Na campanha dita das “Quatro pragas”, levada a cabo pelo governo comunista chinês durante o Grande Salto em Frente, entre finais dos anos 50 e começo da década de 60, o governo de Mao Tsé-Tung ordenou aos camponeses que, por razões de higiene, exterminassem o maior número possível de ratos, moscas, mosquitos e pardais. Estes deveriam desaparecer porque comiam os cereais. Mas os dirigentes comunistas ignoravam que os pardais comiam também os insectos que atacavam as colheitas. Quando se aperceberam do facto, era tarde demais. A população de pardais tinha diminuído drasticamente e o equilíbrio ecológico havia sido perturbado.

Sem pardais que os comessem, os grilos e outros insectos proliferaram e a colheita de arroz foi comprometida. O extermínio dos inocentes e úteis pardais foi um dos factores que causou a “Grande Fome” na China de então, que terá feito cerca de 30 milhões de mortos.

Em “A Hora do Lobo”, de Jean-Jacques Annaud, passado na Mongólia Interior, nos anos 60 da Revolução Cultural, há também extermínio de animais ordenado pelas autoridades, embora a uma escala mais pequena que o dos pardais. Trata-se de matar os lobos que atacam os rebanhos de ovelhas e os cavalos dos pastores nómadas. “A Hora do Lobo” surge na senda de outros filmes sobre animais feitos pelo realizador francês (“O Urso”, de 1988, “Dois Irmãos”, de 2004”) e adapta o livro Wolf Totem de Jian Rong (pseudónimo de Liu Jiamin) publicado em 2004, sobre a sua experiência de jovem estudante enviado em missão “educadora” para as estepes em 1967, e que na China se transformou no maior sucesso editorial desde O Pequeno Livro Vermelho, de Mao Tsé-Tung: mais de 20 milhões de exemplares vendidos, além de muitos prémios ganhos.

[Veja o trailer de “O Último Lobo”]

Instalado no seio de uma tribo nómada mongol para a educar na boa doutrina comunista, ensinar o chinês e levar o “progresso” à região, Chen Zen (Shaofeng Feng) vê-se envolvido, sob o comando do comissário local do Partido Comunista, numa cruel caça aos lobos – vistos pelos pastores como animais a temer e respeitar, não a exterminar -, e salva um lobo bebé, procurando criá-lo às escondidas. Em 1997, Jean-Jacques Annaud tinha enfurecido as autoridades chineses por causa do seu filme “Sete Anos no Tibete”, mas as coisas parecem ter mudado muito desde essa altura.

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Annaud diz ter tido todo o apoio destas para rodar “A Hora do Lobo”, desde a participação dos estúdios estatais na produção, até à concessão do direito à montagem final, uma excepção às estritas leis da censura ao cinema na China.

[Veja a entrevista com o realizador]

https://youtu.be/AaLMKFKvRqw

O realizador de “A Guerra do Fogo” recorda este episódio pouco conhecido da história política chinesa e filma o ocaso de um modo de vida ancestral, a ignorante sanha ideológica do poder comunista contra este e as suas antiquíssimas crenças, tradições e referentes (caso do lobo), e a iniciação de um jovem da cidade formatado politicamente à áspera realidade da vida nas estepes. Ao mesmo tempo, defende o respeito pelo mundo natural e animal e o seu equilíbrio na relação com os homens, sem antropomorfizar os lobos e deturpar a sua natureza, nem romantizar a vida dos nómadas, evitando que “A Hora do Lobo” derrape para a utopia pastoral ou para os delírios dos “khmers verdes” da ecologia.

[Veja cenas da rodagem]

Para o poder de Pequim, dizimar os lobos das estepes significa também, e principalmente, desapossar os pastores nómadas de uma componente fundamental do seu habitat e do seu imaginário colectivo, para melhor os desenraizar e transformar em “homens novos” e cidadãos massificados do paraíso igualitário comunista. Por isso, a perda do sentimento de pertença, a ameaça à identidade, a divisão entre dois mundos, afligem as personagens de “A Hora do Lobo”, sejam humanos ou animais (o lobinho criado secretamente por Chan Zen, por ficar com o cheiro dos homens, não voltará a ser aceite pela alcateia e corre o perigo de ser descoberto e morto por aqueles).

[Veja mais bastidores da fita]

Jean Jacques-Annaud espreme o máximo de sumo cinematográfico da majestosa paisagem da Mongólia, que transforma em actor da história, não se limitando a tratá-la como um pano de fundo natural, e filma pelo menos duas sequências que durante muito tempo ficarão alojadas na retina dos espectadores: o ataque nocturno da alcateia aos cavalos em corrida desenfreada, e a manhã seguinte no lago gelado. No final do filme, um animal escapa aos seus caçadores, deixando a pairar uma última esperança para a espécie. Mao não conseguiu triunfar sobre os lobos.

Dezasseis deles, escolhidos de um grupo de 35, foram treinados ao longo de três anos e participaram em “O Último Lobo”.