Reportagem em Nova Iorque, EUA
Olhando à volta, dificilmente pode ser negado que Phil Deforrese, de 63 anos, é a única pessoa com idade para ser avô no cruzamento da rua 38 com a Quinta Avenida, em Nova Iorque. Tudo o resto, são netos. Phil não é de cá: veio desde o estado do Oregon, na costa oeste do país, para festejar os 35 anos de casamento com a mulher. Era com ela que estava, dentro de um táxi a caminho de um restaurante onde tinham reserva, quando a sua marcha foi interrompido por um bloco de dezenas de milhares de jovens em direção à Trump Tower, a morada de Donald Trump até este se mudar para a Casa Branca. “Não é o meu Presidente! Não é o meu Presidente”, gritam.
Primeiro, quando viu o que se passava ainda dentro do táxi, Phil abriu a janela e começou a gritar em direção à multidão. Depois percebeu que não ia sair dali tão cedo. Pediu ao condutor para parar o taxímetro, abriu a porta e, contra a vontade da mulher, foi para o lado do desfile de millennials. Lá chegado, este baby-boomer dizia-lhes: “Deixem-se de coisas, o povo fez a sua escolha”.
Phil é parte da história destas eleições. Assim que teve idade para votar, registou-se no Partido Democrata. Desde então, este camionista que entretanto já se reformou, votou sempre nos candidatos democratas e nunca lhe tinha passado pela cabeça votar em alguém do Partido Republicano. Até que apareceram Hillary Clinton e Donald Trump. “Eu nunca poderia votar nela, porque ela é a cara do pior que há neste país, ela é a corrupção”, diz. Por isso, votou nele. “E estes miúdos estão todos chateados porque ele ganhou. Então não aceitam a democracia, é isso? Eles podem andar todos na universidade mas não são educados. Eu não estudei e sou mais educado do que eles”, garante. “Eles estão é demasiado preocupados em dar atenção às suas emoções em vez de serem racionais.”
Mas esta não é a única história destas eleições. O outro lado da história de Phil é a dos jovens que votaram maioritariamente em Hillary Clinton — nem sempre porque queriam que ela chegasse a Presidente, mas sobretudo porque não queriam ver Donald Trump a entrar pelas portas da Casa Branca. Por isso, quando ouvem Phil a dizerem-lhe “deixem-se de coisas, o povo fez a sua escolha”, alguns deles respondiam-lhe “ela teve mais votos”. Mas a maior parte era mais direta, atirando-lhe secamente um “fuck you”.
Como é que se vai falar de política à mesa do Thanksgiving?
As sondagens à boca das urnas (ver infografia) das eleições desta terça-feira confirmam as divisões que já estavam mais do que descritas antes de sequer terem sido abertas as urnas. Se os brancos votaram em Donald Trump, as minorias preferiram Hillary Clinton. Aqueles que não foram à universidade escolheram o republicano e os que têm formação superior puseram a cruz ao lado do nome da democrata. Os mais rurais e os subúrbios quiseram Donald Trump, ao passo que as cidades tentaram eleger Hillary Clinton.
Porém, estas divisões são apenas isso: divisões. À exceção das diferenças étnicas, todas as outras divisões acontecem à distância, sem que as duas partes alguma vez se vejam frente a frente. E, mesmo nas diferenças étnicas, é ainda claro que ao final do dia, na hora de voltar a casa depois do trabalho, os brancos voltam para os melhores bairros e as minorias regressam a outros com pior fama.
Existe, porém, uma clivagem onde a coabitação é comum, regular e por vezes até constante: a etária. Sob o mesmo teto estará o jovem que votou em Hillary Clinton e os seus pais e avós, que votaram em Donald Trump. É esse o cenário que se vai ver um pouco por todo os EUA a 24 de novembro, Dia de Ação de Graças, ou Thanksgiving. Até lá, faltam exatamente duas semanas, que é tanto tempo quanto os filhos e netos têm para seguirem as palavras de Phil e não insultarem qualquer pessoa acima dos 40 anos que lhes peça o sal ou o caldo para contrariar a secura do peru.
Emma, artista de 27 anos, já tinha previsto este cenário. Este ano, a casa dos seus pais vai ser o local de reunião da família inteira para o Dia de Ação de Graças. Porém, depois de umas trocas de comentários mais amargas sobre as presidenciais entre familiares, Emma pediu e os pais concordaram: os tios-avôs não podiam ser convidados. “Eles apoiaram o Trump e, sinceramente, já lhes ouvimos tantas coisas que achámos todos que era melhor não estarmos perto deles nos próximos tempos”, diz.
“Podes passar aquele rap que se chama ‘Fuck Donald Trump?'”
Quando fala com o Observador, na Quinta Avenida, Emma ainda tem os olhos vermelhos de ter chorado durante horas a fio na noite anterior. Ainda não passaram 24 horas desde que Donald Trump se sagrou o vencedor das eleições presidenciais. Mais tarde ou mais cedo, os olhos voltarão ao normal. Mas, ainda assim, garante que nunca vai aceitar o resultado de 8 de novembro e as suas consequências. “Eu não quero aceitar o que acabou de se passar com o nosso país, é impossível ver uma coisa destas e avançar como se nada fosse”, justifica.
“O Trump vai para lá de tudo o que é normal e aceitável em 2016. É um criminoso, é inconstitucional, é misógino, é um porco, é racista, é xenófobo, é anti-gay, é anti-transexual…”, diz, alongando-se ainda mais na lista de insultos e rótulos que atribui ao 45º Presidente dos EUA. Ao seu lado, continuam a gritar palavras de ordem. Elas gritam “o meu corpo!”, eles devolvem “a tua escolha!”. Uns, empoleirados num semáforo da Quinta Avenida, dizem lá do alto “diz-me como é que é a democracia!”, e os outros respondem “a democracia é como isto”. E, todos ao mesmo tempo, gritam “Nova Iorque odeia-te!”, “que se f*** o teu muro” ou “México! México! México!”, olhando diretamente para a Trump Tower. E muitos seguram cartazes, desde o mais simples “Fuck You Trump” até aos mais elaborados, como “Presidente Obama, por favor, declare a lei marcial”.
Ao longo do caminho, os trabalhadores de restaurantes e lojas da Quinta Avenida interrompiam o seu trabalho para apoiá-los. Outros, que ficaram sem caminho para avançar nos seus carros, abriam as portas e passavam música. “Podes passar aquele rap que se chama ‘Fuck Donald Trump?'”, pergunta uma manifestante a um condutor, como quem faz pedido a um DJ. “Procura no YouTube.”
“A nossa sorte é que os baby-boomers vão morrer em breve”
Shiva tem 22 anos e nasceu nos EUA depois de os seus pais terem imigrado da Índia. Veio à manifestação com dois amigos e colegas do curso de Ilustração da The New School, uma universidade privada de Nova Iorque. Para o jovem estudante, o resultado das eleições “foi a consequência do racismo das gerações mais velhas deste país”. “Qualquer pessoa que tenha um mínimo de senso comum e que não viva na ilusão de que é excecional em tudo e superior àqueles que lhe são diferentes, entende isto”, explica.
“Aqueles que imigraram para este país no século XX vão ter de aceitar os que vieram agora no século XXI”, sublinha. “E as gerações mais novas estão mais bem preparadas para fazer isso do que aquelas que estão atualmente no poder e em maioria.”
Andrew, de 19 anos e amigo de Shiva, concorda com ele. “As gerações mais novas sabem melhor do que ninguém viver entre várias culturas, têm amigos de todas as etnias e na maioria dos casos sabem que isso será sempre uma vantagem”, adianta o jovem branco. Andrew está aqui para protestar contra Donald Trump, mas a verdade é que demonstra um otimismo que outros ainda tardam a vislumbrar. “O que a gente está aqui a ver, com tantos jovens nas ruas, é que os EUA vão mudar. As gerações mais jovens vão mudar isto”, garante. E será que vão manter esta linha ideológica ao longo das suas vidas, tornando-se a pouco e pouco numa maioria? “Claro que sim. O que se vai passar nos próximos anos com Donald Trump a Presidente vai ser tão forte que nenhum de nós vai esquecer.”
É também para esses dias que aponta Jasmine, de 26 anos. “Os baby-boomers [geração que nasceu entre 1945 e 1965] vão ter de se habituar à ideia de que a América já não é como era dantes. Por isso é que eles falam sempre de ‘Tornar a América Grande de Novo’, mas mesmo que Donald Trump seja Presidente há coisas que vão ser muito difíceis de contrariar”, explica.
Ainda assim, a pedido, esta jovem afro-americana faz um esforço para entrar na pele de um baby-boomer. “Se eu fosse um deles, acho que também não estaria confortável com o facto de a vida já não ser tão fácil como era para eles nos anos 50 e nos anos 60”, diz. “Mas era fácil só para eles, bastava ter-se a cor de pele errada para perceber as diferenças”, acrescenta, apontado para a tez na sua mão.
Jasmine diz que tem “o maior pessimismo” para os próximos quatro anos, mas ao mesmo tempo diz que vai deixar em stand-by “uma enorme dose de otimismo para os anos que se seguirem”. Porquê? “Porque isto vai dar a volta. O país vai mudar lentamente, a minha geração vai ser o motor disso”, garante. E a biologia, também. “Os baby-boomers ainda mandam neste país, não há dúvidas. Mas a nossa sorte é que eles vão morrer em breve.”