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"Mãe Coragem": um épico para tempos de guerra nas ruínas do Carmo

Considerada a maior heroína do teatro do século XX, “Mãe Coragem”, de Bertolt Brecht, encenada pelo Teatro do Bairro mostra-se seca, sem ideología e um “aviso assustador” para o futuro próximo.

Maria João Luís é Anna Fierling, ou a "mãe coragem", o papel de sonho para uma grande uma atriz
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Maria João Luís é Anna Fierling, ou a "mãe coragem", o papel de sonho para uma grande uma atriz

Jaime Freitas

Maria João Luís é Anna Fierling, ou a "mãe coragem", o papel de sonho para uma grande uma atriz

Jaime Freitas

“A guerra nunca acaba, torna-se um hábito, e com o tempo todos se acostumam. Dorme-se ao sol, ganha-se dinheiro, fazem-se negócios, ganha-se estatuto”, diz um militar a Anna Fierling, no fim da peça. O desassombro e a indiferença desta frase é total. Quase kafkiano na sua simplicidade. Assim é desde sempre. A caça do homem primitivo deu lugar à guerra, diria Pascal Quignard. A pulsão de morte leva todos os humanos à autodestruição, diria Freud. Brecht é mais direto: “A guerra nunca acaba, só tem intervalos”. É esta a grande ideia que perpassa Mãe Coragem, o grande épico do teatro do século XX, uma obra à qual o tempo deu o estatuto de clássico, e mundo em 2024 deu o estatuto de “urgente”.

Escrita em 1939, face ao avanço do nazismo, a história desta mãe que vende os filhos para sobreviver reinventou o teatro como lugar pedagógico, de conscientização e do assombro, destinado às massas e não às elites cultas. Para celebrar os seus 20 anos de existência, o Teatro do Bairro regressa a esta peça que consagrou atrizes como Anna Shygulla, Liv Ullman, Diana Rigg, Meryl Streep, Eunice Muñoz, Teresa Gafeira e agora Maria João Luís. Um papel que só grandes atrizes podem carregar.

Depois de quatro sessões esgotadas, duas no CCB e duas no Festival de Teatro de Almada, Mãe Coragem e os Seus Filhos, no título original, está a partir desta quarta-feira nas ruínas do Convento do Carmo em Lisboa, onde ficará até 17 de agosto. Esta é apenas a terceira vez que a peça é apresentada em Portugal e o encenador António Pires quis acentuar o caráter “intemporal” do texto, com uma dramaturgia depurada, retirou muitos elementos típicos do teatro brechtiano e optou por um cenário que evoca as obras de Aldo Rossi, o “arquiteto da melancolia” — trocando também as canções de Paul Dassau por poemas de José Saramago, ditos pelos 20 elementos do coro participativo. Traduzida por Ilse Llosa apenas como Mãe Coragem, mostra-se não como teatro “ideológico”, mas como manifestação de um desespero “contra a banalização das imagens da guerra promovida pelas televisões, que só nos podem tornar apáticos ao sofrimento dos outros e conduzem à normalização da guerra”, afirma António Pires, ele próprio um refugiado da guerra civil angolana.

"Mãe Coragem", a mais importante e complexa personagem do teatro moderno

Jaime Freitas

Anna Fierling tem três filhos no começo da guerra dos 30 Anos, que devastou a Europa central no século XVII e foi uma das mais mortíferas da história bastante sanguinária do nosso continente. Brecht inspira-se na obra “Vagabunda Coragem” do escritor  Hans Jakob Grimmelshausen (1621-1676) que viveu essa guerra. Ela é uma sobrevivente da miséria, carrega os filhos e uma carroça, vende vinho, trapos, contrabando, vende qualquer coisa. Venderá também os dois filhos para a guerra. Consigo mantém apenas Kattrin, a filha muda, que a ajuda com a carroça. Ao longo de duas horas acompanhamos a sua travessia sobre os vivos e os mortos, ela é “uma hiena” dirá Brecht, que a inventou como exemplo da falta de escrúpulos e de moral dos que beneficiam com a guerra, mas à qual, ambiguamente, deu também uma humanidade que faz com que, quase um século e muitas guerras depois, o público se identifique e se comova com esta mulher dura.

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“Ela é a mãe. E como tal é a dadora de vida e de morte, desde sempre. Ela carrega os filhos vivos e mortos. Mas também é uma facto de que as mulheres são as principais vítimas da guerra”, diz António Pires, refletindo sobre o facto de sendo a guerra o território por excelência dos homens, nesta peça as personagens que carregam a história são mulheres: Anna Fierling, Kattrin, a criança muda, e a prostituta Yvette Pointier.

A obra, que se estreou em Zurique, em 1941, tinha como protagonista Helene Wiegel, mulher e companheira artística de Bertolt Brecht, é um dos marcos do teatro modernista, com o escritor a usar o método da montagem usado no cinema, da quebra da chamada “terceira cortina”, onde o ator se dirige ao publico integrando-o na história, e os heróis são a antítese dos heróis do teatro grego, são moralmente inferiores, sem ética e sem futuro. Esta é, pois, uma chamada de atenção sobre a guerra como um negócio onde os povos manipulados e acríticos se deixam enredar. Brecht quer que o os espetadores construam um olhar objetivo e frio sobre a realidade e António Pires quer “que as pessoas vejam menos televisão e vão mais ao teatro”, um lugar “onde podem construir as suas próprias imagens mentais, perceber a complexidade dos acontecimentos para não serem apenas consumidores de imagens”. Por isso, continua, “no Teatro do Bairro temos apostado nos textos clássicos, sem adaptações, cortes, ajustes. O público tem que amadurecer.”

Estreia de "Mãe Coragem" em Portugal, no Teatro Aberto, em 1986, com Rui de Carvalho e Eunice Muñoz

Teatro Aberto

Assim, esta narrativa que cobre 12 anos de guerra, em 12 cenas curtas, tem em cada personagem um “tipo” social: o general, os soldados, o capelão, o cozinheiro, os filhos de Anna, Eilif, o típico “chico-esperto” que na guerra é um herói e na paz será visto como um traidor. Queijo-suiço, o filho mais novo, que rouba o cofre do seu regimento, Yvette, a prostituta que casa com um general e se torna uma viúva rica, os camponeses obedientes e covardes, assolados como cães por qualquer poder e Kattrin, a criança muda, que cresce durante a guerra e só quer ser bela e arranjar um namorado. Depois de Coragem, Kattrin é a mais importante personagem, ela, muda, representa também a pantomina, e o cinema mudo, que Brecht adorava, dentro do teatro falado. Sendo a mais corajosa, será também a única que morrerá pelos outros, depois se ter sido desfigurada num ataque.

Maria João Luís, sempre à boca de cena, ao longo de mais de duas horas, com um texto de alta complexidade, e um papel cheio de ambiguidades, ressonâncias, metalinguagem, sentimentos, que nos obrigam a olhar para os conflitos ao nosso redor, na Palestina, na Ucrânia, na Síria, no Ruanda, no Congo, que reforçam a sensação de que a guerra esta outra vez a chegar. António Pires, que diz ter começado a preparar esta peça em 2020, que na altura lhe parecia algo datada, este ano viu que ela se tornou “um aviso assustador”.

“Mãe Coragem” está nas Ruínas do Convento do Carmo, em Lisboa, de 24 de junho a 17 de agosto. As récitas acontecem de segunda a sábado sempre às 21h30. A peça tem cerca de duas horas e quinze minutos de duração e é legendada em inglês

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