouvi-la. Uma MEO Arena esgotada — a segunda data em Lisboa, este domingo, também já não tem bilhetes — começa a cantar em uníssono todas as letras, muito alto, abafando por completo a cantora. É um momento decisivo para muita gente — sobretudo adolescentes — que está a acontecer ali. E é extraordinário testemunhar este momento único na vida de quem segue uma estrela pop que é partilhar o mesmo espaço pela primeira vez.

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Eram sensivelmente 20h30 e a próxima hora e meia seria intensa, ruidosa e uma espécie de catarse coletiva. Antes houve Remi Wolf, com a ingrata tarefa de fazer a primeira parte, com uma sala a meia-luz, que transmitia aquela sensação de que o que importa ainda não está a acontecer e o som de palco parece ruído de uma feira de produtos de eletrónica, para onde volta e meia se viram atenções: sem culpa de Remi Wolf, mas é ingrato ter um espectáculo a acontecer neste meio-termo entre a esperar e procurar-se razões para se ficar ligado, enquanto o ambiente da sala nos informa que estaríamos melhor junto ao bar.

O gesto comunal continua por mais algumas canções — a solução era juntarmo-nos, sabendo as letras, para nos sentirmos como parte daquela onda sonora — e em simultâneo a temperatura na MEO Arena começa a subir. O inevitável calor humano toma controlo. E a música de Olivia Rodrigo contempla esse momento na perfeição.

Se Taylor Swift demorou mais de década e meia a fazer a estreia em Portugal e, assim, falhando “aquele” ponto na vida de uma série de fãs, Olivia Rodrigo estreia-se por cá no momento certo, com uma digressão que explora em (quase) igual medida os seus dois álbuns editados até agora, Sour (2021) e Guts (2023). Com duas datas esgotadas e milhares de fãs que sabem partilhar este seu estado e viver com ela o momento, que percebem perfeitamente porque é que se apresenta como se fosse uma princesa da Disney vestida à cheerleader punk e com uma pose de furacão.

Em parte, porque Olivia Rodrigo é isso tudo. A sua música acarreta esses sentimentos e imagéticas todas misturadas e potenciadas por ideias que exploram vários domínios do rock: ouve-se Driver’s Licence e pensa-se em Arcade Fire, canções como Brutal ou Deja Vu cumprem aquilo que Avril Lavigne deixou por fazer ou Traitor ou So American sentem-se como uma Taylor Swift desembaraçada de tudo o que ainda está por vir.

Por outro lado, é a forma como se veste – Dr. Martens calçadas durante todo o concerto —, como se mexe e como canta aquelas canções como algo tão definitivo, potente e imprevisível. Tem 21 anos e tem essa energia. As canções de Guts existem nesse lugar e é especial ouvi-las ao vivo e perceber que não só dão mais certezas à Olivia Rodrigo de Sour, como são a concretização de alguém que se está a ver em ascensão, contrariando as fórmulas mais clássicas de outras cantoras pop, como Olivia, que saíram de programas da Disney.

Mas esse imaginário está lá, faz parte. E domina um dos momentos mais marcantes do espectáculo, quando Rodrigo se senta numa lua e esta levanta-se, fazendo um circuito sobre a plateia que dura duas canções: LogicalEnough For You (apresentada como a sua canção favorita de Sour). Canta em cima de uma lua, mas não faz serenata, o tom é sempre o mesmo, entre a mais pura confissão e o sonho da adolescência que ficou por concretizar, numa ideia de magia/fantasia, entre estrelas que vão subindo e descendo à sua volta conforme passa. O público está em delírio durante esse segmento do espetáculo. Não é para menos, quantas vezes se vê a estrela pop favorita a passar a escassos metros acima de nós?

Por esta altura, já se está para lá do meio do concerto, já se viu umas quantas pessoas a serem transportadas para fora do recinto, uma saída forçada pelo calor ou pela emoção, já ficou óbvio que mesmo quando a atitude ou as guitarras abrandam, o ambiente é quente, o público está excitado e incrédulo por ter ali à sua frente uma estrela em ascensão, que consegue comunicar com uma audiência mais nova pelo poder comunicacional e atingir uma mais velha pela nostalgia rock, sem que esteja mastigado, só empoderado para o presente.

A Guts Tour tem um alinhamento de quem sabe o que está a fazer. Sem receio de ter duas das suas canções mais conhecidas logo entre as primeiras cinco — VampireDriver’s Licence —, como se fosse uma provocação, mas também uma prova de que há todo um percurso que justifica aquelas canções estarem ali. E isso confirma-se no poderoso trio final: Brutal (maravilha ao vivo), Obsessed e All-American Bitch. Ou aliás: falso final, Olivia Rodrigo ainda regressou para um encore com duas canções, Good 4 You e Get Him Back!, que arredondam toda aquela sensação de êxtase coletivo de um final em falso. Ao mesmo tempo, mesmo quem tenha dúvidas as esclarece rapidamente: a atitude, o lado meticuloso das canções, as referências, a eficácia e o profissionalismo mostram que esta música não é infantil e se qualquer adulto adiantado nas décadas se sentir referenciado nas canções de Olivia Rodrigo, é porque há emoções universais e atemporais que a música consegue estimular como nenhuma outra arte. E miss Olivia e sua equipa sabem bem disso.