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Quando a filha de Júlia Vale tinha 3 anos, uma equipa do centro de saúde de Braga visitou todos os jardins de infância do concelho. Quem bateu à porta das escolas foram psicólogos que tinham uma mensagem para os encarregados de educação. Era clara e sem rodeios: os pais não deveriam cometer o erro de matricular os seus filhos no 1.º ano, caso eles só tivessem 5 anos de idade.
O alerta era para os pais dos chamados alunos condicionais, as crianças que completam os seis anos de idade entre 16 de setembro e 31 de dezembro, já depois do início do ano letivo. Estes estudantes só ingressam no ensino obrigatório se os encarregados de educação assim o entenderem e se houver vaga para eles nas turmas já constituídas.
O argumento, lembra Júlia Vale, era o de que as crianças com 5 anos ainda não têm a maturidade emocional para iniciarem as aprendizagens do 1.º ciclo. Hoje, a sua filha tem 21 anos e Júlia, de 55, é a secretária nacional da Fenprof para o pré-escolar. Com as crianças dos 3 aos 5 anos passa um dia por semana como educadora de apoio.
Lembra-se desta história com algum orgulho do que foi feito no seu concelho há tantos anos, mas lamenta que nada tenha mudado na lei que permite que crianças de 5 anos ingressem no ensino obrigatório. “Temos de pensar que o nível de exigência é grande — vão iniciar a aprendizagem da leitura e da escrita — e têm de ter determinadas condições emocionais e físicas para iniciarem essa aprendizagem”, defende a educadora de infância.
Os alunos condicionais devem ir para o 1.º ano?
Hugo Rodrigues, pediatra no Hospital de Viana do Castelo, não tem dúvidas. A regra deveria ser entrar no 1.º ano apenas com 6 anos. As exceções deveriam ser raríssimas. “Os alunos condicionais deveriam ser isso mesmo, condicionais. Só deveriam entrar com 5 anos os casos excecionais. Todos os outros deveriam seguir o seu percurso normal, ou seja, aguardar até ter 6 anos para entrar para o 1.º ano. O problema é que atualmente passa-se exatamente o contrário, o que faz com que a exceção seja aguardar. E isso é completamente errado.”
Helena Gonçalves Rocha conta o exemplo dos seus dois filhos, o rapaz nasceu a 23 de dezembro, a rapariga em agosto. “Mais vale não nascer nestas alturas”, diz a rir. “Eu fui logo posta à prova, mas não tinha grandes dúvidas de que o meu filho não ia entrar com 5 anos de certeza.” Quanto à filha, diz que preferia que tivesse nascido uns dias mais tarde, a 16 de setembro. Assim, também ela poderia ter entrado um ano depois, com mais maturidade.
“É uma situação que causa um grande dilema aos pais”, diz a terapeuta familiar, licenciada em Educação Especial e Reabilitação. Por isso, o primeiro conselho que tem para pais de alunos condicionais é conhecerem bem o seu filho porque só olhando para a criança como um todo se pode chegar a uma conclusão informada.
“É preciso ponderar. É preciso ver o interesse dele pelas aprendizagens, se é um menino interessado em ler, se quer saber o que está escrito nos sinais na rua”, explica Helena Gonçalves Rocha. “Em termos de linguagem é preciso ver se consegue manter uma conversa, se consegue compreender, se tem acesso a algum tipo de complexidade de linguagem. E há também as questões de frustração, as questões emocionais, se tem uma boa autoestima, se se frustra muito quando é chamado à atenção, se aceita ser corrigido e se consegue lidar bem com isso. E, claro, a relação com os pares”, acrescenta.
Mas ter um filho que é condicional “é sempre um pau de dois bicos”, diz Júlia Vale, porque não basta ponderar, é preciso também dar atenção às questões burocráticas. A educadora de infância lembra que, em termos legislativos, o Ministério da Educação admite a possibilidade de se ingressar no 1.º ciclo com 5 anos, mas apenas se isso não implicar a constituição de uma nova turma. E esta situação pode trazer alguma angústia às famílias que acreditam que o filho vai iniciar a escolaridade obrigatória, mas depois percebem que ele não tem lugar na escola: “É criada uma expectativa aos encarregados de educação que se pode traduzir num flop”, adverte.
O seu colega Manuel Micaelo lembra a mesma condicionante: “Além das questões estritamente pedagógicas, que são as primeiras que se devem pôr, o Ministério depois também põe entraves financeiros. Acontece haver vagas para uns e para outros não, quando as crianças estão em situações iguais. E criam-se algumas injustiças.”
Seja como for, o professor de apoio do 1.º ano e secretário nacional da Fenprof para o 1.º Ciclo, acredita que o melhor para as crianças — haja vagas ou não — é não saltarem etapas. “Fazer as coisas antes do tempo, por norma, paga-se. Não é conveniente dar saltos, as etapas devem vir umas a seguir às outras. E no caso dos condicionais é uma etapa que se salta. Claro que há exceções, mas as crianças só deveriam entrar para o 1.º ciclo quando já tivessem a idade-norma. Os condicionais só deveriam entrar em situações muito específicas e muito bem vistos por uma educadora.”
Júlia Vale concorda. “O tempo vai demonstrando que estas crianças podem vir a ter dificuldades em termos das suas aprendizagens.” E mesmo que o 1.º ano corra bem, a queda pode vir a acontecer mais à frente, quando as próprias crianças já tem consciência de sucessos e fracassos.
As exceções existem: há crianças de 5 com maturidade de 7
Como em todas as regras, também para os alunos condicionais as exceções existem. E não é sequer de crianças prodígio de que se fala, das que mais tarde ouvimos dizer que chegaram à faculdade ainda durante a adolescência. Há simplesmente crianças de 5 anos que têm tanta ou mais maturidade que outras de 7. E, para essas, ficar para trás faria mais mal do que bem.
“Há crianças que se vê que já estão cansadas do jardim de infância. Conheço miúdos que se tivessem ficado mais um ano no pré-escolar, apesar de terem 5 anos, teria sido um grande problema, porque estavam prontos para avançar”, lembra o professor Manuel Micaelo, fazendo questão de ressalvar que nas questões de educação as generalizações nunca são boas. Esse é aliás um tom consensual entre todos os especialistas. Cada criança tem a sua singularidade que não pode ser esquecida. Mas não é a única coisa. A sua envolvente — pais e professores — é também fundamental.
“A primeira grande reflexão que temos de fazer é a prontidão da criança, temos de ver se ela está pronta ou não para iniciar as aprendizagens.” As palavras são de Ana Teresa Brito, doutorada em Estudos da Criança e membro do Conselho de Administração da Fundação Brazelton/Gomes-Pedro para as Ciências do Bebé e da Família. “Quando pensamos se a criança está pronta ou não, temos de ver se ela é capaz de se sentir entusiasmada, se tem vontade de aprender, se sente a escola como um ambiente acolhedor…” E procurar olhar a criança como um todo implica virar os olhos também para a família, para a escola de onde vem e para a escola para onde vai. “Tudo isso faz parte da história que ela vai construindo.”
Quando a criança está pronta, não deve ser a data do calendário a impedi-la de avançar, na opinião da psiquiatra da infância e da adolescência, Isadora Pereira.
“Se uma criança está bem integrada, se é um menino com uma boa maturidade para os 5 anos, se estiver numa escola que também possa oferecer as condições de apoio de que ela possa vir a precisar, uma atenção mais individualizada, podemos achar que pesando os prós e os contras será preferível ir para o 1.º ano do que ver os amigos passar de ano e sentir que ficou para trás. Além de que as crianças têm sempre a expectativa de que no ano seguinte vão para o primeiro ano. Este menino está pronto? Então pode ir.”
A terapeuta familiar Helena Gonçalves Rocha concorda: “Claro que há exceções. Não podemos dizer, de forma absoluta, que um miúdo com 5 anos não está preparado para ir para o 1.º ano, depende muito. Temos de ver que é mais uma idade de maturidade do que uma idade cronológica.”
Isadora Pereira lembra que há crianças de 5 anos mais maduras que outras de 7, e isso não pode ser ignorado na hora de tomar a decisão. Fundamental é olhar também para a escola, perceber se o estabelecimento de ensino terá condições para dar apoio à criança, caso ela venha a precisar dele.
“A criança até pode nunca vir a precisar de um apoio concreto. Mas temos de olhar para a escola: se for para uma com poucos recursos, com turmas enormes, com turmas difíceis, vai ser difícil. Mas se forem oferecidas as condições que suportem uma criança que por si já terá alguma maturidade, o cenário é diferente. Cada caso é um caso. Tem de se atender muito bem ao que é aquela criança, ao seu nível de desenvolvimento, não só cognitivo mas também emocional. Ver como é que ela se vai sentir se seguir em frente ou não. É preciso atender também à envolvente e perguntar o que é que a escola vai poder oferecer a esta criança”, sublinha a pedopsiquiatra.
É a tal conjugação de que fala Ana Teresa Brito. “Necessariamente estão ligadas e têm de estar alinhadas a prontidão da criança, da família e da escola. A fundação da criança começa a construir-se desde o nascimento, esta construção é feita internamente mas é feita de forma sistémica, holística, feita com base nas relações que a criança vai tendo com a escola, com a família e que a vão construindo.”
Olhar só para uma parte da criança não serve. E o exemplo dado é o de uma criança fantástica no raciocínio matemático, mas ainda com muitas dificuldades em relacionar-se com as outras crianças e em fazer amigos.
“Podemos ter uma criança que já sabe ler e fazer contas desde os 4 anos, e isso faz imenso sentido para ela, e vai fazendo esse caminho de descodificação simbólica muito rapidamente, mas do ponto de vista da sua relação com os outros há um caminho ainda grande a fazer. Acelerar, olhar a criança só de um ponto de vista sem a compreender na sua globalidade, não é correto. Estamos a acelerar um processo, enviesado por um olhar que vê apenas um domínio do desenvolvimento”, argumenta Ana Teresa Brito.
As principais dúvidas dos pais: perder um ano e o grupo de amigos
As dúvidas que muitas vezes chegam aos gabinetes dos especialistas nem sempre têm a ver com saber se a criança está ou não pronta. As perguntas não passam necessariamente sobre a maturidade ou a etapa de desenvolvimento em que se encontra. As grandes dúvidas dos pais prendem-se com perder o grupo de amigos e perder um ano no percurso académico.
“Os pais ficam muito neste dilema, principalmente com esta questão de eles se atrasarem. Não sei para quê”, diz Helena Gonçalves Rocha, rindo. “Costumo dizer que atrasarem-se só se for para o desemprego. Mas é este o principal medo dos pais, que eles percam um ano, que chumbem, que fiquem retidos”, acrescenta, num tom de voz mais sério.
Esse receio de perder um ano não é simplesmente verdade, explica Helena Gonçalves Rocha, enquanto faz as contas de cabeça. “Se os alunos condicionais entrarem com os 6 anos feitos, fazem a sua escolaridade exatamente com a mesma idade dos outros. Acabam o primeiro ano com sete anos, e o ensino obrigatório com 18. Foi o que aconteceu ao meu filho que está agora no 12.º ano. Os condicionais são é os primeiros a fazer anos.”
A pedopsiquiatra Isadora Pereira usa a mesma aritmética e diz que, na vida adulta, já ninguém se vai lembrar se acabou o liceu com 17, 18 ou 19 anos, até porque isso se irá diluir no percurso académico. A diferença será mesmo na altura da entrada e aí não tem dúvidas: “Para os condicionais diria que, por regra, os 6 anos são melhores do que os 5, mais um ano de brincadeira não é algo que perdem, é algo que ganham.”
O pediatra Hugo Rodrigues traz outra variante para esta equação: “Esse é outro erro de pensamento. Não se trata de adiar a entrada dos que têm cinco anos. O que se passa é o oposto, está-se a adiantar a entrada dessas crianças, pois o que era suposto era aguardar até aos seis para entrar para o Ensino Básico. Se respeitarmos este pressuposto não só não estamos a perder ano nenhum, como provavelmente estamos a ganhar muitos anos de maior solidez académica e desenvolvimento pessoal.”
E esta solidez não é de desprezar. O não querer atrasar esse primeiro ano na escola pode representar muitos mais anos perdidos, esses sim de retenção, nos ciclos seguintes. Essa é a convicção do professor Manuel Micaelo: a perda será maior se insistirmos em colocar a criança num nível de ensino para o qual não está preparada.
“Os alunos condicionais são imaturos e vão andar durante bastante tempo com demasiada imaturidade e com dificuldade em acompanhar os outros. Se não se sente logo no 1.º ano, sente-se no 3.º, 4.º, 5.º, e por aí fora. Chegam a determinada altura e não têm maturidade suficiente para acompanhar os conteúdos que são dados”, argumenta. O professor diz que basta olhar para as taxas de retenção do 2.º ano para perceber que é ali que muitos dos condicionais esbarram. Nas salas de aulas, continua, os professores percebem nitidamente quem são os alunos que ainda deviam estar no pré-escolar.
“Às vezes ouço os colegas, nas turmas a que dou apoio, a dizerem: ‘Está ali o bebezão.’ Isto não é dito como insulto, é como diminutivo carinhoso, mas serve para dizer que aquela criança ainda devia estar no jardim de infância porque precisava de fazer uma série de aprendizagens antes de fazer as do 1.º ciclo”, explica Manuel Micaelo.
Por isso defende, uma e outra vez, que não se deve saltar etapas, até porque são os alunos os primeiros a sentir-se mal: “É o bebezinho que está ali, que não se sabe sentar nem estar na sala de aulas e que está só a causar problemas e distrações. Quando eles entram para o 1. º ciclo percebemos logo que há aprendizagens que, ou não foram feitas, ou foram feitas de modo muito supérfluo. E, ao fim de um mês, já sabemos que vai ser complicado conseguirem fazer as aquisições do 1.º ano, porque há uma série de coisas que se saltaram e que não podem ser saltadas.”
O que acaba por acontecer é que ficar retido mais tarde tem efeitos negativos sobre a criança. “É pior ficar retido no 2.º ano do que ficar mais um ano no pré-escolar”, diz o professor. Num caso, explica, basta dizer à criança que ainda não tem idade para ir para a escola dos grandes. No outro, o aluno vai perceber diariamente que não está a conseguir acompanhar os outros, e isso, diz, é um acumular de fracassos.
“Se tivesse ficado no pré-escolar, ele iria fazer as coisas muito melhor do que a maioria dos outros, enquanto que no 1.º ciclo faz tudo muito pior do que os outros. Num lado fica acima da média, do outro fica abaixo. E nas coisas da educação a autoestima é fundamental”, sublinha o secretário nacional da Fenprof para o 1.º ciclo.
Isadora Pereira faz questão de salientar que não é a mesma coisa ficar mais um ano na pré ou ficar retido no 1.º ciclo. “Muitas vezes ouvimos os pais dizer que se for preciso repete depois o 2.º ano em vez de repetir a pré. Mas já não é a mesma coisa. Repetir o 2.º ano é mais um período em que está ali, é uma retenção. Repetir a pré é ter mais um ano para brincar, para ter tempo para aquilo que naquele momento a criança ainda precisa”, argumenta.
Em Portugal, a lei não permite que um aluno fique retido no 1.º ano do 1.º ciclo, mesmo que não tenha feito as aprendizagens necessárias. Só pode ficar retido se tiver excedido o limite de faltas. Se as aprendizagens não forem feitas, é o 2.º ano que terá de ser repetido, quando a criança já tem uma noção muito maior do que está a acontecer.
“Obrigá-lo a ir para o 1.º ano, não estando preparado, é estar a obrigá-lo a exigências para as quais ele não está capaz e que vão fazer com que ele sinta que não é capaz, que não sabe, que não consegue, que não está à altura, que não acompanha os outros. Vai ter um efeito muito pernicioso e pode até criar uma aversão aos estudos. Pode ficar com um carimbo a acompanhá-lo durante o resto do percurso académico”, diz a pedopsiquiatra, ressalvando que nada é taxativo ou é passível de generalização. Quando na dúvida, diz, mais vale ficar no pré-escolar a brincar.
Encerrado o capítulo da perda de um ano no percurso académico, abre-se um novo que é a questão de as crianças deixarem de estar no mesmo grupo de amigos.
“Depois de perder um ano, há muito esta ideia entre os pais de que os filhos perdem os amigos”, diz Helena Gonçalves Rocha que desvaloriza esta questão. Mais importante é perceber que as crianças estão a brincar cada vez menos, algo que se agrava no 1.º Ciclo, e que essa falta de movimento livre vai depois ter repercussões em termos de desenvolvimento.
“Estamos a sobrevalorizar a aprendizagem formal e até há pré-escolas que valorizam isso — começam logo a ensinar a escrever e a fazer as letras, às vezes até por imposição dos pais que se queixam que o filho ainda não sabe escrever. O pré-escolar não devia ser isso, deveria ser para trabalhar os pré requisitos para a aprendizagem. Dar mais um ano de brincadeira ao nosso filho é o melhor presente que lhe podemos dar”, defende a terapeuta.
A questão da separação dos amigos também não é vista como fundamental por Isadora Pereira, embora reconheça que para algumas crianças possa ser importante seguir o seu grupo de pares. A ressalva é sempre a mesma: tem de estar preparada para as aprendizagens que aí vêm. Caso contrário, não deve ser o peso das amizades a fazer virar a balança.
Mas há um outro fator, silencioso e de que os pais não falam, que acaba por ter mais peso na sua decisão do que qualquer medo: a pressão social. É essa a convicção de Júlia Vale que volta a lembrar a história passada em Braga quando a sua filha tinha três anos.
“Quando a minha filha estava no jardim de infância, havia duas crianças condicionais. Depois de ouvirem os psicólogos, os pais disseram que não os iam matricular. Mas depois chegaram a casa, alguém lhes perguntou se o seu filho era mais burro do que os outros, e esqueceram imediatamente as recomendações. E a verdade é que aqueles dois meninos chegaram ao 2.º ano e não conseguiram acompanhar os outros”, recorda Júlia Vale.
Essa pressão social também está presente no discurso de Isadora Pereira. “Vemos meninos que não estão prontos, que ainda precisam muito de brincar, que não conseguem estar sentados numa mesa a aprender coisas que ainda não lhes dizem muito. Em termos de desenvolvimento psicoafetivo, eles ainda não estão nessa fase. Nós sugerimos que possam ficar mais um ano na pré, mas há uma pressão — que nem é só familiar, é quase social — que leva os pais a seguir outro caminho. Em setembro, há todo este entusiasmo com a entrada na escola, e os pais preferem dizer às outras pessoas que o seu filho já está no primeiro ano, em vez de dizer que ficou retido.”
Se tiver dúvidas, a melhor ajuda é falar com a educadora
Quando Júlia Vale esteve colocada nos Açores, em São Miguel, foi personagem numa outra história e acabou por influenciar o final feliz. Pelas suas mãos passou um menino extremamente condicional, como diz a sorrir, porque fazia anos a 31 de dezembro, o último dia previsto na lei para que crianças com 5 anos possam entrar no ensino obrigatório.
“Ele era de uma família muito carenciada, e não era só a carência financeira, eram muitos filhos e viviam numa casa que mais parecia um curral. Fui falar com os pais, mas fui eu a casa deles. E disse-lhes que considerava que o melhor para ele era ficar na pré, não acompanhar o grosso do grupo que ia para o 1.º ciclo. Acreditava que essa transição só lhe iria trazer prejuízo”, relembra a educadora.
Ao longo de um ano, recorda, a criança evoluiu bastante. No final do ano conseguia desenhar uma casa com todos os pormenores, até com os cortinados na janela, ele que no início do ano, com 4 anos, só fazia riscos. Mas isso não chegava. “Havia uma evolução tremenda, e aquela criança só tinha a ganhar em ficar mais um ano no jardim de infância, continuando aquele investimento.”
Anos mais tarde, Júlia Vale reencontrou o seu pupilo. “É um jovem perfeitamente integrado socialmente, fala bastante quando na altura não abria a boca. Se tivesse ido para o 1.º ciclo, teria sido sempre a perder. Mas aqueles pais, que não tinham habilitações escolares praticamente nenhumas, confiaram em mim, aceitaram a minha opinião e ele teve um percurso normal.”
Falar com a educadora pode parecer um primeiro passo muito básico, mas é o que Isadora Pereira recomendaria a qualquer pai que entrasse no seu gabinete de pedopsiquiatria. “É a pessoa que está com eles, que vê como eles evoluíram durante um ano, que vê o nível de adaptação desse menino. Se os pais tiverem dúvidas, podem também pedir o conselho de um médico, de um pedopsiquiatra, de um pediatra do desenvolvimento. A ideia que tenho é que quando há dúvidas, elas já foram surgindo durante o ano e mais vale ter uma visão conservadora e esperar. Quando a criança não está preparada vai-se notando e percebendo.”
Por muitas opiniões que se ouça, a decisão final é sempre dos pais, que são soberanos na educação dos seus filhos. E embora nem sempre as relações entre pais e professores sejam simples, Júlia Vale insiste que deve haver sempre um diálogo com a educadora: “Os pais devem questionar todas as opções, mas a educadora terá elementos suficientes para explicar aos pais o porquê daquele caminho ser melhor para o seu filho.”
“Se a criança não sabe andar e começar logo a correr vai dar mais trambolhões”, diz Manuel Micaelo, que acredita que a pessoa que melhor consegue prever se o aluno vai cair ou não é quem o acompanha diariamente no pré-escolar.
“Acho que é conveniente os encarregados de educação falarem bem com as educadoras, que são quem melhor conhece os seus filhos e quem melhor os pode aconselhar neste ramo. As coisas começam por aí. As crianças têm pessoas que os conhecem tão bem quanto os pais e é conveniente haver comunicação para, em conjunto, decidirem o que é melhor para a criança. Recomendo o diálogo. Se os pais confiam na educadora é conveniente pedirem a opinião de quem mais tempo passa com as crianças na altura de tomar uma decisão que é fulcral”, sublinha o professor.
Ana Teresa Brito lembra que há uma linguagem do desenvolvimento que todos os educadores devem saber falar e que é assim que se consegue perceber se a criança está pronta ou não para seguir para a etapa seguinte. Acima de tudo passa por saber ouvir a criança.
“No seu último ano connosco, o T. Berry Brazelton escreveu o livro ‘Learning to Listen’. Essa é a grande mais valia de falarmos fluentemente a linguagem do desenvolvimento — todos os educadores a devem falar — e de perceber o que está a acontecer em cada etapa do desenvolvimento, em cada um dos touch points. Simultaneamente temos de perceber muito bem quem é aquela criança. Sabemos que as funções cognitivas superiores estão prontas por volta da idade definida internacionalmente para a criança poder entrar para a escola (6/7 anos), mas também há a questão da singularidade de cada um e do que o caracteriza.”
E quem melhor do que os pais e a educadora que passa os dias com a criança para perceberem essa singularidade?
Os sinais de alerta de que o seu filho precisa de mais tempo
Quando se olha para o ser único que é uma criança, os sinais de alerta de que ela não está pronta para subir o degrau seguinte são evidentes, embora nem sempre os pais os vejam. Isadora Pereira lembra que, quando há problemas, eles não surgem de um dia para o outro e vão-se notando na criança. As questões emocionais são muito importantes e embora nenhum especialista lhe diga que este ou aquele fator é mais importante, há sinais mais fáceis de ver. Um deles é a linguagem.
“A fala é fundamental por causa da leitura. Tratando-se de uma criança condicional que ainda por cima tem essa agravante, não faz sentido seguir em frente antes de resolvê-la”, defende Júlia Vale. A educadora faz, no entanto, uma diferenciação entre existir um problema por falta de estimulação em casa e crianças que têm problemas específicos e que precisam de terapia da fala. E isso, diz, deteta-se no jardim de infância por uma educadora atenta. Pode até ser resolvido dentro do agrupamento escolar se ele tiver os recursos humanos necessários. “Quando há recursos para responder às necessidades das crianças elas conseguem ultrapassar as suas debilidades”, defende a educadora.
Ana Teresa Brito concorda: “A linguagem é fundamental para a aprendizagem da escrita. A linguagem começa muito cedo — diz-nos a investigação — e uma criança com três anos, consoante o ambiente que a envolve, pode entrar na escola com menos um terço, dois terços da linguagem influenciado apenas pelo tipo de família.”
O que separa as crianças ricas das pobres? 35 milhões de palavras
“Fico de coração partido de pensar que mesmo em Portugal temos muitas crianças no limiar da pobreza e que isso lhes traz muito menos oportunidades desde que nascem”, continua a doutorada em Estudos da Criança. “A linguagem é a capacidade de conversar com um bebé, de lhe ler uma história. A partir dos primeiros meses de vida da criança fazemos isso, a linguagem desenvolve-se através deste contexto que está à sua volta. Esta capacidade que a criança tem de se expressar é uma literacia emergente e que acontece naturalmente: primeiro começa-se por dar nome às coisas, depois percebe-se que existem as palavras escritas e que há todo o mundo para descobrir nelas, quando aprendemos a ler.”
Passando à frente da escrita, há dois aspetos fundamentais para determinar se há perigo ou não de pular a etapa, na opinião do pediatra Hugo Gonçalves: a capacidade cognitiva — a aquisição do conhecimento através da perceção, atenção, associação, memória, raciocínio, juízo, imaginação, pensamento e linguagem — e a maturidade da criança.
“A capacidade cognitiva da criança pode ser avaliada de forma objetiva recorrendo a testes específicos para fazer essa avaliação. Na maior parte das vezes, essa capacidade não é um problema, pois a maior parte das crianças está preparada sob esse aspeto. O segundo é a maturidade da criança. Este é o ponto mais problemático, mas talvez o mais importante, porque não se consegue avaliar de forma muito objetiva. Precisa da opinião dos pais, dos educadores e de quem lida com a criança e não existem propriamente testes padronizados para fazer esse tipo de avaliação. Por esse motivo, trata-se de uma análise muito mais subjetiva e que pode originar opiniões diferentes”, defende Hugo Rodrigues.
No seu consultório, Helena Gonçalves Rocha faz sempre as mesmas perguntas aos pais. “Há pré-requisitos para ir para o 1.º ciclo em termos emocionais que muitas vezes os miúdos não têm. Ao falar com os pais tento perceber qual é o limiar da frustração da criança, como é a socialização, o saber estar na sala e no recreio, como lida com a frustração de não saber.”
Para além disso, sublinha a terapeuta, estar perante uma criança que não tem interesse absolutamente nenhum pelas letras, por querer aprender ou descobrir o mundo são sinais de alerta. “E têm de ser capazes de manter-se na tarefa, de manter a atenção — são solicitados períodos longos de atenção durante o 1.º ano e, infelizmente, em situação de imobilidade. Umas das sugestões que faço é sentarem os miúdos em bolas e terem outras formas de trabalhar que não seja sentados.”
Helena Gonçalves Rocha volta a dar o exemplo dos seus dois filhos. “Não há duas crianças iguais, às vezes até os irmãos, criados da mesma maneira são tão diferentes… O meu filho com 5 anos lia tudo e ainda hoje está zangado por não ter ido logo para a escola. Quando entrou com 6 anos era muito bom aluno, mas tinha uma imaturidade enorme que ainda hoje tem em termos sociais. A minha filha, que entrou com os 6 anos acabados de fazer em agosto, não estava nada preparada e não tinha interesse absolutamente nenhum.”
Se já tiver 6 anos, posso travar a entrada do meu filho na escola?
Em casos como o da filha de Helena Gonçalves Rocha não há nada a fazer, mesmo que os encarregados de educação acreditem que a criança teria a ganhar com mais um ano de pré. A lei obriga as crianças que fazem seis anos a entrar para o ensino obrigatório.
Há exceções, mas são complicadas.
“Essa é uma decisão que implica um pouco mais de ‘coragem’ por parte dos pais, porque aí sim, estamos a falar verdadeiramente de adiar a entrada para o Ensino Básico”, explica Hugo Rodrigues. “No entanto, acho que os pais devem sempre tentar tomar as melhores decisões para os filhos e, se for essa a opinião deles, dos educadores e, eventualmente, do pediatra ou psicólogo que avalie a criança, deve ser uma decisão a discutir com o agrupamento escolar. Mesmo sendo uma decisão difícil, não tenho dúvidas de que deve ser tomada, se for considerada a melhor opção para a criança.”
Ir para o primeiro ano com 7 anos é uma coisa que em Portugal só acontece quando há um pedido de adiamento feito ao Ministério da Educação, explica Isadora Pereira. “Isto só acontece com meninos de 6 anos que por alguma imaturidade ou por alguma deficiência comprovada medicamente, precisam de ficar mais um ano no pré-escolar a maturar para entrarem no 1.º ano mais consolidados.”
Os trâmites não são simples e seguem um longo caminho burocrático. “É uma solicitação feita pelos pais, mas tem de ter fundamento a nível psicopedagógico, ou seja, pode-se pedir o adiamento de matrícula. Mas tem de haver uma avaliação específica que fundamente isso ou que integre a criança dentro do decreto lei 3/2008 — Lei da Educação Especial. É feito um plano educativo especial com o que terá de ser trabalhado no ano em que a criança vai ficar retida, aí sim fica mesmo retida porque a entrada no 1.º ciclo é obrigatória.”
Essa fundamentação é avaliada pelo Ministério de Educação, através da DGEstE — Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares, que valida o adiamento ou não.
“É um passo que vale a pena dar se for uma coisa profunda. Por exemplo, eu achava que a minha filha não estava preparada, mas ela não tinha dificuldades suficientes para fundamentar um processo destes. Ela não tinha interesse nenhum na escola e ainda hoje para ela é uma coisa mais social. A escola que nós temos não é aquela que ela precisava, mas não dava para fundamentar um adiamento. Tem de haver dificuldades, por exemplo, a nível de linguagem. Mesmo sem terem nenhuma deficiência, esse é um motivo que valida muitas vezes o adiamento, por ser muito importante em termos de aprendizagem”, explica Helena Gonçalves Rocha.
Perceber se a criança está pronta para entrar na escola aos 5, 6 ou 7 anos é fundamental para que o longo percurso académico tenha o mínimo de sobressaltos possíveis, mas não é uma decisão que possa ser copiada de exemplos que existam à nossa volta. E como Helena Gonçalves Rocha já explicou, a mesma decisão pode não servir dois irmãos.
Mónica Vasconcellos, neuropediatra, insiste na singularidade de cada um, não sendo possível encontrar, na sua opinião, uma resposta consensual para a pergunta: em termos de desenvolvimento infantil há uma idade ideal para ir para ensino obrigatório?
“Todas as crianças são diferentes, em relação ao seu ritmo de crescimento e desenvolvimento cognitivo e emocional. A aprendizagem na infância apresenta particularidades, relacionadas com a neuroplasticidade e maturação neurológica. À medida que a criança amadurece, áreas e funções percetivas e motoras tornam-se mais funcionais e capacitadas para aprender”, explica a neuropediatra. E lembra que a legislação portuguesa refere que a matrícula no 1.º ano é apenas obrigatória para crianças com 6 anos completos a 15 de setembro.
“A entrada com 5 anos só deve ser requerida em situações excecionais, porque vários estudos mostram que a criança só está preparada, do ponto de vista cognitivo, emocional e comportamental, a partir dos 6 anos. Alguns estudos até vão mais longe e mostram que a maturação neurológica ideal para iniciar as aprendizagens formais seria aos 7 anos de idade”, conclui Mónica Vasconcellos.
Brincar não é perder tempo, é aprender
Antes de começar o ensino formal, os anos do pré-escolar devem ser dedicados à brincadeira. Brincar não é perder tempo e é também a principal forma que as crianças têm de aprender. Por isso, quando os especialistas defendem que um aluno condicional deve esperar pelos 6 anos e ficar mais um ano a brincar, estão também a defender que ele faça certas aprendizagens fundamentais, mas sem estarem submetidas às regras mais conservadoras da sala de aulas.
“Na Finlândia, por exemplo, brincar faz parte do sistema de ensino e as crianças só aprendem a ler quando entram para a escola aos 7 anos”, argumenta a neuropediatra Mónica Vasconcellos.
“O brincar é fundamental para o desenvolvimento psicomotor da criança e a brincar também se aprende. É importante para desenvolver competências sociais, para tentar planear estratégias e solucionar problemas, para saber lidar com a frustração e com a adversidade e estimula a capacidade de imaginação”, diz, concluindo que brincar é exploração, adaptação e aprendizagem.
“Até os leõezinhos aprendem a brincar como vão caçar mais tarde”, acrescenta a psiquiatra da infância e adolescência Isadora Pereira. “O brincar é o aprender das crianças. É a misturar água com terra que percebem que o que fica não é bem água nem terra, já é uma coisa diferente, uma lama. No brincar está a curiosidade que é o motor para a aprendizagem. É o querer saber, é o querer descobrir. A brincadeira é isso, não é uma aprendizagem formal, mas é a primeira”, diz Isadora Pereira.
Voltando a falar dos condicionais, dos que são ainda muito imaturos para a entrada no 1.º ciclo, a pedopsiquiatra lembra que exigir a uma criança estar sentada durante uma hora a ouvir um professor pode ser muito difícil para quem não está preparado. “Há meninos que vemos que ainda têm muita energia, que ainda têm muito para aprender a brincar, precisam de correr, de explorar. Vai ser um suplício pô-los nessa posição, de ter de estar ali, cingido àquele lugar, atento. E vão eventualmente desenvolver uma aversão a essa situação”, argumenta.
E a brincar pode aprender-se todos os dias. Na praia, uma criança de 5 anos pergunta à mãe se pode ir buscar água molhada. Em vez de corrigi-la, a mãe pergunta-lhe onde vai ela buscar a água seca. A criança pensa e acaba por responder que água seca não existe. Isso é aprender, diz Júlia Vale.
“Às vezes os alunos dão-me o casaco e dizem-me ‘professora, pendura-me’. Eu pego neles aos colo para pendurá-los no cabide. Eles riem e percebem a diferença de pedir para pendurar o casaco. Aprender a brincar é isto. Se o miúdo quiser pôr a mesa, o pai deve deixar. E vai-lhe dizendo, o garfo fica do lado esquerdo, a faca do direito. É uma lição de lateralidade. Na rua, a mãe diz-lhe para não ir do lado direito por causa dos carros. Dizer salta o muro, agora vai para cima, agora vai para baixo, sobe, desce serve para aprender conceitos. O dia a dia tem imensas situações de aprendizagem se o adulto estiver atento e disponível para essas aprendizagens”, sublinha Júlia Vale.
A educadora de infância ressalva que até a parte de brincar na casinha das bonecas é uma aprendizagem, em que se reproduz socialmente o dia a dia, em que as crianças fingem que cozinham e tratam dos seus bebés.
“O faz de conta estimula, é um jogo simbólico. Ora o que é a matemática se não a simbolização? O que é a interpretação de um texto ou de um poema se não a simbolização? Tudo tem a sua raiz nestas formas iniciais de aprendizagem. Há uma expressão do João dos Santos, o que foi o primeiro pedopsiquiatra português, que diz mais ou menos isto — ‘é a ler o mundo que eu aprendo a ler’. A brincadeira é importante para tudo. Os pais não querem autómatos, não é?”, interroga Isadora Pereira, defendendo que com as aprendizagens formais ficamos apenas executores.
“Posso ser um brilhante executor, mas toda a outra parte afetiva e de socialização e de desenrasque — de procurar soluções fora da caixa — tudo fica para trás”, argumenta.
Explicar aos pais que brincar não é uma perda de tempo nem sempre é fácil, mas é importante que os encarregados de educação percebam que quando as crianças chegam a casa ganham mais em ir brincar do que voltar a sentar-se a uma mesa para fazer os trabalhos de casa.
“Seria tão mais interessante chegar a casa e brincar em vez de estar a fazer trabalhos de casa. Sou uma pessoa de fé, tenho esperança que a flexibilização curricular, que está a começar este ano com um projeto piloto, possa criar novos modelos. Temos de parar de aumentar o tempo que os miúdos estão na escola. Alguns deles passam mais de 12 horas na escola e ainda levam trabalhos para casa. É horrível. Já começa a haver alguma atenção por parte de algumas escolas privadas para esta questão dos trabalhos, mas os pais também devem refilar. Eu fiz a minha quota parte de chatear toda a gente. Os pais têm de ter noção que têm este poder de reivindicar”, defende a terapeuta familiar Helena Gonçalves Rocha.
Lembra um professor da sua filha que arranjou uma estratégia de ensinar matemática aos alunos enquanto jogavam futebol. Faziam números, somas e subtrações enquanto davam pontapés na bola e Helena Gonçalves Rocha acredita que isso funcionou melhor do que estar na sala de aula a debitar informação.
“A brincadeira tem algo completamente mágico que é o não ter objetivo, não ter uma finalidade”, sublinha Ana Teresa Brito, da Fundação Brazelton/Gomes Pedro. “Ela flui nas crianças e elas vão usufruindo dessa brincadeira na sua forma mais plena. Quando observamos uma criança a brincar e a vemos envolvida — que é uma das questões mais fundamentais da aprendizagem, a capacidade de atenção, de regulação, de persistência — a mobilização que ela tem é total.”
As crianças brincam desde que nascem, diz, e assim vão aprendendo. “O bebé brinca primeiro com o seu corpo, depois com o dos pais, depois com os objetos, e se olharmos com atenção vemos o que ele está a ganhar a partir dessa brincadeira a cada momento. Se conseguirmos observar esse envolvimento, percebemos que no fundo é uma paixão por descobrir a vida, a si próprio, e do ponto de vista da aprendizagem é o motor maior, querer saber, saber mais, encontrar significado no que se faz, é aí que encontramos a fundação para depois, noutros níveis de ensino, podermos ser mais exigente a níveis abstratos, mais duros, menos intuitivos. O Brazelton tem um princípio extraordinário: usar o comportamento da criança como a sua linguagem. Ali, a brincar, está a dar e a receber. Com a televisão estão muito atraídas, mas pouco envolvidas. A brincar temos ação sobre as coisas e depois, na idade escolar, essa brincadeira transforma-se em jogo, em jogo social com os pares.”
A Ana Teresa Brito, doutorada em Estudos da Criança, pedimos um último conselho para quem tem filhos condicionais. “Eventualmente diria, conte-me como é o seu filho. O que ele mais gosta de fazer, que interesse tem pelo que o rodeia, como é que ele é quando há necessidade de aprofundar um conhecimento, se gosta, se se motiva. Seria uma conversa muito interessante para ter e para poder sossegar os pais. Entrar um ano mais cedo não é necessariamente fazer com que a criança fique mais pronta para poder aprender e para poder ter sucesso naquilo que são as suas aprendizagens. Tendencialmente, diria: se a puder deixar brincar, deixe. Depois ouço-me a dizer isto e estou eu própria a admitir que esse gozo da brincadeira se perde a partir do 1.º ciclo e também penso porque é que isso tem de se perder.”
Júlia Vale também acredita que não é por ir a correr para o 1.º ano que as crianças terão um futuro brilhante à sua frente em termos académicos e nem acredita que esse deve ser o objetivo primordial dos pais.
“As pessoas deviam querer que os filhos fossem as melhores pessoas do mundo, não os melhores alunos. As melhores pessoas não se fazem com resultados escolares — também se fazem assim, claro — mas é essencialmente com a educação para a cidadania que se tornam melhores. Essa é a educação que vai fazer a diferença”, conclui.