Em fins de março, poucos dias após Yayoi Kusama fazer 95 anos, chegava ao Museu de Serralves, no Porto, a primeira grande exposição da artista plástica e escritora japonesa em Portugal. Yayoi Kusama: 1945-Hoje é o nome dessa mostra retrospetiva que se vai desenrolando em núcleos. Infinito, acumulação, conectividade radical, biocósmico, morte e força de vida são temas fortes de um percurso influenciado por acontecimentos intensos à escala planetária e pelo próprio mundo interior da autora, a braços com a doença mental desde miúda.
Na visita de apresentação aos jornalistas, em março, falou-se de alucinações, depressão e transtorno obsessivo-compulsivo — este último evidente nos padrões repetitivos, de pontos e bolinhas, tão associados ao seu trabalho. Outra marca distintiva são as cores garridas por trás das quais se adivinha um lado sombrio, a morte a que, apesar de tudo, se sobrepõe a vida (muito graças à criação artística, com os seus poderes curativos). Há décadas, Kusama deu entrada num hospital psiquiátrico, em Tóquio, e lá vive até à data, com o estúdio ao lado.
Algumas das peças em exibição são bem recentes, nasceram no pós-pandemia. Yayoi Kusama: 1945-Hoje foi criada e organizada pelo M+, de Hong Kong, em colaboração com a Fundação de Serralves e o Museu Guggenheim de Bilbao. A curadoria coube a Doryun Chong e Mika Yoshitake, com a colaboração de Isabella Tam, e a apresentação em Serralves teve o apoio da curadora Filipa Loureiro.
Aquando da inauguração, no Porto, já muito havia para admirar: obras e mais obras cruzando desenho, pintura, colagem, escultura, instalação, fazendo uso de telas e têxteis como de peças de mobiliário, luvas ou manequins de loja. Algumas exibidas pela primeira vez fora da Ásia. Mas faltavam ainda alguns trabalhos de maior dimensão, a instalar no Parque de Serralves: Pumpkin [Abóbora], três esculturas gigantes das famosas abóboras de Kusama (com equivalentes mais pequenas no museu); e Narcissus Garden [Jardim de Narciso], pensada para o lago.
Ora, aquelas obras já podem ser visitadas, a exposição está completa, enfim, e esse jogo entre interior e exterior é uma novidade nos cerca de dois anos de itinerância que a exposição já leva. “Em Hong Kong, as abóboras estavam no espaço interior; em Bilbao, não estava nenhuma destas obras”, sublinha Filipa Loureiro. “Esta simbiose que a exposição apresenta, entre o interior do museu e o jardim, é única.”
Uma viagem atribulada que pode dar em prolongamento
As referidas abóboras, amarelas com bolinhas pretas, que se encontram no Pátio do Ulmeiro, chegaram a Serralves em finais de abril, e só um mês depois foi a vez de Narcissus Garden. Trata-se de um conjunto de 1200 esferas em aço inoxidável que flutuam na água e se vão movendo ao sabor do vento, da chuva e das brincadeiras dos patos residentes, conta Filipa Loureiro, com um sorriso. A equipa já testemunhou a curiosa convivência desses animais com as bolas espelhadas e ocas, de ar pesado, mas cada uma com perto de 500 gramas, menos do que um pacote de arroz, observa. Acresce que, quando colidem entre si, produzem uma melodia apaziguadora – há que estar atento para desfrutar de mais essa camada.
Se as peças agora no Parque chegaram mais tarde do que o previsto foi devido a circunstâncias externas, como a guerra e as movimentações no Mar Vermelho, pois saíram do Japão e de Hong Kong, em contentores marítimos, em fins do ano passado, segundo Filipa Loureiro. “Houve paragens, desvios de rotas, as obras foram chegando aos bocadinhos e, portanto, só foi possível ir abrindo esta exposição em fases”, explica a curadora, desejosa de que a mesma possa permanecer em Serralves para lá do fim anunciado: 29 de setembro.
“Estamos em negociações com a galeria e com o estúdio da artista, e esperamos que sejam recetivos [face] a estes contratempos que tivemos; e também ao facto de a exposição estar a receber um grande número de público, estar a suscitar imensa curiosidade e ser uma mais-valia”, refere a curadora, surpreendida com a atração dos mais novos pelo trabalho da artista, do pré-escolar aos alunos do secundário.
A intenção é prolongar a estadia pelo menos das obras no exterior e do infinity room que ocupa uma sala com aproximadamente 400 metros quadrados. Chama-se Dots obsession — Aspiring to Heaven’s Love, essa instalação com vidro espelhado, balões de vinil suspensos e bolinhas. Uma experiência imersiva que atinge o auge quando se entra (por tempo limitado) numa caixa de espelhos.
Existe ainda a vontade de ver as peças coexistir com outras atividades que decorrem em Serralves e seduzem diferentes públicos. É o caso do Greenfest, que se realiza já a partir desta sexta-feira e até domingo; do Serralves em Luz, que arranca no próximo dia 4; ou da mais longínqua Festa de Outono, que seria “uma espécie de habitat natural para as Pumpkins”, graceja.
Abóboras que brilham, esferas que provocam
Mas, afinal, que abóboras são aquelas? As que vemos lá fora ainda são frescas, de 2022: foram criadas para uma exposição de Kusama que marcou a reabertura do museu de Hong Kong depois da pandemia. Já o tema é recorrente. Desde os anos 1960 que a autora vem criando abóboras tão diversas como as pessoas, de aspeto semelhante, mas cheias de especificidades. E isto de olho numa memória distante, do tempo em que vivia com a família rente ao cultivo dos campos, segundo a curadora: “Ela recorda-se ter visto uma abóbora muito pequena, que lhe causou alguma curiosidade pela forma como se estava a desenvolver; passados uns dias, essa abóbora apodreceu, e ela começou a observar como há um ciclo de criação e um ciclo de degeneração”. Também isso viria a repercutir-se no seu trabalho, que se relaciona ainda com a ideia de reflexo, de espelho, de brilho.
“Quando recebemos as pumpkins, só tínhamos visto as obras em imagem, e sempre apresentadas em espaços interiores. O que nos causou mais estupefação foi a reflexão que as peças têm. Não fazíamos ideia de que estas abóboras brilhavam e espelhavam tanto”, lembra Filipa Loureiro. O mesmo se passa com Narcissus Garden, “uma provocação, ou um confronto com o eu”. “É uma obra histórica, apresentada pela primeira vez na Bienal de Veneza, pela artista, em 1966. Ela não é convidada para a Bienal, mas apresenta-se no local e ocupa os jardins da Bienal com a peça”, prossegue, acrescentando que já houve atualizações no que toca aos materiais. Isso também se verificou nos infinity rooms: se nos primeiros que apresentou, nos anos 1970, trabalhava com luz elétrica, agora recorre à luz LED. “Há sempre uma procura, e adaptações.”
Kusama nasceu em 22 de março de 1929 numa província rural do Japão, num contexto familiar avesso à sua inclinação para as artes. Ainda assim, persistiu nesse caminho, tendo chegado a mudar-se para os Estados Unidos da América. Misturou expressão artística e ativismo político — por exemplo, contra a Guerra do Vietname. Esteve ao lado dos marginalizados, dos incompreendidos. Fez uso de tudo o que estava à sua volta para criar, fosse observando os ciclos da natureza, na zona montanhosa onde cresceu, ou os padrões que via surgir diante de si. O resultado é um universo artístico único e multidisciplinar, desenvolvido ao longo de sete décadas.