Há vários tipos de culto que um artista ou um objeto pode atingir ao longo dos anos: os Big Thief, uma banda americana de indie-folk-rock, quando tocam em nome próprio (isto é, fora dos festivais de verão) atuam para mil pessoas – tem sido assim desde os primeiros anos da banda e é duvidoso que alguma vez atinjam o estatuto de banda de estádio; “Plan B From Outer Space”, um filme caricato – pelas piores razão – de ficção científica, lançado em 1959 e rapidamente esquecido, foi recuperado quando Tim Burton, em 1994, lançou Ed Wood, biografia do realizador de “Plan B”, que assim adquiriu o estatuto de filme de culto, e passou a ser alvo de um estranho elogio: “O pior filme de todos os tempos”, foi como “Plan B2 começou a ser categorizado, quando a partir de 1994 foi reposto nas salas de cinema, entrando assim para a categoria de objetos definidos como “Tão mau que é bom”.
Cultos como os do Big Thief são facilmente explicáveis – a banda tem um som definido (a melancolia da falta unida ao carácter experimental do indie) que de imediato a impedem de ascender às massas e a confinam a um tipo de ouvinte; cultos como os de Plan B são impossíveis sem que certas variáveis se alinhem todas ao mesmo tempo: Tim Burton, que estava em fase de ascensão, foi buscar uma figura (Ed Wood) que a história tinha esquecido e atribuiu-lhe um carácter romântico (um realizador que sem talento nem dinheiro não desistia de fazer filmes, por puro amor ao cinema), exacerbado pelo desempenho imaculado de Johny Depp, numa década que privilegiava os outsiders (o filme sai em plena vertigem grunge, quando os outsiders eram vistos como heróis).
Há outros cultos que são mais difíceis de explicar: porque é que, 25 anos depois do seu lançamento (feitos esta segunda-feira, 6 de março), “O Grande Lebowski” continua a angariar fãs de uma dedicação extrema à causa, ao ponto de, se nos depararmos com um deles, sermos perdoados por pensar, por vezes, que estamos a dialogar com um membro de uma seita e não com um ser humano comum?
[o trailer de “O Grande Lewboski”:]
Dito assim parece que estamos a desmerecer o senhor Lebowski, mas não: os irmãos Coen (os realizadores do filme) sabiam exatamente ao que iam e o que queriam fazer – o plot, como é comum nos filmes dos Coen, parece saído de um filme noir dos anos 50, é fácil criar empatia pelas personagens que não controlam o seu destino e/ou tomam más decisões baseadas nos seus defeitos pessoais (que estão longe de ser trágicos) e tudo isto constrói uma imagem da América não como um lugar de oportunidades, mas como o local em que todos os losers deste mundo se reúnem e podem ainda ser mais pisados do que já são, quando só querem que ninguém os chateie.
Com algumas exceções (“Fargo”, por exemplo, tem uma seriedade que nem sempre tem lugar na filmografia dos irmãos), este podia ser um resumo de toda a carreira da dupla – uma carreira em que um filme nunca é apenas um filme, antes se inscreve num meta-diálogo com o passado: os Coen adoram recuperar géneros e desmontá-los, usar o pastiche para criar no espectador uma sensação de reconhecimento e expectativa, antes de desvirtuarem essas mesmas expectativas.
No caso de “O Grande Lebowski” estamos perante um film noir que é também screwball comedy e filme de drogado, ou slacker movie, como chamávamos nos anos 90 – aquele tipo de filme em que uma (ou mais) personagem(ns) só querem fumar ganza em paz, feito que não alcançam devido a eventos que fogem ao seu controlo. Especificando: quem quer fumar ganza em paz é Jeffrey Lebowski (Jeff Bridges), um drogadito desempregado que vive em LA e só quer continuar a ser um desempregado drogadito; a alcunha de Lebowski é “The Dude” e este simples detalhe é de génio, porque torna automaticamente a personagem num símbolo de todos os “dudes” deste mundo que só querem estar sossegados a fumar ganza, sem serem interrompidos por problemas – o que, de forma retorcida, se traduz em: todo o adolescente do mundo em algum momento se reviu no “Dude”.
Por azar – e este é o evento que foge ao controlo do Dude – Jeffrey tem o mesmo nome que um milionário; quando rufias invadem a casa do Dude e urinam no seu tapete, era do outro Lebowski que estavam à procura. O Dude, por norma uma pessoa relaxadona que (e não sei se por este momento isto já ficou suficientemente claro) só quer fumar ganza em paz e nunca se chateia com ninguém, desta vez irrita-se e procura ser recompensado pelos danos causados à sua casa, o que se compreende: ao fim e ao cabo, não é fácil encontrar um bom tapete, muito menos quando se passa a vida ganzado.
Isto leva-o a procurar o milionário, na esperança de que um milionário, tendo dinheiro e sendo a pessoa que os rufias procuravam, se compadeça e lhe ofereça um novo tapete, porque – de novo – não é fácil encontrar um bom tapete, em particular quando a única atividade para a qual temos talento é a de estarmos constantemente ganzados.
Não é exatamente certo o que nos faz rir e, seja qual for a partícula elementar da gargalhada, esta terá evoluído ao longo dos tempos, tornando-se gradualmente mais complexa; mas por alguma razão o ser humano parece ter um certo prazer em ver acontecer coisas más a pessoas boas, desde que não sejam excessivamente más – e como prova A, exibo todos os filmes em que Chaplin faz de Charlot. Uma teoria simplista diria que ao vermos que coisas más (e inesperadas) acontecem a pessoas boas (ou que têm azar) sentimos que não estamos tão sós na nossa ausência de fortuna.
O truque, aqui, é saber dosear o grau de maldade que acomete o desgraçado e contra-balançar com a esperteza com que o desgraçado se livra do mal: Charlot podia ser pobre e ocasionalmente levar umas bastonadas da polícia, mas a sua agilidade física safava-o de inúmeras embrulhadas e fazia com que perseguidores batessem com o nariz na porta, tropeçassem etc. Nesse sentido, o ser humano é muito democrata: também se ri das coisas más que acontecem aos maus.
Quando o Dude decide procurar o milionário está, sem o saber, a acionar um mecanismo a que os gregos chamavam “tragédia”, que é aquilo que acontece quando uma decisão nossa faz com que desgraças se abatam sobre nós. A mulher do milionário foi raptada, o milionário convence o Dude a entregar o dinheiro do resgate aos raptores e a partir daqui o Dude vê-se envolvido numa série infindável de peripécias que o levam a encontrar uma galeria inolvidável de personagens que podemos caracterizar como todos os losers deste mundo reunidos numa só película.
É difícil não ter empatia por ele: todos nós, em algum momento, já tivemos sossego e tempo para fazermos o que nos apetece, que mais não seja na pré-primária – e um dia damos por nós e reparamos que, por uma sucessão de eventos e decisões que tomámos sem consciência das suas possíveis consequências, estamos divorciados, com filhos, a aturar gente com quem não temos nada em comum, com a Euribor a raptar-nos a conta bancária e sem que consigamos recuperar o sossego perdido na infância.
Uma parte do sucesso (relativo) do filme reside nessa empatia que temos pelo Dude, alguém cujas ambições são mínimas (acho que já o disse, mas repito para os mais distraídos: estar sossegado sem fazer nada). As outras partes do sucesso são o sentido de plot twist dos Coen, o timing cómico das personagens e dos diálogos, e a magnífica galeria de personagens secundárias, que sendo específicas dos EUA encontram similares por esse mundo fora: o tipo que tem a mania que sabe tudo e só diz disparates, o charlatão, o gabarola que não tem nada de que se gabar, etc.
E se digo relativo é porque o “O Grande Lebowski” não explodiu como outros filmes da época que se baseavam na herança dos filmes noir ou outros sub-géneros antigos, ou em violência quase cómica ou em sucessões de eventos inesperados (o plot de “O Grande Lebowski” está cheio de fundos falsos, caminhos que levam a lugar nenhum, saídas que voltam ao início) ou tudo ao mesmo tempo – como “True Romance” (que também tinha um stoner, desempenhado por Brad Pitt, embora não como personagem principal) ou “Pulp Fiction” (igualmente com a sua dose de drogados). Muito menos atingiu o êxito de bilheteira destes.
Na altura “O Grande Lebowski” foi visto, como outros filmes dos Coen, como um filme arty, sabido, que não seguia as regras dos filmes convencionais, declaradamente anti-sistema, um filme feito por quem conhecia os códigos do cinema antigo e para quem não estava interessado apenas no cinema que chegava às massas – ainda não havia plataformas de streaming, não sabíamos onde eles tinham ido roubar, éramos mais inocentes.
E o filme foi passando, de geração em geração, cada uma delas encontrando uma côdea de amor por aquele homem de roupão que só quer (julgo que já saberão, mas nunca fiando) fumar ganza em paz e reaver o seu tapete (ou um qualquer tapete). Vai uma aposta como dentro de 25 anos os nossos filhos estarão a mostrar o filme aos nossos netos?