O briefing inicial pedia que se evitasse a riqueza do ornamento, e que se trabalhasse a prata desviando o foco do acervo. Peça de partida? Uma jarra. “Até lhes disse, se não der para pôr flores, está tudo bem”, ri-se Toni Grilo. Designer, autor de uma das 15 peças que ilustram o resultado final desta missão, coube-lhe decidir o elenco de criadores nacionais e internacionais que reinterpretaram a matéria-chave da casa apontando para o que há-de vir. “Quando a Topázio me convidou para festejar os 150 anos pensei logo que tínhamos que olhar para o futuro, não para o passado. Não é uma exposição retrospetiva, pelo contrário, são peças novas e uma nova forma de desenhar prata, convidando criativos a reinventar a tradição. Queria mostrar que apesar de ser uma área muito tradicional, é possível ser moderno. É uma demonstração do saber fazer”, descreve o curador.
A missão foi confiada aos criadores eleitos há cerca de um ano, e em janeiro arrancava o processo de execução. É no espaço do reaberto MUDE, na baixa de Lisboa, que se assinala agora a data redonda das oficinas e marca fixadas em Gondomar com a exposição “150 anos Topázio”, dez anos depois dos últimos festejos, neste mesmo cenário. “Fazia todo o sentido”.
Remonta a esse momento a primeira colaboração com Joana Vasconcelos. Se nessa ocasião a artista plástica partiu de uma jarra joanina, muito ornamentada, a elaboração do detalhe foi aqui “varrida”, a pedido de Toni Grilo. No seu “Bouquet”, uma jarra que não precisa de flores porque cresceu a sua própria flor, são visíveis no entanto os vestígios das suas Valquírias, tal como o revelador volume. “Parece mais simples mas é muito desafiadora porque tem uma base muito pequena, exige um sistema de contrapeso para equilibrar a peça.”, nota o curador.
50 por 50 por 50 foram as referências para as dimensões de cada uma, cuja produção exigiu centenas de horas de trabalho dos cerca de 40 artesãos envolvidos neste processo. O produto final, protegido pelo vidro, assemelha-se a um escultura, cada qual com as suas feições, num autêntico reflexo de possibilidade e diversidade. “Impactar era primordial”, distingue Toni, orientando o campo de visão dos mais curiosos. Se gosta de saber ao certo quanto tempo levou cada peça a ser feita, basta seguir com atenção as legendas, já que fornecem esse detalhe, bem como o peso de cada objeto. As 15 peças decorativas estarão à venda, numa edição limitada de 15 peças de cada jarra. Os valores oscilam entre os 20 e 30 mil euros.
“Uma jarra é abrangente, trata-se de uma peça icónica, tanto para o designer como para a colecionador. Cadeira ou jarras são desafios intemporais. A maioria dos designers não conhece a arte da ourivesaria, mas também não queríamos limitá-los na técnica”, guia-nos Toni Grilo pelos objetos dispostos no piso térreo do edifício, incluindo o seu. “Há dez anos criei uma peça em homenagem aos artesão da Topázio, 140 anjinhos que desenhavam uma jarra, desta vez é um bocado o mesmo, falar das pessoas”. “Simbiose” ilustra assim essa reunião de esforços, um conjunto de tubos que evocam a estrutura de um órgão.
Também “Lifeline” concede protagonismo aos que há muito trabalham na marca. Com uma ligação de 16 anos com a empresa, a designer Anabela Dias juntou-se ao grupo com uma jarra tubular reversível. “Foi mais fácil a nível técnico, conheço bem os limites do mundo da prata. Mas quando me dizem que vou integrar um grupo com este peso, claro que a pessoa abana. É a oportunidade de fazer uma criação sem limites.”, admite.
Na qualidade de interna acompanhou a produção de todas as peças, alterações necessárias e desafios técnicos. “Não há aqui nada de industrial”, sublinha, sobre um processo que implica até oito fases de fabrico, 90% dependente da intervenção manual, e em que cada técnica pode solicitar a aplicação de mais do que um artista. “A maior parte das pessoas não tem noção do trabalho da prata, da qualidade e da manualidade. As linhas parecem simples mas exigem imenso. Infelizmente nas ultimas décadas foi esquecido, mas queremos mostrar que a prata não é só o talher da avó que se tem lá em casa. Pode ser uma peça escultórica, moderna, artística.”
No centro da exposição, encontram-se desenhos que regressam até ao começo do século XX, esboços dos tempos anteriores ao computadores que em alguns casos, até hoje, permitem segundo Anabela reproduzir criações antigas. “De repente um cliente lembra-se de uma peça com 30 anos e lá vamos às gavetas.”
Não faltará espólio deste género à marca lançada em 1874 por Manuel José Ferreira Marques, que numa pequena oficina fundiu um fio de ouro e pelas próprias mãos, desenhou, deu forma e criou a primeira joia. Século e meio depois, no portfólio da Topázio cabe a arte da mesa (de uma argola de guardanapo a um tabuleiro de servir), elementos de decoração (de bomboneiras a molduras), a cutelaria em prata e alpaca prateada, e ainda coleções de autor com o selo de nomes consagrados do design — a que se junta agora esta luxuosa galeria, que mantém viva práticas antigas manuais como o cinzelado e o embutimento.
“O trabalho que essa deu!”, aponta a designer de produto, responsável pela criação da coleção da Topázio desde 2008, e que em 2017 impulsionou a criação de uma nova marca pertencente à Topázio, a Citrino, focada em peças de decoração em latão. “Parece a mais básica de todas, mas as mais simples são muito lisas e geralmente e vê-se qualquer defeito, eles são muito picuinhas na qualidade, não pode haver um risco ou bolhinha”. Em causa, a peça do francês Emmanuel Babled, uma das mais complexas, já que “Siamesi” é no fundo uma jarra dupla, que exigiu três ou quatro moldes ligados de forma invisível.
Natural de São Paulo, Guto Requena elevou os níveis de dificuldade com o seu alerta sobre o desaparecimento da mata Atlântica, materializado em “Ekobé”, uma jarra que implicou 650 horas de dedicação. “Foi um desafio, os animais são todos fundidos, logo têm imenso peso quando aplicados, e a peça caía para a frente. Tivemos que dar imensas voltas para equilibrá-la”, recorda Anabela Dias.
Do campo da arquitetura chegam três reforços, a começar por Manuel Aires Mateus e “Ama”, um trio piramidal, sofisticado e intemporal . “Vê-se bem que é um arquiteto a desenhar”, comenta o curador. Também Marco Sousa Santos trabalhou de uma forma arquitetónica à volta da água e das pontes, num “Circo” que miniaturiza um aqueduto, para um efeito ótico inesperado. Se o futuro é impreciso, “Timeless Void” assemelha-se a um holograma. Uma peça “simultaneamente massiva e fugaz” assinada por João Jesus, arquiteto e herdeiro da família Topázio. “Um grande desafio técnico, centenas de peças juntas criam a ilusão suspensa de uma jarra”, diz Toni Grilo.
A água volta a estar em evidência com o belga Alain Gilles, que decompôs um ramo nos vários elemento e deu origem a “Novi Vase.150”, duas peças que podem funcionar em conjunto ou separadas, tendo como referência uma fonte.
Ao leque de autores nacionais juntam-se nomes que chegaram de fora e se fixaram dentro de portas. Designer alemão a viver no Porto, Christian Haas baseou-se na ideia da irradiação da luz para criar um “Sol” que exigiu 300 horas de trabalho artesanal. No caso do francês Sam Baron, “Silvermorphose” desembaraçou-se de ornamentos — sobrando a ilusão de que caíram todos, permanecendo soltos no meio da peça, num jogo de reflexos.
Noé Duchaufour-Lawrence insistiu nas alusões à natureza e para esta criação desvenda uma “Casca” de árvore, “três peças que podemos ajustar na jarra, e que incluem um sistema de rotação.” História e vanguarda cruzam-se nas três folhas em espiral ascendente de Gabriel Tan, natural de Singapura.
Por falar em folhas, se “Ascent” trabalha as texturas, a escultora Iva Viana teve rédea um pouco mais solta para o ornamento, materializado em “Carvalho”. Habitualmente cativada pelas técnicas tradicionais de modelação de estuques, abraçou um novo material e criou “a peça mais clássica da coleção”, define o curador. “Permitiu também mostrar a técnica da cinzelagem, o trabalho da chapa, tudo feito à mão. E mesmo assim é muito contemporânea e minimalista, com um jogo de reflexos.”
Por esta altura já estamos em condições de garantir que apesar de Toni Grilo ter moderado as expectativas originais, sim, é possível colocar flores em todas elas. Ou mantê-las sempre debaixo de “Radar”, neste caso no interior da impactante criação do italiano Lucca Nichetto, num contraste entre o corpo fosco do cone e a lente brilhante.
“150 Anos Topázio”, Museu do Design e da Moda, Rua Augusta, 24. Encerra à segunda-feira. Até 6 de janeiro. Entrada livre.