Uma das maiores apostas de sempre da Netflix no Brasil, a minissérie Senna começou logo a levantar ondas desde que estreou na íntegra a 28 de novembro. Os seis episódios da produção retratam o percurso do piloto — um dos mais celebrados da história do automobilismo e um ídolo brasileiro —, dos inícios nas corridas de karts até chegar ao topo da Fórmula 1, conquistando um tricampeonato mundial. Igualmente retratado está o trágico acidente no Grande Prémio de San Marino em 1994, que o vitimou fatalmente aos 34 anos.

No entanto, apesar do grande foco da série estar na performance competitiva e na ascensão de Senna — aqui interpretado por Gabriel Leone —, têm sido outros aspetos a marcar as reações mais vocais, nomeadamente a representação da personalidade do piloto e nas escolhas narrativas feitas para lhe retratar a intimidade.

“Os pontinhos da vida pessoal que surgem para se irem ligando com a carreira e a cronologia da vida do piloto são genéricos, contados de forma superficial e raramente substanciais para o resto”, escrevemos aqui no Observador, sobre uma série em que “o que se passa nas corridas é tão, tão intenso, que o resto pouco importa”.

Um dos temas que mais celeuma tem provocado está relacionado com o parco tempo de ecrã dedicado à última parceira em vida de Ayrton Senna, a modelo e apresentadora Adriane Galisteu, por oposição a uma ex-namorada do piloto, Xuxa Meneghel, uma das mais famosas personalidades televisivas do Brasil. De acordo com os cálculos do website Splash, se Galisteu — interpretada por Júlia Foti — figura em apenas um minuto e 33 segundos de um total de cerca de seis horas de produção, Xuxa — encarnada por Pâmela Tomé — tem um episódio inteiro dedicado à relação com Senna, ocupando pouco mais 15 minutos de cena.

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De acordo com uma notícia avançada ainda em maio pelo portal brasileiro Notícias na TV, tal escolha deveu-se a pressões da família de Senna para que Galisteu não fosse sequer representada na série, o que levou a Netflix quase a desistir do projeto. No entanto, o mesmo meio afirmou que a produtora — argumentando que a série não teria credibilidade se não figurasse a última parceira em vida do seu protagonista — conseguiu pelo menos garantir algumas cenas em que a modelo aparece. Ainda assim, a diferença de tratamento entre as duas ex-mulheres foi particularmente notada por alguns espectadores da série, que fizeram questão de denunciar nas redes sociais que certos momentos que o piloto teve com Galisteu são reinterpretados como se tivesse sido Xuxa a vivê-los. Um deles é uma famosa fotografia onde o casal foi retratado a andar de mota.

Antecipando a controvérsia, Gabriel Leone afirmou em entrevista que o motivo para este “apagamento” de Galisteu se deveu a opções narrativas. “Não acho que faltou explorar mais. Foi uma escolha da construção do nosso roteiro. Não teve nada a ver com Galisteu“, disse ao Splash, citado pela CNN Brasil. Segundo o ator, a série salta entre 1991 e 1994, dando pouco destaque aos anos intermédios, razão para a modelo quase não aparecer.

A tal justificação somou-se a de Bianca Senna, sobrinha do piloto, que afirmou ao mesmo meio que partiu da família a decisão de não dar protagonismo ao relacionamento de Senna com Galisteu. “O foco da história não é o lado romântico do Ayrton, porque não é isso que fez a história dele ser relevante, do tamanho que ele é para o Brasil e o mundo”, defendeu. Além disso, a mesma familiar não só lamentou o foco dado a esta polémica, como admitiu que a série esteve em longa-gestação para respeitar as exigências da família. “Foi um processo longo por várias razões. Uma das principais é que a família queria ter certeza do que iria sair, que faria jus à personalidade do Ayrton”, revelou Bianca.

Não obstante os argumentos apresentados, a forma como o caso tem sido encarado é de que a família do desportista quis promover um “apagamento” da importância de Galisteu na sua vida. “Já que houve, na série da Netflix, a opção de falar de sua vida pessoal, ou deveriam ter falado tudo, ou, simplesmente, não entrar no mérito das questões. Mas nunca pecar pela mentira ou negação”, escreveu o comentador Flavio Ricco.

Os amores de Senna

A vida de Ayrton Senna foi marcada por vários relacionamentos, mas de acordo com Eduardo Rodrigues — autor da biografia Ayrton: O Herói Revelado — cinco foram mais importantes para o piloto: Lilian de Vasconcellos, Adriane Yamin, Xuxa, Cristine Ferracciu e Adriane Galisteu. Além das parceiras já mencionadas, destas mulheres apenas Lilian de Vasconcellos figura também na série, tratando-se da única com quem Senna se casou.

Amigos de infância que começaram a namorar, Senna e Vasconcellos casaram-se nos primórdios da carreira do piloto, em 1981, mudando-se para Londres para este competir na Fórmula 3. O matrimónio, contudo, durou apenas oito meses, devido a diferenças irreconciliáveis entre o casal: mal-adaptada ao Reino Unido, Lilian de Vasconcellos queria voltar para o Brasil e constituir família; já Ayrton queria permanecer na Europa e focar-se nas corridas. “Foi um casamento prematuro. Era impossível, ao mesmo tempo, manter uma união sólida e continuar correndo para vencer”, afirmou Senna após a separação.

O piloto envolveu-se pouco depois do divórcio, em 1984, com Adriane Yamin, herdeira de apenas 15 anos do império dos chuveiros ​​Corona, quando o piloto já tinha 24. Ficou conhecida como a “namorada secreta” do desportista — apesar de ser uma relação apoiada e até fomentada pelas famílias de ambos — dada a diferença de idades entre os dois, tendo ambos concordado que só teriam relações sexuais quando ela atingisse a maioridade. Acabaram por separar-se antes.

Entre casos mais ou menos públicos e certas polémicas — como aquela em que o piloto Nelson Piquet insinuou em entrevista que Senna era homossexual e este respondeu que já se tinha envolvido com a futura mulher de Piquet antes dos dois estarem juntos —, o mais mediático dos seus namoros teve início em 1988, com a apresentadora Xuxa.

[a participação de Senna no programa de televisão de Xuxa:]

Para muitos, este foi o relacionamento definitivo de Senna, “conto de fadas” vivido entre dois pesos pesados das suas respetivas indústrias, tendo o piloto chegado a ser convidado a participar num programa da apresentadora. Publicamente, eram recatados e avessos a polémicas, mas as fraturas começaram a manifestar-se ao fim de dois anos juntos, por culpa da distância do piloto e, segundo Xuxa, da sua própria empresária, Marlene Mattos. “Dizia que não era para ficar com ele, que era para escolher entre meu trabalho e ele”, afirmou a apresentadora.

No documentário sobre a sua vida, Xuxa viria a admitir, de resto, que esperou um dia reconciliar-se com Senna. “A grande perda que tive na minha vida começou com o Ayrton. Achei que ia reencontrá-lo, que a gente ia ficar junto, que iríamos tentar um novo relacionamento, e isso nunca aconteceu”, contou.

Senna ainda se envolveu com uma modelo americana casada — Carol Ann Alt — e teve um breve namoro com uma velha conhecida, Cristine Ferracciu, que chegou a morar na casa do piloto em Portugal. No entanto, como noutras situações, a vida frenética e a fama de Senna foram motivo para terminar a relação.

O derradeiro relacionamento seria com Adriane Galisteu, tendo o par travado contacto numa festa após a vitória de Senna no Grande Prémio do Brasil de 1993, no Autódromo de Interlagos. Estiveram juntos 18 meses, até ao dia do fatídico acidente no circuito de Imola, sendo que durante esse período, a modelo deixou o trabalho para acompanhar o piloto pelo mundo.

Galisteu e Senna, uma ferida aberta até hoje

Uma das questões que marcou o namoro entre o piloto e a modelo prendeu-se com uma suposta reserva da família de Senna em relação às intenções e à proveniência de Galisteu, à época com apenas 19 anos, chegando mesmo a causar angústia ao próprio automobilista. De acordo com o que está escrito em mais do que uma biografia, o tricampeão mundial queria mesmo “assentar” com a nova namorada e criar alguma distância da família, o que provocou uma cisão.

Essa antipatia ficou particularmente patente no funeral de Senna, quando Galisteu foi preterida por Xuxa, encarada pela família como a verdadeira viúva durante a cerimónia. A humilhação da modelo começou no facto do carro em que seguia ser dos últimos no cortejo fúnebre e, como consequência, ter chegado com apenas duas cadeiras disponíveis, ambas a ladear Xuxa. O que se seguiu foi um momento tenso e silencioso, até a apresentadora mudar de lugar para junto de Leonardo Senna, irmão do piloto. Se Xuxa chegou num carro com Viviane Senna, irmã do piloto, saiu do funeral com a família, ao passo que Galisteu teve de caminhar até à saída do cemitério e entrar num autocarro reservado aos convidados.

Um ano depois, Viviane Senna demonstraria abertamente o seu desagrado quanto a Galisteu numa entrevista à Paris Match. “Se ela precisa de dinheiro, deveria trabalhar, como todo mundo, e parar de explorar a imagem de um morto”, atirou, insinuando que ex-namorada do irmão estava a viver às suas custas, citando a sua aparição na revista Playboy e o livro que lançou — Caminhos das Borboletas: Meus 405 Dias ao Lado de Ayrton Senna — meses após a morte do piloto como exemplos.

Além disso, Viviane aludiu a “problemas” que a modelo trouxe à família, sem referi-los concretamente. “Não posso evocar os problemas que essa moça causou à nossa família e que determinaram nossa posição. Pois, se o fizesse, exporia certos aspetos da vida privada de Adriane. E eu não tenho esse direito”, declarou.

Galisteu, hoje apresentadora televisiva, casada e com um filho, refletiu sobre o caso este verão, por ocasião da estreia de uma série dedicada à sua vida, Barras Invisíveis. “Eu era uma menina muito diferente da mulher que sou hoje. Vivia problemas muito importantes na minha vida naquela época e que não podiam ser ditos. Então, vivi um relacionamento com o Ayrton meio à parte, ele sabia de tudo, dos meus problemas, ele foi, inclusive, na minha casa lá na Lapa [São Paulo], conheceu a minha realidade, minha mãe”, afirmou.

Dado o facto de ambos andarem sempre em viagem devido ao circuito da Fórmula 1, Galisteu não teve grandes oportunidades de travar contacto e gerar intimidade junto da família de Senna, o que hoje diz ter tido impacto na perceção que esta tinha de si. “A gente convivia muito pouco com a família dele. Eles não sabiam exatamente quem eu era, de onde eu vinha, para onde eu ia, do que eu seria capaz, eu era meio enigmática, acho que faltou muita conversa”, concedeu, adiantando porém que estaria disponível para estender a mão e ter uma conversa com Viviane Senna, hoje presidente do Instituto Ayrton Senna.

Do lado da família, porém, a postura de rejeição mantém-se, 30 anos após a morte do piloto. Além da ínfima presença de Galisteu na série, outro exemplo foi o depoimento prestado por Vivane Senna no documentário acima mencionado sobre a vida de Xuxa, afirmando que este foi o verdadeiro amor da vida do irmão. “Um não precisava do outro para ser reconhecido, para se alavancar. Os dois já estavam consolidados como superestrelas. É como se eles tivessem se encontrado no momento errado. Ambos não tinham como parar a carreira naquele momento de vida”, afirmou.

Ao saber da forma como a sua presença foi minimizada em Senna, Galisteu começou por reagir indiretamente, comentando com emojis de coração uma publicação de Julia Foti na qual a atriz se encontra a ler um excerto do seu livro sobre a relação entre os dois, Caminhos das Borboletas.

No entanto, esta segunda-feira, a apresentadora optou por abordar diretamente o tema, publicando uma série de stories na sua conta de Instagram, assim como uma fotografia com Senna onde se lê “A história do Ayrton é muito maior que minha relação com ele”. Nos vídeos, Galisteu alonga essa ideia, dizendo que “a gente não pode nunca pode deixar essa história passar ou morrer. Mas vocês sabem que eu nunca escondi que a história do Ayrton é muito maior do que meu relacionamento com ele”.

Elogiando toda a equipa responsável pela série e afirmando que existe uma “obrigação de perpetuar a história do Ayrton para todas a gerações”, Galisteu aproveitou ainda assim par reclamar para si parte da história do ex-parceiro, já que também lhe “pertence”. “Meu relacionamento com ele foi o último ano e meio da vida dele. Porém, foi ao meu lado, e essa história também me pertence. E também foi uma história vivida intensamente, cheia de amor, cheia de diversão. Um Ayrton completamente diferente daquilo que vocês já viram”, afirmou.

Na sequência dessa reflexão, a apresentadora admite então vir a apresentar o seu lado da história no futuro. “Acho que vocês vão amar. Acho não. Tenho certeza de que vocês vão amar”, prometeu. Como escreve a imprensa brasileira, a reação online foi rápida, com utilizadores das redes sociais a fazer comentários como “ela simplesmente pisou na família sensacionalista do Ayrton” ou “eles tentaram reduzir a imagem dela, mas no final só se fala nela. Acho que o tiro saiu pela culatra!”. “Isso Adriane, mostra para essa família do Senna que você tem uma história que o povo precisa ouvir, você e Senna um do lado do outro, parabéns, você faz parte dessa história”, lê-se também.