Clara é professora de matemática numa escola problemática. Ganha pouco e vive num bairro decadente de Lisboa, numa casa velha, exígua e gelada. À noite, liga o aquecedor que não aquece, põe um fato-de-treino sem forma nem alegria, faz chá e senta-se a corrigir testes junto à janela que lhe devolve a imagem de uma cidade cinzenta, fria, concentracionária. Sem luzes feéricas, restaurantes caros, entretenimentos destinados a quem tem muito dinheiro. Ela conheceu essa cidade, essa “bolha”, e escolheu — ou foi forçada a escolher — viver como uma professora de subúrbio e pertencer àquele mundo que, todos os dias, “os políticos e os jornais nos ensinam a desprezar”. Por isso, deixou de ter televisão e de ler jornais.
Tem apenas 30 anos, mas é uma mulher que perdeu brilho, a esperança e se fechou no seu mundo quando percebeu que a relação com um homem 20 anos mais velho, casado e milionário não tinha futuro. A sua vida é o espelho dos que são esquecidos ou deliberadamente apagados por uma sociedade que só celebra a fama e o dinheiro e despreza os que trabalham na sombra, para que o espetáculo possa continuar.
Que sejam dois atores — Diogo Infante e Benedita Pereira — que percorreram o caminho das telenovelas, dos concursos, das revistas cor-de-rosa, que foram venerados como símbolos de beleza, que cresceram a encarnar e a alimentar o romantismo pop com que a televisão colonizou a cultura e as consciências, nas últimas décadas, não é um pormenor sem importância. Pelo contrário: são as pessoas certas para mostrar o avesso das imagens, numa peça de um realismo “hard core”, estreada em Londres em 1993, que pôs a Inglaterra a debater a herança de Margaret Thatcher, mas também a do socialismo. Agora, 30 anos depois, estreia-se em Lisboa, no Teatro da Trindade, para agitar consciências e mostrar que há alternativas. Telhados de Vidro, de David Hare, encenada por Marco Medeiros, apresenta-se com cheiro a macarrão e a raiva.
O naturalismo com laivos de Eugene O’Neill, o teatro-debate com laivos de George Bernard Shaw, não estão propriamente na moda, mas a peça Skyline (traduzida como Telhados de Vidro) do dramaturgo inglês David Hare, tornou-se já um clássico e, em 30 anos, já foi levada à cena um pouco por todo o mundo, inclusive, reposta em Inglaterra, em 2014, protagonizada pela famosa atriz Carey Mulligan. Fez carreira na Broadway, recebeu os mais importantes prémios teatrais, dividiu os críticos, fez chorar muitos olhos habituados ao fado hollywoodesco de que as histórias de amor têm sempre um final feliz. Em 2023, entrevistado a propósito da transmissão da peça na BBC, David Hare estava menos convencido que o problema fosse Thatcher, e afirmava que afinal ninguém foi capaz de salvar a Inglaterra — nem a Europa — de ser engolida pelo capitalismo selvagem, apontando igualmente o dedo ao partido Trabalhista.
Diogo Infante, protagonista e diretor artístico do Teatro da Trindade, trouxe a peça para Portugal e convidou o jovem ator e encenador Marco Medeiros, do Colectivo 13, para encenar o texto, adaptando-o à realidade portuguesa, o que ele faz até ao mais ínfimo pormenor; da tradução dos nomes das personagens Kyra/Clara, Tom/Tomás, ao uso de vernáculo, à nomeação de marcas, lugares, calão juvenil, obrigando o espectador a olhar aquela realidade como coisa própria, encurralando-o de várias formas e nunca deixando que ele se evada daquela dureza, nem mesmo quando dá gargalhadas.
Marco Medeiros, que também tem experiência televisiva, nomeadamente na série Morangos Com Açúcar e na telenovela Mar Salgado, deu aso à sua vontade de ser, também, um agente provocador, fez deste drama um exercício quase brechtiano de “teatro da consciência” usando uma forte carga de ironia através de legendas, projetadas sobre o fundo do palco, que se vão constituir como um fator de estranhamento, como um grão de areia que teima em não sair do olho, que causa desconforto, até ser percebido como uma paródia às comédias românticas, telenovelas e outros produtos através dos quais se vendeu a ideia de que “tudo tem de nos trazer felicidade, que devemos viver para a felicidade e que o amor só faz sentido se nos trouxer felicidade”, explica ao Observador. “A vida real não é assim, a felicidade não é um fim, é um caminho, e o amor romântico, a riqueza, o consumo de restaurantes e viagens não tem de ser a única fonte de felicidade possível.”
No momento em que a história os apanha, Clara (Benedita Pereira) tem 30 anos e Tomás (Diogo Infante) 50. Conheceram-se quando ela tinha 18 anos e acreditava que o mundo era “a sua ostra”. Inicia uma relação com ele, um milionário, dono de uma cadeia de restaurantes, casado e com filhos. Torna-se empregada, amante e babysitter deste, da sua mulher e dos seus filhos. Vive para aquele homem e para aquela relação até ao dia em que, eventualmente, a mulher dele descobre, e Clara tem de partir. Sozinha e com pouco dinheiro, encontra no trabalho como professora, numa escola difícil, uma outra forma de estar na vida. Uma outra fonte de felicidade.
Anos depois, Tomás reaparece e também um dos seus filhos, agora adolescente. Cada um a viver o luto de Alice, ambos analfabetos emocionais, vêm reclamar Clara para as suas vidas. Telhados de Vidro é uma peça ancorada do debate ideológico entre os ex-amantes. Ele representa o homem narcisista, incapaz de lidar com os afetos, com a dor, o luto, a doença; ela representa a mulher que soube crescer com as experiências, que se tornou segura, forte, exigente. Cada um no seu extremo, sem nunca encontrarem um lugar de cedências e encontro, eles vão reencontrar-se num amor, tornado impossível pelas escolhas de vida de cada um.
Eduardo, (Tomás Taborda), filho de Tomás, adolescente perdido entre a morte da mãe e a indisponibilidade emocional do pai, será o único — mas ambíguo — sinal de futuro. É ele que traz o hip hop, que se contrapõe a uma banda sonora que revisita hits do cinema romântico, tocados ao vivo pelo pianista Jorge A. Silva. “Escolhi o hip hop porque é a musica de intervenção de hoje”, explica Marco Medeiros. “É aquela onde se fala de uma realidade que ninguém quer ver.”
O humor é uma das armas, seculares, do teatro inglês. O público conquista-se pelo riso, mas o riso nas culturas anglo-saxónicas é sempre uma faca, que tanto pode “espicaçar” como furar. Ao adaptar este drama escrito no rescaldo do thatcherismo, para o humor português (muito mais dado à chalaça do que ao sarcasmo), podem os espectadores portugueses aceder a um olhar crítico sobre esta história? Fizemos a pergunta ao encenador, no final de um ensaio com a presença de público, que só parou de rir quando Benedita Pereira atira uma caixa de talheres ao chão, cresce para cima de Diogo Infante, cresce em cima do palco com uma raiva que parece engolir o teatro inteiro. Mas só a partir daí o público parece perceber que a ironia fora apenas uma forma de disfarçar o embaraço, a incapacidade de gerir a emoção, a fuga à dureza do real. Essa fuga de Tomás é a fuga do público, demasiado habituado ao entorpecimento da diversão. Clara impõe a realidade, a necessidade de cada um arcar com as consequências das suas escolhas. E, como a realidade, ela é inclemente.
No final de um ensaio geral com público, o Observador questionou Marco Medeiros sobre se a reação era a esperada. “Em parte sim, mas acho que cada dia será diferente. De qualquer forma irei aferindo se estou a conseguir passar a mensagem ou não”, afirmou. Para já, não haverá disclaimer à porta a visar: “Esta peça contém realidade”.
“Telhados de Vidro” está em cena no teatro da Trindade, em Lisboa, a partir desta quinta-feira, 12 de setembro, até 17 de Novembro, sempre de quarta a sábado, às 21 horas, e domingos às 16h30.