Há alguma pintura falsa na nova exposição do Museu de Arte Antiga? “Acho que não há e quem diz que sim está a exagerar”, respondeu ao Observador a historiadora Annemarie Jordan Gschwend, uma das comissárias de “A Cidade Global – Lisboa no Renascimento”, que abre ao público na sexta-feira, dia 24. A resposta foi inteiramente convicta quanto a uma pintura em concreto. Mas não tão convicta num outro caso.

O assunto foi levantado no último sábado no jornal Expresso, através de um artigo do historiador Diogo Ramada Curto, segundo o qual há dúvidas sobre a autenticidade e a datação de dois quadros da exposição: “O Chafariz d’El Rei” e “A Rua Nova dos Mercadores”, duas vistas inéditas da Lisboa do século XVI.

“Pertenço ao pequeno e, porventura, minoritário grupo de historiadores que têm dúvidas acerca da autenticidade de ambas as representações”, afirmou Ramada Curto, referindo vários aspetos que lhe parecem impossíveis de figurar em telas com mais de 400 anos.

“O Chafariz d’El Rei” é atribuída a um pintor holandês desconhecido e terá sido composta entre 1570 e 1580, pertencendo hoje à coleção do empresário português Joe Berardo. Sobre esta, Annemarie Jordan Gschwend assumiu que “há dúvidas”.

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Quanto a “A Rua Nova dos Mercadores”, de 1570-1619, está dividida em dois painéis e é propriedade da Society of Antiquaries of London. “Não há dúvidas nenhumas” sobre a autenticidade desta, garantiu a historiadora.

A exposição do MNAA baseia-se no livro The Global City: On the Streets of Renaissance Lisbon, que Annemarie Jordan Gschwend e Kate Lowe publicaram em dezembro de 2015. Na sequência da obra, as duas investigadoras foram convidadas pelo Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) para comissariarem uma mostra com o mesmo tema.

Ramada Curto escreveu que as suas dúvidas não são novas, já foram referidas por outros, e criticou a inexistência, no livro, de qualquer indicação nesse sentido.

A direção do museu lisboeta só está disponível para comentar o caso nesta quarta-feira de manhã, durante uma conferência de imprensa de apresentação de “A Cidade Global”.

Na terça-feira à tarde, Annemarie Jordan Gschwend aceitou ser entrevistada pelo Observador para explicar o seu ponto de vista. A historiadora, que está radicada na Suíça e trabalha como investigadora do Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar, da Universidade Nova de Lisboa, tinha chegado a Lisboa havia poucas horas, vinda de Zurique. Expressou-se em português, com grande facilidade.

“Não sou especialista no quadro do Chafariz, não estudei essa pintura aprofundadamente como fizeram o professor Vítor Serrão e o professor Fernando Baptista Pereira”, explicou. “No livro, Kate concentrou-se no quadro do Chafariz, foi assim que dividimos o trabalho. Por isso, não quero comentar esta pintura. Sei que existem dúvidas. A pintura do Chafariz é muito enigmática, há muitas coisas ali que têm de ser estudadas, é preciso fazer análises. Como é uma pintura sobre madeira, é mais fácil de estudar, pode-se recorrer ao raio-X e à dendrocronologia [estudo dos anéis da madeira] .”

Relativamente aos dois painéis que constituem “A Rua Nova dos Mercadores”, são “sem dúvida originais e tudo o que Diogo Ramada Curto disse foi especulativo”, afirmou. “Acho que ele nem leu o nosso livro. Ele diz que não havia cavaleiros negros no século XVI, como aparece na pintura, e isso não é verdade, sabemos que havia pelo menos três, há historiadores que trabalharam sobre ordens militares e sabem que havia. Não há dúvidas nenhumas”, acrescentou.

Um dos painéis de de “A Rua Nova dos Mercadores”, de Rossetti (Society of Antiquaries of London, Kelmscott Manor)

Annemarie Jordan Gschwend tem a certeza de que o díptico foi comprado em 1866, em Londres, pelo pintor e colecionador Dante Gabriel Rossetti. “Levou-me quase dois anos a saber onde Rossetti comprou a pintura, de quem, o nome da loja, o nome do vendedor. Fiz um capítulo bem documentado no livro”, insistiu.

“Sabemos bem que Rossetti comprou esta pintura em 1866, que a levou em 1871 para a quinta de Kelmscott Manor [Inglaterra], que cortou a pintura em duas e a pintura ali ficou quando ele saiu da casa em 1874. Sabemos que em 1926 há a redação de um inventário do recheio da casa e nessa lista de coisas que pertenceram a Rossetti lê-se que há ‘two pictures of street scenes’ [duas representações de cenas urbanas]. As duas pinturas foram restauradas nos anos 1960, quando a casa foi doada à Society of Antiquaries. Nessa altura, os dois painéis foram restaurados pela primeira vez, mal restaurados. Nem pensar, não é possível haver dúvidas”, sublinhou.

Segundo a comissária, os dois painéis foram exibidos no Museu Rietberg, em Zurique, há sete anos, e nessa ocasião sofreram novo restauro. “O museu pagou 12 mil libras para isso, os pigmentos foram analisados e a conclusão foi a de que a pintura é de finais do século XVI, inícios do XVII. Tudo isto está no livro, se Ramada Curto leu bem o livro, leu isto”, defendeu a investigadora.

Visivelmente indignada pelo artigo do Expresso, e sobretudo pela afirmação contundente de Ramada Curto de que o díptico em causa não foi aquele que Rossetti comprou em 1866, Annemarie Jordan Gschwend disse “não fazer ideia” dos motivos da crítica.

“Ele não é historiador de arte, é historiador. Não leu o meu capítulo no livro. Como é que pode afirmar o que afirma como se fosse a palavra de deus, é uma atitude completamente errada. Se os dois painéis fossem falsos, o falsificador teria de conhecer muito bem Portugal do século XVI. Eu estudo há 30 anos Portugal do século XVI e sabe o que sei? Nada.”