A edição original deste artigo foi publicada pela ocasião da presença de Modric e da Croácia na final do Mundial, competição que, em simultâneo com a Liga dos Campeões conquistada pelo médio, em muito contribuiu para a atribuição do prémio de melhor jogador do ano da UEFA na cerimónia desta quinta-feira, no Forum Grimaldi, no Monaco

Primeiro foi só o colombiano à minha esquerda: começou a produzir um estranho som com as mãos, o som de palmas das mãos arquedas a bater uma contra a outra – mas à terceira ou quarta vez juntaram-se outros, um rapaz de camisa vermelha às flores brancas e caniche ao colo, um tipo de boné na cabeça e camisa de cavas que, salvo erro, trabalha em mudanças, um gordo de brinco que pára sempre por ali, até que mesmo os dois ingleses à minha frente desataram furiosamente a bater palmas. O travelling que os meus olhos fizeram por aquele café de Lisboa voltou ao ecrã ao fundo onde se via a imagem de um rapaz chupado, suado e narigudo a sair do campo: o jogo estava quase quase a chegar ao fim e aquele café nos Anjos, em Lisboa, repleto de adeptos de bola pertencentes a meia dúzia de nacionalidades, prestava homenagem a um extraordinário jogador de futebol que naquele momento era substituído, completamente esgotado – Luka Modric.

Não foi fácil chegar a este momento – e nem estou a falar da final do Campeonato do Mundo, para a qual a Croácia se qualificou depois de bater a Inglaterra nesse jogo, refiro-me antes à unanimidade e admiração absoluta que o adepto comum hoje devota a Luka Modric. Porque Luka não é o jogador que tradicionalmente associamos a adoração: não é alto e forte como um avançado, não dá pau como um central raçudo, não é rápido como um extremo nem se dedica a fintinhas e outros ademanes estéticos que enchem o olho, quase não marca golos e, para médio supostamente criativo, faz poucas assistências. Luka não tem nem uma das características que por norma associamos aos jogadores de futebol mais populares.

É possível que pensem que estou a exagerar, mas quando Luka saiu do Tottenham para o Real houve adeptos dos Spurs que defenderam que Modric não faria muita falta porque, ao fim e ao cabo, nunca havia marcado mais que cinco golos numa época e isso era muito pouco para um médio ofensivo.

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Luka não é um médio ofensivo, é um gestor de ritmos, mas os ingleses são excêntricos no que toca a futebol, e ainda não entenderam, por exemplo, que a bola deve deslocar-se pelo chão. Mas talvez a exibição de passada quarta-feira os tenha convencido definitivamente acerca dos méritos do jogador mais lúcido que alguma vez pisou um relvado.

É que mesmo que não consigam discernir a influência invisível que Luka tem (sempre) no jogo, pelo menos terão notado certos detalhes que denunciam um praticante exímio: quando, por exemplo, Modric correu para a sua área, no início da segunda parte e, Lovren despachou como pôde o esférico, este dirigiu-se a alta velocidade na direcção de Luka, que, num milésimo de segundo fincou o pé direito, rodou ligeiramente e com o esquerdo, de primeira, fez a bola passar entre três ingleses, indo parar aos pés de Rakitic, livre para contra-atacar. Pormenor: Rakitic estava nas suas costas e Modric não tinha como vê-lo – já tinha visto, antes sequer da bola chegar.

Foi um gesto espantoso – e se não foi assim o jogo todo, foi assim desde o início da segunda parte, quando Modric, munido de um radar único para adivinhar onde a bola vai parar, parecia estar em todo o lado.

Luka é aquilo que se pode chamar de jogador de jogadores – o tipo de futebolista a que por vezes o adepto não dá o devido valor mas que os colegas identificam de imediato como fundamental: começa na recepção orientada de bola, aquela capacidade de já ter olhado por cima do ombro e, no momento da recepção, com um toque retirar do caminho o marcador directo; passa pela capacidade de passe, que, contra a Inglaterra, se viu, por exemplo, numa trivela a fazer arco por entre os defesas de modo a descobrir Perisic na esquerda. Mas o que torna Modric o melhor médio da actualidade – e já o é há uns anos – é mais que o toque delicado: é a capacidade de entender sempre em que momento o jogo está associado à capacidade técnica de executar a opção correcta mantendo a frieza.

Quantas vezes vimos Modric, no meio-campo, rodeado de adversários colocar um passe vertical de risco sem pestanejar? Ou conduzir, com um homem duas vezes o seu tamanho a pressioná-lo e encontrar o colega livre? Ou passar para o lado, ajustar a posição para criar linha de passe, receber e só aí rodar o jogo, quando o adversário deslocou para ali as tropas, de maneira a pressionar, descobrindo, com horror, que Luka estava apenas à espera que subissem para colocar a bola no espaço?

Valdano dizia há dias que Modric não tinha um dom como Maradona – tinha, sim, a capacidade de ver o óbvio: onde está o espaço, qual o colega livre, como receber, quando fintar, quando transportar. Modric será, possivelmente e depois de Messi, o melhor do mundo a transportar e isso confere-lhe a capacidade de alterar o ritmo a seu prazer: sabe quando é hora de reter a bola, rodando-a entre a equipa, quando é preciso acelerar, romper, baixar, chegar à frente.

Não é fácil pensar enquanto se está a correr, menos ainda quando se tem 1m72 e à nossa volta há três ou quatro latagões com pitons nas chuteiras – é preciso frieza e coragem, características que terão sido moldadas na infância, que coincidiu com a Guerra da Independência Croata, em que Luka viu o avô ser morto a tiro. A casa em que vivia foi incendiada pelas forças sérvias e Luka tornou-se refugiado – passou quase uma década a viver em hotéis em Zadar, enquanto à sua volta eclodia o som de granadas e balas a atravessarem o ar.

Talvez por isso tenha sempre preferido, apesar de todo o seu talento, não ser um dez, um daqueles de mãos nos bolsos, molengas, que surgem para fazer o passe decisivo; a sua posição preferida é no meio, a 8, de fato macaco, a meter o pé, se tal for necessário. No seu primeiro ano como profissional, em 2003 (aos 17 anos), o Dinamo Zagreb emprestou-o ao Zrinjski, da Bónia, um campeonato muito mais físico, em que a bola era mal tratada, e não raro os jogos descambavam em atrocidades cometidas nos joelhos dos oponentes. Modric foi uma revelação: não só não tinha medo como o seu espírito cientista assomava e rapidamente dava por si a pensar como conduzir a bola por entre as patadas adversárias.

Ainda hoje o croata diz que aquela época foi uma lição e que foi ali que aprendeu a pensar depressa – por sobrevivência. Por essa altura, o futebol, que fora um escape enquanto estava a tentar crescer no meio da guerra, tornara-o uma das maiores esperanças do futebol: em 2008 – já depois de, com uma exibição monumental, ter ajudado a Croácia a derrotar Inglaterra em Wembley, deixando os ingleses fora do Campeonato Europeu – foi para os Spurs. Houve quem duvidasse da sua capacidade de se impor num futebol tão físico – mas impôs-se e acabou no Real Madrid, onde, depois de uma primeira época em que foi considerado a pior contratação do ano, acabou a mandar no meio-campo e a conduzir o clube espanhol a uma sequência de vitórias na Champions equivalente àquilo a que os americanos, no básquete, apelidam de dinastia.

Quando Luka entrar em campo, quando o virem controlar a bola com aquela languidez dos amantes experientes, o que estaremos a ver é uma vitória do espírito humano, que da guerra extraiu a coragem (e não o medo), que tornou a sua inferioridade física numa vantagem ao aprender a ler o jogo, ao desenvolver a sua técnica, o que lhe permite pensar e executar depressa, que a cada vez que duvidaram do seu valor respondeu com o dobro do empenho e a mesma absurda inteligência.

O melhor médio do mundo é um refugiado que parece um anão raquítico, para quem o pé é só um meio exprimir a solução que a sua cabeça cabeça. Luka transforma cada enigma, cada labirinto, na verdade absoluto de uma avenida larga rumo ao sol de um golo. Olhem bem para ele: é, desde que Xavi e Iniesta envelheceram, o homem mais bonito do mundo.