Foi um recorde que se tornou uma das notícias mais paradigmáticas do ano no universo do atletismo. No domingo, Ruth Chepngetich ganhou a maratona de Chicago em duas horas, nove minutos e 57 segundos — ou seja, superou o recorde do mundo feminino, que pertencia à etíope Tigst Assefa, em quase dois minutos.

“Sinto-me incrível, estou muito orgulhosa de mim mesma. Este era o meu sonho e agora alcancei-o. Lutei muito, sempre a pensar no recorde mundial, e agora cheguei lá”, disse a atleta do Quénia, que venceu em Chicago pela terceira vez e que se tornou a primeira mulher a correr a maratona em menos de duas horas e dez minutos. 

Ora, o registo de Ruth Chepngetich significa que a diferença entre o recorde mundial feminino e o masculino é agora a mais curta de sempre — “apenas” nove minutos e 21 segundos, já que a melhor marca masculina pertence ao também queniano Kelvin Kiptum, que morreu num acidente de viação no passado mês de fevereiro com apenas 24 anos. A distância entre homens e mulheres é cada vez menor, tanto na maratona em particular como no atletismo de uma forma geral, e existem fatores que explicam o fenómeno.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Desde logo, de forma clara, o facto de o desporto feminino e de as atletas despertarem agora muito mais interesse por parte de investidores, patrocinadores e parceiros, criando uma capacidade financeira que simplesmente não existiu durante décadas. Capacidade financeira que, naturalmente, também facilita o profissionalismo destas atletas, que durante muito tempo conciliavam os treinos e a preparação com outras profissões. Mas a evolução também se explica através de alterações na biologia típica das mulheres — principalmente no que diz respeito ao chamado “ângulo Q”.

Queniana Ruth Chepngetich vence maratona de Chicago com recorde mundial

O ângulo Q é o ângulo formado através da linha que liga a parte externa do osso da anca ao centro da rótula e a linha que liga a rótula à parte superior da tíbia. No desporto, é usado para estudar os problemas que podem surgir do alinhamento entre o fémur a articulação da rótula, sendo que ganhou o nome “Q” devido ao músculo quadríceps, que fica precisamente na mesma zona. Ora, até aqui, um ângulo Q de um homem saudável rondava os 12 graus, enquanto que o de uma mulher saudável chegava aos 16 graus. Mas essas certezas estão a mudar.

De acordo com os especialistas, o ângulo Q das mulheres está cada vez mais reduzido, principalmente no que diz respeito às atletas. As maratonistas estão cada vez mais altas e cada vez mais magras, o que resulta num estreitamento das ancas e numa melhor predisposição para carreiras onde o alinhamento do fémur é crucial. Até no que toca às lesões, já que um ângulo Q maior significa que o quadríceps força mais a rótula e a separa da sua posição natural, algo que prova dor e abre a porta a problemas mais duradouros.

“O ângulo Q do músculo é cada vez menor entre as corredores, que são mais magras e mais altas. A mulher mudou, no que diz respeito à sua fisionomia, principalmente ao nível da anca e do abdómen. Essa diminuição do ângulo Q é melhor para correr e pior para situações como o parto, por exemplo”, explicou Xabier Leibar, médico especialista na prática desportiva, ao ABC.

Na mesma entrevista, o médico espanhol lembra também as questões financeiras, de nutrição e preparação, para evidenciar o óbvio: a diferença entre homens e mulheres, pelo menos na maratona, é cada vez menor. “Conhece-se melhor a fisiologia da mulher, treina-se com mais precisão. Agora procuramos aquilo a que se chama ‘máximo estado estável de lactato’, que é o ritmo de corrida que se pode manter durante muito tempo sem que o ácido lático dispare. A nutrição também melhorou, a certeza sobre aquilo que se deve comer antes e depois de um treino”, concluiu.