Índice

    Índice

Os adversários chamam-lhe jocosamente “cassete”, os comunistas “coerência”. O PCP alega que já tem as mesmas posições sobre a Ucrânia, incluindo algumas das mais controversas, há muitos anos — o que é verdade. Por outro lado, as circunstâncias mudaram (desde logo o início de um guerra) e a opinião pública e os outros partidos tornaram-se menos tolerantes às posições dos comunistas portugueses — que até na Europa são exceção pela forma como resistem a condenar com todas as letras a invasão russa.

Uma análise às posições do PCP nos últimos oito anos (entre fevereiro de 2014 e março de 2022) mostra que muito do que é o argumentário comunista (em muitos pontos similar ao de Moscovo e dos separatistas pró-russos) já existia em 2014 por alturas da revolução “Euromaidan” e da anexação da Crimeia pela Rússia.

As referências aos nazis ucranianos, a defesa do governo pró-russo, as críticas à NATO, aos EUA e à União Europeia e a legitimidade da Rússia em defender-se perante movimentações em países vizinhos são tudo pontos que o PCP defende de forma coerente há mais de oito anos. Embora haja textos nestes anos que mostram uma desilusão com o regime de Putin (criticado em alguns casos pelo PCP na defesa do Partido Comunista da Rússia), não há uma crítica direta a Moscovo e muito menos pelas movimentações militares na Ucrânia.

Os textos e intervenções do PCP na Assembleia da República e no Parlamento Europeu mostram que para o PCP há três grandes culpados: a NATO, os EUA e a UE. Quando ensaia um outro culpado, o PCP refere-se apenas ao Governo ucraniano (em referência a governos pró-europeus de Kiev, como o atual de Zelensky) e nunca ao regime de Putin. Eis as várias posições do PCP nos últimos oito anos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

PCP considera “Euromaidan” um “golpe de Estado”

As posições do PCP sobre a Ucrânia arrancaram pouco depois do início do movimento Euromaidan — manifestações que pediam uma viragem para a Europa e contra o governo pró-russo de Viktor Ianukovytch  — logo no último trimestre de 2013. Começaram por ser artigos do jornal Avante!, mas o primeiro comunicado só aparece a 25 de fevereiro de 2014. Precisamente oito anos e um dia antes daquele que é o início (de facto) deste conflito, a 24 de fevereiro de 2022.

É neste primeiro comunicado — que ocorre três dias depois do impeachment de Ianukovytch, votado pelo Parlamento ucraniano — que o PCP utiliza, pela primeira vez a expressão “golpe de estado” para se referir a esta revolução ucraniana.

Perante a recente e dramática evolução da situação na Ucrânia, o PCP expressa a sua condenação pelo autêntico golpe de estado levado a cabo pelos sectores mais reaccionários da oligarquia ucraniana com o apoio do imperialismo, após meses de desestabilização e de escalada de violência, desencadeadas após o anúncio da suspensão da assinatura do acordo de associação com a União Europeia em Novembro passado”.

Gabinete de Imprensa do PCP — 24 de fevereiro de 2014

O PCP diz que os protestos e a queda do Governo são uma retaliação pelo facto de o então Governo ucraniano ter anunciado que suspendia a assinatura do acordo de associação com a União Europeia. O que o comunicado comunista não refere é que a Ucrânia recuou nesse acordo por pressão russa, à qual o então presidente Ianukovytch, cedeu.

O PCP denuncia e condena a brutal ingerência e desestabilização dos EUA, da UE e da NATO na situação interna da Ucrânia que – promovendo e apoiando as forças de extrema-direita, neonazis e xenófobas e fomentando o exacerbar de tensões, de divisões e clivagens –, visa assegurar o domínio político, económico e militar deste imenso país, de forma a avançar na sua escalada de tensão e estratégia de confronto com a Federação Russa, realidade que representa uma acrescida ameaça à segurança e à paz na Europa e no Mundo.”

Gabinete de Imprensa do PCP — 24 de fevereiro de 2014

Desde o início do conflito ucraniano (ainda na fase das tensões internas entre Oeste e Leste), o PCP colocou sempre as culpas da instabilidade política e social de Kiev numa troika ocidental: EUA, UE e NATO. Os comunistas portugueses olharam para a revolta popular pró-europeísta como um instrumento do Ocidente para aumentar a “escalada de tensão e estratégia de confronto” com a Rússia. Há algo premonitório neste comunicado com mais de oito anos: o PCP avisava que este ato seria uma ameaça à segurança e à paz na Europa e no Mundo”. Foi isso que aconteceu.

João Ferreira no Parlamento Europeu atira a “forças xenófobas”

Na sequência do Euromaidan, a Rússia decide anexar a Crimeia. O Parlamento Europeu responde com um debate a que chama “A invasão da Ucrânia pela Rússia”. O eurodeputado do PCP, João Ferreira, começa por contestar logo o mote do debate.

O título deste debate “A invasão da Ucrânia pela Rússia” – adoptando uma formulação que não vingou no Conselho Europeu – é sobremaneira elucidativo sobre a abordagem da maioria deste Parlamento à situação na Ucrânia.”

Declaração de João Ferreira no PE– 14 de março de 2014

Para João Ferreira era abusivo falar em invasão da Ucrânia, mesmo que a Rússia tenha anexado a Crimeia. O eurodeputado dizia então que o título é “sobremaneira elucidativo” daquela que era a abordagem da maioria dos deputados à situação na Ucrânia.

Nem uma palavra sobre a brutal ingerência e desestabilização dos EUA, da UE e da NATO na situação interna da Ucrânia que – promovendo e apoiando forças de extrema-direita, neonazis e xenófobas e fomentando o exacerbar de tensões, de divisões e clivagens –, visa assegurar o domínio político, económico e militar deste imenso país.”

Declaração de João Ferreira no PE– 14 de março de 2014

Como já tinha acontecido no comunicado anterior, o PCP acusava o Ocidente — o que mantém nos dias de hoje — de promover e apoiar forças de extrema-direita, neonazis e xenófobas na Ucrânia. A xenofobia que o PCP alegava existir era de nacionalistas ucranianos contra a comunidade russa no país (que estaria assente nos conflitos com nacionalistas russos no Leste, nomeadamente na região de Dunbass).

O apoio à anexação da Crimeia

A 20 de março de 2014, dois dias depois da anexação da Crimeia pela Rússia, Albano Nunes, histórico comunista e então membro do Comité Central, justificava o ato do Kremlin no jornal Avante!.

Por mais que o im­pe­ri­a­lismo clame contra a «ile­ga­li­dade» do re­fe­rendo de 16 de Março na Cri­meia e ameace com san­ções, a ver­dade é que nem os media que deram co­ber­tura ao golpe de es­tado em Kiev con­se­guem ocultar que, em con­traste com a vi­o­lência e o terror da praça Maiden, as­sis­timos na Cri­meia a uma inequí­voca ex­pressão da von­tade po­pular onde (como nas ima­gens de ale­gria que nos che­garam da Praça Lé­nine em Sim­fe­ropol) é pos­sível ver a espe­rança de re­con­quistar muito do que o de­sa­pa­re­ci­mento da URSS des­truiu, a par de uma inequí­voca re­jeição do fas­cismo que, na Cri­meia como por toda a Ucrânia, per­pe­trou crimes que per­duram na me­mória do povo.”

Através deste artigo publicado no Avante!, o PCP legitima o referendo feito pelas autoridades russas na Crimeia e que tenta justificar a anexação daquele território pela Rússia. Para os comunistas, o que aconteceu na Crimeia (que, de facto, já era de maioria russa) foi “uma inequívoca expressão da vontade popular”. O PCP assume também aqui expressões de algum saudosismo da antiga Unioão Soviética, dizendo que este ato tornou possível “a espe­rança de re­con­quistar muito do que o de­sa­pa­re­ci­mento da URSS des­truiu”. Seguiam também umas ‘bicadas’ a Putin pelo seu afastamento do modelo soviético, com o autor do texto a registar o “abismo” que existe entre a extinta “URSS so­ci­a­lista e a Rússia ca­pi­ta­lista”.

PCP pressiona Governo de Passos a não alinhar pela bitola europeia

Exigindo do Governo português uma postura consentânea com a Constituição da República e o não envolvimento em manobras de ingerência na Ucrânia, o PCP reafirma a sua solidariedade com os trabalhadores e o povo ucranianos e as suas profundas aspirações a uma Ucrânia livre da ameaça fascista e da ingerência imperialista, soberana, independente e próspera, de paz, democracia e progresso social.”

Gabinete de imprensa do PCP — 5 de maio de 2014

O PCP emitiria novo comunicado em maio de 2014 sobre o “agravamento da situação na Ucrânia”, em que volta a falar de um golpe promovido por “forças de natureza fascista e nazi, com o apoio dos EUA, da UE e da NATO.” Os comunistas apelam ao Governo português, então liderado por Pedro Passos Coelho, que não se envolvam em “manobras de ingerência na Ucrânia”, num apelo a que não Portugal não alinhasse com a União Europeia e a NATO na posição relativamente à Ucrânia (condenação da invasão da Crimeia e elogio ao novo regime).

Outra das grandes preocupações do PCP nos comunicados de 2014 é o processo em curso da ilegalização do Partido Comunista da Ucrânia, algo que denuncia por várias vezes ao longo desse ano.

Do mesmo modo, o PCP expressa a mais viva indignação e preocupação face ao agravamento da situação humanitária na Ucrânia que resulta da criminosa operação armada conduzida no Leste do país, em que têm sido ostensivamente visados “alvos” civis.

Gabinete de Imprensa do PCP — 11 de julho de 2014

O PCP nunca critica a operação dos separatistas pró-russos no Leste da Ucrânia e até elogia a “vontade popular da Crimeia”, mas critica as operações do regime ucraniano saído do Euromaidan em próprio território da Ucrânia, nomeadamente na região do Dunbass.

Reiterando a solidariedade com os trabalhadores e o povo ucranianos e todas as forças que se levantam contra a ameaça neofascista e o poder dos oligarcas e do grande capital, em prol de uma Ucrânia livre, soberana, democrática e de progresso social, o PCP volta a apontar as responsabilidades das grandes potências na crise ucraniana, particularmente, dos EUA e da UE.

Gabinete de Imprensa do PCP — 11 de julho de 2014

O PCP volta a isentar a Rússia pela instabilidade no país e textualmente escreve que aponta “as responsabilidades das grandes potências potências na crise ucraniana, particularmente, dos EUA e da UE.

Condenar a Ucrânia que enfrentou os pró-russos na AR

Chegou então o momento em que, pela primeira vez, o PCP leva o assunto Ucrânia à Assembleia da República. Nos últimos dias — já depois da invasão Russa iniciada em fevereiro de 2022 — os comunistas têm divulgado nas redes sociais um voto de condenação “da situação da Ucrânia e de solidariedade com o povo ucraniano”. Isto porque alegam que na altura PS e PSD votaram contra a este voto que se solidarizava com a Ucrânia.

Nesse voto de condenação, de 25 de julho de 2014, o PCP volta a apontar à NATO e denuncia a “brutal campanha de repressão e perseguição levada a cabo pelas autoridades de Kiev”.

(…) a Assembleia da República, reunida a 25 de julho de 2014, delibera: 1. Solidarizar-se com as populações vítimas das brutais ações militares levadas a cabo pelas autoridades de Kiev na região do Donbass; 2. Condenar a perseguição e ataques que têm sido perpetrados pelo regime de Kiev contra diversas forças políticas e, em particular, a tentativa de ilegalização do Partido Comunista Ucraniano;3. Exigir ao Governo Português que tome uma atitude de condenação das ações militares levadas a cabo pelas autoridades ucranianas contra o seu próprio povo e das ações persecutórias contra diversas forças políticas.

Voto de condenação apresentado na AR — 25 de julho de 2014

O PCP — que defende várias vezes que o Governo português não se deve imiscuir nos assuntos internos de outros países — aqui exigia clarametne ao Governo português, então liderado por Passos Coelho, que condenasse as ações militares de Kiev (que então já tinha afastado o Governo pró-russo de Viktor Ianukovytch) da Ucrânia na Ucrânia.

O voto acabou rejeitado com com votos contra do PSD, do PS e do CDS e votos a favor do PCP,
do BE e de Os Verdes.

Interpelação a Mogherini no Parlamento Europeu

O PCP não desistiu de denunciar as manobras do Governo pró-europeu da Ucrânia. A 11 de fevereiro de 2015, durante um debate sobre a Ucrânia com a presença da então alta representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Federica Mogherini, a eurodeputada do PCP, Inês Zuber, defendia uma “solução pacífica”.

Sra, Mogherini, concordo consigo de que necessitamos de uma solução pacífica. Mas uma solução pacífica não se constrói diabolizando uma das partes do conflito. No último dia 15 de Janeiro, a organização HumanRightsWatch repetiu a acusação de que as forças de Kiev alvejam áreas civis indiscriminadamente e acusou o primeiro-ministro ucraniano de usar bombas de fragmentação e lançadores múltiplos de rockets. Porque é que os EUA enviaram instrutores militares para a Ucrânia e porque é que as forças de Kiev estão a usar munições da NATO nos ataques a Gorlovk?”

Intervenção do Parlamento Europeu — 11 de fevereiro de 2015

O PCP contestava ainda o facto de a Europa diabolizar uma das partes do conflito (a pró-russa) e também o facto de os EUA enviarem instrutores militares para a Ucrânia e de utilizarem “munições na NATO” contra os separatistas pró-russos do Donbass. Os comunistas defendiam ainda o “direito de resistência” dos militares apoiados pela Rússia os “fascistas e ultra-nacionalistas” apoiados por um governo de Kiev pró-euro

Os atropelos à democracia e aos direitos humanos continuam a caracterizar o dia-a-dia da Ucrânia. A nomeação para conselheiro das forças armadas de Dmitry Yaroch, líder do Pravy Sector, força paramilitar de matriz nazi-fascista que tem espalhado o terror por todo o território, constitui mais um sinal da deriva autoritária e antidemocrática do actual governo golpista da Ucrânia. DmitryYaroch é procurado pela Interpol, tendo-lhe sido atribuída a missão de integração de batalhões de voluntários no exército com o apoio de instrutores norte-americanos, presentes no território desde meados de Março último.

Pergunta escrita do PCP à Comissão Europeia — 15 de abril de 2015

Em dezembro do mesmo ano, o PCP ainda emitiria outra nota de imprensa a condenar a ilegalização do Partido Comunista da Ucrânia.

António Filipe critica embaixadora na AR (PSD lembra Holomodor)

A 17 de fevereiro de 2017, o PCP conseguiu apresentar um voto de condenação sobre a situação na Ucrânia que — ao contrário de todos os outros anteriores — foi aprovado pela maioria dos deputados. O voto de condenação dizia que o processo de ilegalização do Partido Comunista Ucraniano era um “grave atentado ao exercício de direitos, liberdades e garantias fundamentais”. PS, BE, PCP, PEV e PAN votaram a favor e PSD e CDS votaram contra. Este voto provocaria uma guerra entre o PCP e a embaixadora da Ucrânia com honras de plenário em março desse ano.

Agastada com a aprovação por esta Assembleia de um voto de condenação da ilegalização do Partido Comunista da Ucrânia pelas autoridades de Kiev, a Sr.ª Embaixadora da Ucrânia decidiu usar as páginas da imprensa portuguesa, de forma arrogante e sobranceira, para atacar violentamente a Assembleia da República por defender as liberdades democráticas. Era bom que a Sr.ª Embaixadora entendesse que o País em que está acreditada é um País soberano e democrático e que, ao contrário das autoproclamadas autoridades de Kiev, a Assembleia da República é um órgão de soberania democraticamente legitimado pela vontade do povo português.

Intervenção de António Filipe na AR — 3 de março de 2017

O deputado António Filipe faz duras críticas à embaixadora da Ucrânia e sugere que Kiev não tem um regime democrático. No mesmo texto o deputado comunista ataca o PSD que acusa de, “num de subserviência, curvar-se perante a arrogância da senhora Embaixadora e pedir-lhe humildemente desculpa pela suposta afronta”.

A ira do PCP contra o PSD nessa intervenção tinha ainda outra justificação: os sociais-democratas tinham apresentado nesse mesmo dia um voto para condenar o Holodomor ou a Grande Fome de 1932 e 1933 na Ucrânia, que considerava um “genocídio” causado “pelo regime comunista totalitário de Estaline, que terá causado a morte a cerca de sete milhões de cidadãos ucranianos”. António Filipe voltaria à carga:

Afirmar, como pretende o voto do PSD, que a fome de 1932/1933 foi um ato de genocídio perpetrado pelo poder de Moscovo contra o povo da Ucrânia é uma tal falsidade que vem convergir com a violenta campanha de provocação contra a Rússia, lançada a partir do poder instalado em Kiev.

Intervenção de António Filipe na AR — 3 de março de 2017

O PCP negava assim que o Holomodor tivesse sido provocado pelo regime de Moscovo e dizia que isso era apenas o PSD a alinhar com os nazis ucranianos.

Nos anos seguintes continuaram a sair artigos no jornal Avante! sobre a Ucrânia, mas passariam mais de dois anos até que o PCP voltasse ao assunto “Ucrânia”, o que voltaria a acontecer por via do envio de uma pergunta à Comissão Europeia.

A alegada reabilitação do fascismo na Ucrânia

A 10 de outubro de 2019, a eurodeputada comunista Sandra Pereira dirigiria à Comissão Europeia uma pergunta que encapsulava boa parte do pensamento do PCP sobre a Ucrânia e o seu regime político (o atual presidente, Volodymyr Zelensky, tinha então sido eleito há seis meses). Os comunistas começavam, nesta nota, por criticar o financiamento europeu a um país que chama “paradoxalmente de revolução” o que foi, na verdade, um “golpe de Estado” que levou a uma junta governativa “de cariz fascista”. E desde então, defendem os comunistas portugueses, sucederam-se “perseguições, agressões e violações dos direitos tanto das populações como de organizações políticas”, como o partido comunista ucraniano.

São inúmeros os relatos de perseguições, agressões e violações dos direitos e liberdades das populações bem como de organizações sociais, sindicais e políticas – com destaque para o processo ainda em curso de ilegalização do Partido Comunista da Ucrânia (PCU). Simultaneamente é conhecida por parte das autoridades ucranianas a promoção, legitimação e até institucionalização da acção de milícias abertamente de cariz fascista, a reabilitação e elogio histórico do fascismo e a glorificação dos colaboradores com o nazi-fascismo.

Pergunta de Sandra Pereira à Comissão Europeia — 10 de Outubro de 2019

E é verdade que em 2015 a Ucrânia adoptou um conjunto de novas leis vulgarmente conhecidas como de “descomunização”, proibindo o termo e os símbolos comunistas. O PCP prosseguia argumentando que “é conhecida a promoção, legitimação e até institutionalização da ação de milícias abertamente fascistas”. A referência será provavelmente a grupos como a unidade militar Azov, considerada de extrema-direita e que inclui membros neo-nazis. Depois de ter sido apoiada pelo Governo ucraniano, que reconheceu que o seu exército era demasiado fraco e precisava de ajuda, em 2014, a unidade foi efetivamente integrada nas Forças Armadas ucranianas e está a lutar contra a Rússia.

Ainda assim, embora Putin use uma suposta vontade de “desnazificar” da Ucrânia como forma de justificar a invasão, não só o próprio presidente Zelensky é judeu e conta, na sua família, vítimas do Holocausto como a extrema-direita continua a ser uma pequena minoria política no país (nas eleições de 2019, uma coligação de partidos desse lado do espetro não conseguiu sequer atingir o mínimo de votos, 5%, para entrarem no Parlamento – ficou pelos 2,15%). Fora dos cargos políticos, há de facto relatos de violência de grupos radicais contra minorias como a comunidade cigana e LGBT denunciadas em relatórios de organizações como a Human Rights Watch e a Amnistia Internacional.

Em defesa de Lukashenko

A 17 de setembro de 2020, o Parlamento Europeu aprovava uma resolução em que rejeitava frontalmente os resultados das “chamadas eleições presidenciais” que tinham acontecido há pouco mais de um mês na Bielorrússia e em resultado das quais – “em flagrante violação de todos os standards internacionalmente reconhecidos” –  Aleksandr Lukashenko tinha sido “eleito”. Por conseguinte, o Parlamento recusava reconhecer Lukashenko como presidente e acrescentava a isto uma “condenação nos termos mais fortes” da “repressão violenta de protestos pacíficos” no país e a “constante intimidação e perseguição” de manifestantes, opositores e jornalistas independentes.

A resposta do PCP chegaria no mesmo dia.

A inaceitável resolução aprovada no PE insere-se na operação de ingerência e desestabilização contra a Bielorrússia, que visa, entre outros aspectos, a imposição de uma política de privatização, de desmantelamento e de controlo externo de sectores estratégicos da economia deste país, e o propósito do alargamento da influência e domínio dos EUA, da NATO e da UE.

Declaração de voto de Sandra Pereira no PE — 17 de setembro de 2020

Para o PCP, a crítica ao pró-Putin Lukashenko não passava de uma operação de “desestabilização” para alargar a influência de Estados Unidos, Nato e União Europeia. Seria, aliás, o mesmo “guião” que levara “ao golpe de Estado e guerra na Ucrânia, marcada pela violência fascista”.

O Parlamento Europeu deveria, assim, abster-se de tomar posições sobre as eleições bielorrussas e “respeitar o direito do povo bielorrusso a decidir do seu presente e futuro” – embora observadores independentes, como a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, tenham assegurado que as eleições que deram a Lukashenko o seu sexto mandato seguido (com 80% dos votos, segundo os números oficiais) não foram “livres nem justas”.

A “solidariedade” com o povo ucraniano e o regime “agressivo” em Kiev

Um voto de “solidariedade com o povo ucraniano face à escalada agressiva do regime de Kiev”. Era este o título do texto que o PCP apresentava a 30 de abril de 2021, no Parlamento nacional, para criticar a “grave escalada das ações militares do regime de Kiev na região do Donbass”, voltando assim à tomada de posições contra o Governo ucraniano e a favor dos separatistas pró-Rússia.

Em Fevereiro, as forças armadas da Ucrânia anunciaram que haviam iniciado a preparação para «acções ofensivas em meio urbano», tendo-se verificado o significativo aumento da concentração de meios militares ucranianos na zona de delimitação do Donbass, assim como a intensificação dos bombardeamentos contra os territórios das auto-proclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk, causando novas vítimas mortais entre a população.

Voto do PCP no Parlamento português — 30 de abril de 2021

Mais uma vez, e como tem acontecido desde que a invasão da Ucrânia começou, o partido argumentava que a revolução – ou “golpe de Estado” – de 2014 era a origem da violência no Donbass, onde se encontram os dois territórios separatistas, Lugansk e Donetsk, que Putin veio reconhecer como independentes três dias antes de invadir a Ucrânia. De novo, a crítica do PCP era contra “o poder antidemocrático que conta com o apoio dos EUA, da NATO e da UE”. No mesmo voto, o PCP referia ainda uma marcha em homenagem a uma unidade militar da Alemanha nazi realizada na Ucrânia.

Já em junho do mesmo ano, o PCP subia o tom contra a NATO. A cimeira que se realizava então em Bruxelas, argumentava, mostrava a “perigosa estratégia” que visava assegurar o domínio “hegemónico” norte-americano pelo mundo fora.

A Cimeira da NATO que hoje se realiza em Bruxelas representa um novo passo na perigosa estratégia que visa reforçar este bloco político-militar como um instrumento de ingerência e agressão ao nível mundial, para a imposição do domínio hegemónico dos EUA e de outras potências imperialistas sobre os povos do mundo.

Gabinete de imprensa do PCP, 14 de junho de 2021

Acusando a NATO de ser responsável por “décadas de guerras e agressões”, de ter um “longo historial de apoio ao fascismo e a golpes de Estado” e de ter uma estratégia de confrontação com a China e a Rússia, o PCP alertava para “os sérios riscos de tal estratégia”. E falava concretamente no exemplo da Ucrânia, onde, argumentava, com o apoio da NATO “assumidos herdeiros e admiradores dos crimes do nazi-fascismo desempenham um papel instrumental na estrutura de poder após o golpe de 2014”.

Na altura, como agora, o PCP acusava ainda a NATO de ser um “sorvedouro de gigantescos recursos” para servir o militarismo e a guerra. E criticava o Governo português por se “associar ao perigoso projecto do reforço da NATO, objectivo e política que está em afronta à Constituição”.

A invasão que começou como uma “provocação contra a Rússia”

A 15 de fevereiro de 2022, começavam as referências mais explícitas à “situação no Leste da Europa”, que nesta nota de imprensa o PCP resume a uma “escalada de confrontação promovida pelos EUA e a NATO contra a Rússia”, “sustentada por uma intensa campanha de desinformação” e que constituiria “uma séria ameaça à paz”.

A acção agressiva dos EUA e da NATO intensificou-se durante as últimas semanas, com a instalação de mais meios e contingentes militares no Leste da Europa – incluindo o apoio militar à Ucrânia –, acompanhada da ameaça de imposição de novas sanções económicas contra a Rússia. Assume uma particular gravidade a inclusão da Ucrânia na estratégia agressiva do imperialismo. Tendo presente os acontecimentos ocorridos desde 2014, o PCP alerta para o perigo de acções de provocação (…).

Gabinete de imprensa do PCP — 15 de fevereiro de 2022

Seria com este argumentário que o PCP viria depois explicar a invasão russa, argumentando que as “provocações” da NATO e o seu “avanço” e “cerco à Rússia” teriam resultado na guerra em território ucraniano. Isto apesar de o próprio Putin ter admitido não considerar que a Ucrânia tenha direito a existir, por ser, na verdade, uma parte da Rússia. Mesmo assim, para o PCP, as “ameaças” da Ucrânia é que estariam a levar à “deslocação de forças militares da Rússia dentro do seu próprio território, na zona junto à fronteira com a Ucrânia” – eram quase 200 mil os soldados russos preparados, junto às fronteiras, nos dias anteriores ao início da invasão.

Nesta nota de imprensa, o PCP acrescentava uma referência à ação do Governo português, argumentando que deveria “intervir para favorecer o desanuviamento da situação” em vez de se “inserir na dinâmica que alimenta o clima de tensão”.

A 22 de fevereiro surgia um primeiro comunicado já depois de Putin anunciar a sua intenção de reconhecer a independência de Donetsk e Lugansk, em que se atribuía, mais uma vez, as culpas pela tensão e pela “decisão da Federação Russa” a Estados Unidos e NATO:

A actual situação e seus desenvolvimentos recentes são inseparáveis de décadas de política de tensão e crescente confrontação dos EUA e da NATO contra a Federação Russa, nos planos militar, económico e político, em que avulta o contínuo alargamento da NATO e o sistemático avanço da instalação de meios e contingentes militares deste bloco político-militar cada vez mais próximo das fronteiras da Federação Russa.

Gabinete de imprensa do PCP — 22 de fevereiro de 2022

Já depois do início da invasão, e de várias vozes comunistas ironizarem durante vários dias com a hipótese de tal vir a acontecer, o PCP publicou nova nota de imprensa. O texto era batizado como um apelo à “promoção de iniciativas de paz e diálogo”. Mais uma vez, culpava EUA e NATO, não falava em invasão ou guerra – antes em “operações militares de grande envergadura” – e apelava à “urgente desescalada do conflito”.

Aqui aparecia a primeira crítica a Vladimir Putin, mas não pela invasão: o ataque do PCP era dirigida ao discurso em que Putin criticara, dias antes, Lenine, que considerava o “autor” da Ucrânia. Desta vez, o PCP deixava claro que a Rússia é um país “capitalista”, sem identificação ideológica com os comunistas. Putin partilha, sim, outra convicção com o PCP: a sua oposição aos Estados Unidos e à NATO. Mesmo assim, e apesar de se mostrar irritado com a “grosseira deformação” que o discurso de Putin fizera sobre a “notável solução” da União Soviética, o PCP voltava a sublinhar: “não seria expectável” que a Rússia não reagisse ao “cerco militar” da NATO.

O PCP sublinha que a Rússia é um país capitalista, cujo posicionamento é determinado, no essencial, pelos interesses das suas elites e detentores dos seus grupos económicos, com uma concepção de classe oposta à do PCP. Posicionamento que teve expressão, nomeadamente, nas declarações de Putin proferidas no início desta semana que constituem uma grosseira deformação da notável solução que a União Soviética encontrou para a questão das nacionalidades e o respeito pelos povos e suas culturas.

Gabinete de imprensa do PCP — 24 de fevereiro de 2022

O isolamento no Parlamento Europeu

A posição do PCP voltaria a dar que falar logo a 1 de março, com os eurodeputados comunistas a votarem contra a resolução do Parlamento Europeu que condenava a invasão da Ucrânia.

“São urgentes iniciativas e medidas que abram caminho à negociação e à paz. Mas, o que esta resolução faz é dar força à escalada, ao incremento da guerra, e dificultar o cessar-fogo e a solução negociada que se impõe no interesse dos povos e da paz mundial”.

Gabinete de imprensa do PCP no PE — 1 de março de 2022

Para os comunistas, a resolução viria “impor uma visão unilateral” a favor do Ocidente e instigar à confrontação e à guerra, ignorando as “provocações de EUA e NATO”. Essas provocações não são, neste documento, consideradas uma justificação direta para a invasão (termo que já tem, nos últimos dias, entrado nas intervenções de dirigentes do PCP, embora sempre seguido de críticas ao papel da NATO, EUA e União Europeia).

Desta vez, o PCP refere simplesmente que as provocações “antecederam” a decisão de Putin – garantir que isso não significa que a invasão seja justificável tem sido uma tarefa constante para todos os dirigentes e militantes do PCP que se têm pronunciado publicamente sobre o assunto.