É a primeira instrução formal de Amadeu Guerra como procurador-geral da República e é mais um corte com o legado de Lucília Gago: o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) vai deixar de coordenar os crimes contra idosos em Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas (ERPI), passando a coordenação de tais investigações para as procuradorias-gerais regionais territorialmente competentes.
É uma decisão que aposta na descentralização desse tipo de criminalidade para uma melhoria da eficiência da investigação, defende o procurador-geral Amadeu Guerra no texto da Instrução n.º 1/2024 assinada a 7 de novembro e à qual o Observador teve acesso. O mesmo documento deixa claro que o líder do Ministério Público dá importância no combate a este tipo de criminalidade contra pessoas em situação de especial vulnerabilidade.
O DCIAP, que foi criado em 1999 para investigar apenas um catálogo de crimes relacionados com a criminalidade económico-financeira e altamente organizada mais complexa, passou a ter a tutela dos inquéritos contra idosos por decisão tomada a 22 de março de 2023 por Lucília Gago.
Essa foi uma medida alvo de grandes críticas internas no DCIAP desde o início, visto que representava, na ótica de vários procuradores, um desvio claro às competências do DCIAP — um departamento de elite do Ministério Público constituído por procuradores especializados no combate à corrupção e restantes crimes económico-financeiros, no terrorismo, tráfico humano, desvio de fundos europeus e contrabando.
Para contornar as regras que estipulam os crimes que o DCIAP pode investigar, Lucília Gago defendeu no seu despacho de 22 de março de 2023 que existia uma alegada associação da criminalidade contra idosos a crimes de natureza fiscal praticados por responsáveis de lares de idosos visto que estes se apropriariam dos rendimentos e património desses idosos.
As razões de Amadeu Guerra para descentralizar as investigações contra idosos
O primeiro argumento da Instrução n.º 1/2024 de Amadeu Guerra é precisamente a apresentação de factos que deitam por terra a alegada ligação entre fuga fiscal dos lares dos idosos e os crimes de maus tratos. “Na sequência de um balanço de cerca de um ano e meio de vigência daquele despacho de deferimento de competências [de Lucília Gago], na quase totalidade dos inquéritos instaurados não se investiga qualquer tipo de criminalidade económico-financeira”, lê-se no texto da decisão do procurador-geral.
Segundo um balanço efetuado pela Procuradoria-Geral da República em Outubro, havia 318 inquéritos contra lares de idosos em investigação no DCIAP.
Amadeu Guerra decidiu que tais investigações vão ser concluídas pelos procuradores do DCIAP mas que os novos inquéritos serão abertos no âmbito da “Procuradoria [Regional] de comarca territorialmente competente”, sendo certo que, “sempre que possível”, a “investigação deve ser concentrada em secções dos DIAP de comarca especializadas em criminalidade violenta e que a “direção da investigação dos mesmos crimes será coordenada pelas respetivas procuradorias-gerais regionais” de Lisboa, Porto, Coimbra e Évora.
O DCIAP só terá uma palavra a dizer em termos de coordenação desses novos inquéritos se existir “notícia da prática dos crimes económico-financeiros”.
A decisão de Amadeu Guerra teve igualmente em conta argumentos relevantes apresentados pelo DCIAP e por outras estruturas do Ministério Público, nomeadamente que as vantagens da concentração eram “superadas pela desvantagem da ausência de proximidade com as entidades locais” da Segurança Social, autoridades de saúde pública, órgãos de polícia criminal e gabinetes médico-legais.
Eis algumas dessas questões:
- A concentração no DCIAP “determina inúmeras deslocações, por vezes de centenas de quilómetros, quer de magistrados, quer de intervenientes processuais”;
- O que faz com que as vítimas especialmente vulneráveis e testemunhas não consigam deslocar-se a Lisboa para prestar declarações;
- É fundamental uma investigação com maior proximidade para ser mais eficaz e célere, já que é imprescindível, por exemplo, a “realização de declarações para memória futura das vítimas”.
Por tudo isto, “é revogado o despacho de deferimento de competência ao DCIAP proferido [por Lucília Gago] a 22 de março de 2023 com efeitos apenas para os novos inquéritos, a instaurar”, lê-se na Instrução n.º 1/2024 assinada pelo punho de Amadeu Guerra.