A arte pode sempre ser encarada como um convite à transgressão, significando isso uma qualquer superação, uma libertação, uma insubmissão, ou uma simples emancipação. Essa ideia de autonomia e de reivindicação de independência é o que se deseja ao criar um acontecimento como a FARRA – Festa de Arte em Rede na Região do Alentejo, cuja 1.ª edição acaba de ser inaugurada no passado fim de semana, em Elvas, prolongando-se até 25 de agosto.
Ali, espalhada pela cidade e nos seus espaços mais emblemáticos, mas também mais alternativos, a arte teima em mostrar a sua estranheza para provocar espanto, admiração, incompreensão, alienação, loucura ou sanidade, reflexão ou consciência do mundo, literalmente o que cada um quiser sentir, até repúdio. E será desse desequilíbrio de experiências que se jogará o futuro desta iniciativa e se constituirão as raízes da contemporaneidade artística num Portugal ainda tão carente de acontecimentos como este. Sem este mote, não haverá narrativa a unir os desígnios das 30 exposições que mostram o que as instituições/coleções, mais privadas do que públicas, têm vindo a fazer nas últimas décadas. E sem este mote dificilmente conseguiremos percorrer tantos espaços. É na corrupção de um status quo que só gera indiferença que é preciso prosseguir.
Comecemos no MACE (Museu de Arte Contemporânea de Elvas) para ver Jarra Humana, mais uma apresentação da CACE (Coleção de Arte Contemporânea do Estado), a quarta, depois de Foz Côa, Castelo Branco e Beja. Surpreendidos com o acessório, o supérfluo e o adorno numa distância acentuada para com o essencial na arte e na vida, questionamos o lugar da transgressão. Será que somos nós que transgredimos individualmente, ou será que a transgressão é a da sociedade no seu coletivo, será que transgredir é ser humano, é procurar o essencial?
A resposta que queremos encontrar parece estar numa comédia humana a que Pedro Huet chama Humana Jarra, uma peça de 2021 em chapa de ferro, que coloca o homem no lugar do objeto, e vira ao contrário o acessório e o fundamental, ou numa outra que Luísa Cunha apelida de Inner View, uma obra de 2010, que nos obriga a olhar para dentro e a descobrirmos outra vez a nossa essência, aquela alma que Bruno Zhu desbaratou completamente ao colocar no escaparate artigos de cuidado pessoal, utensílios de cozinha, sabonetes e têxteis…
Olhemos, pois, para dentro de nós e vamos à procura dessa alma. É possível chegar a ela várias vezes. A forma mais fácil de a alcançar é olhando com atenção para o trabalho de Aura Rosenberg, A Storm from Paradise, logo ao lado, no rés do chão de um edifício burguês de estilo art nouveau, ainda na mesma Rua da Cadeia. Onde antigamente se vendia azeite, um vídeo da artista americana recria o arco destruidor da História, chamando para o presente a única hipótese de inventar um futuro diferente e luminoso.
Talvez com tanta intensidade como a curadoria de Ana Antunes e António Albertino para a Coleção AA numa outra casa particular no Largo da Porta do Sol, em ruínas ou em fase de reconstrução, conforme queiramos o copo meio vazio ou meio cheio. A luz recai sobre obras de Francisco Tropa, Miroslaw Balka, Slater Bradley, Danh Vo. Essa esperança pequenina, que às vezes pode duplicar e mesmo triplicar de tamanho, está em trabalhos soltos aqui e ali, nos monumentais espaços de património edificado há séculos em nome de uma defesa nacional, como o Forte de Santa Luzia, o Museu Militar ou o Forte da Graça, e por lá também desaparece amiúde em obras de uma tristeza solene e desnecessária.
Palmas para Helena Almeida, A Experiência do Lugar II, Paulo Nozolino, Madrid (da série Solo), Henrique Pavão, The Ultimate Romance, Jorge Queiroz, A Proposta, Pedro Cabrita Reis e João Pinharanda, Calendário Perpétuo, numa magnífica linha de tinta no Museu de Arqueologia e Etnografia António Tomás Pires, Sandra Baía, Cobrir, para vestir de novo, todo o material do lugar, uma construção têxtil que se impõe no local com a vontade.
Mais pesarosos os restantes muitos trabalhos de artistas de muitas gerações e de inúmeras nacionalidades, se é que interessa dizer quem os fez e em que época, são como o mundo, povoados de vidinhas sem interesse à procura de uma sobrevivência sem brilho, mas não menos merecedores de um ar que vão respirar longe da nossa memória.
Elvas vai crescer em direção ao sol este verão. E não vai fazê-lo só à conta da sua arquitetura militar, que lhe tem valido mais do que tudo, o título de Património da Humanidade. A cidade tem luz e tem arte. E tem também vontade de viver através das coleções de arte que Portugal viu crescer em democracia. Pela mão de António Cachola e da sua filha Ana Cristina, os grandes anfitriões e autores da FARRA, desfilam na cidade os acervos de Peter Meeker, Porto, Coleção Ana Cristina e António Albertino, Coimbra, Coleção Fundação Carmona e Costa, Lisboa, Coleção João Luís Traça, Lisboa, Coleção José Carlos Santana Pinto, Lisboa, Coleção Fundação Leal Rios, Lisboa, Coleção Fundação PLMJ, Lisboa, Coleção Norlinda e José Lima, São João da Madeira, Coleção Marín Gaspar, Alvito, Coleção Maria e Armando Cabral, Lisboa, Coleção Figueiredo Ribeiro, Abrantes, a par com os acervos do Millennium BCP, da Fundação EDP, ou do Estado. É obra.