Estão sete pessoas em cima do palco. Umas conversam, outras aquecem a voz, mais à frente dança-se. “Pessoal, uma dança de última hora. Vamos todos dançar rancho.” Pedro Penim olha em volta, mãos na cintura, para verificar se está tudo pronto para começar. Parece aquela mãe que, antes de toda a gente chegar para o almoço de domingo, faz uma última inspeção à mesa, confirmando se não faltam guardanapos e se os talheres estão alinhados. Estranhamente, a imagem tão familiar faz todo o sentido aqui, no ensaio de “Pais & Filhos”, a peça que se estreia no Teatro São Luiz, em Lisboa, a 15 de setembro.
“Por favor, posições”, diz num tom de voz mais elevado. Está na hora de começar. Segue-se uma cena do primeiro ato desta peça que teve como ponto de partida um livro escrito em 1862 pelo russo Ivan Turgueniev. Nesta nova versão recupera-se a ideia da abolição da família, mas são acrescentados temas atuais, como choques geracionais, identidade de género, ativismo queer, importância ou não de uma ligação de sangue para se criar um núcleo familiar. Não esquecendo o texto clássico que tinha lido aos 16 anos, Pedro Penim percebeu ainda que fazia todo o sentido juntar-lhe uma narrativa que está a viver na sua vida pessoal, a gestação por substituição.
Casado com Mark Lowen, jornalista da BBC, há anos que tentam ter um filho através de um processo que está mais do que automatizado no Canadá — onde esperam que uma mulher os escolha para carregar um filho por eles — mas que ainda não é possível em Portugal. É exatamente com esse relato pessoal que começa “Pais & Filhos”, mas o foco do espetáculo é bem maior do que isso. Em palco vemos um ambiente familiar onde um jantar dá direito a tudo: filhos que querem cortar relações com os pais, um casal gay escrutinado porque quer ter um bebé biológico em vez de adotar, uma personagem que não gosta de nada e é contra tudo e até gelado. Numa sala de estar com estantes azuis cheias de livros, uma lareira para onde foi atirado o “Diário de Laura Palmer”, dois cadeirões e uma mesa comprida, as discussões não acabam e as opiniões nunca coincidem. Esses debates vão ficar na cabeça dos espectadores que forem ver a peça e vão ser continuados fora das portas do Teatro São Luiz — talvez mesmo à entrada, no renovado quiosque de cor verde petróleo onde agora é possível fazer uma paragem antes ou depois do espetáculo para beber qualquer coisa.
Muda o cenário no palco. Desce um enorme cortinado de renda, há agora uma mesa de madeira com uma jarra de flores, duas cadeiras e um espelho de corpo inteiro. Esta cena pertence ao segundo ato e conta com Rita Blanco, uma mãe que nunca teve tempo para a filha, mas que insiste muito em abraçá-la para lhe demonstrar o seu amor (nos parâmetros disfuncionais dela), uma filha (João Abreu) que não quer aquela mãe e que está ali para deixar isso bem claro. O resto não pode ser resumido. Vale a pena ser visto nas duas horas e 15 minutos em que também é possível ver as atuações de Pedro Penim, Joana Barrios, Hugo van der Ding, Ana Tang, Bernardo de Lacerda, David Costa e Diogo Bento.
As datas não podiam ser mais certeiras. Pouco depois, em novembro, Pedro Penim assume o cargo de diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II, sucedendo a Tiago Rodrigues (que se muda para o Festival d’Avignon). Encenador, ator, dramaturgo, nos próximos três anos não fará parte do Teatro Praga, companhia que criou em 1995 e com a qual produz “Pais & Filhos”. Aos 46 anos, vai assumir o maior desafio da sua carreira numa área que nem era para ter sido a sua.
Chegou a estudar arquitetura mas os cursos de teatro que começou a fazer ao fim de semana mudaram-lhe o rumo. Entrou para a Escola Superior de Teatro e Cinema e no terceiro ano fez um workshop que deu origem a uma tournée pela Europa coordenada pela companhia tg STAN. Ao seu lado, além de Dinarte Branco e Cristina Bizarro, estava Tiago Rodrigues. A experiência foi um desastre, diz ele ao Observador. O medo do julgamento dos outros é um tema recorrente da conversa que temos com ele depois do ensaio da peça.
Teve medo que, quando aos 21 anos, aceitou apresentar “Clube Disney” e depois “Art Attack” a sua carreira no teatro estivesse condenada; tem medo que, por incluir elementos pessoais nos seus textos, pareça procurar exposição; e tem genuinamente medo do impacto que “Pais & Filhos” possa ter. Antes de trocar o papel de ator pelo de diretor artístico, Pedro Penim teve 40 minutos (talvez os mais calmos que conseguirá ter nos próximos tempos) para se sentar com o Observador para uma conversa sobre o presente, o passado e o futuro.
Já conhecia o texto original de “Pais & Filhos” há muito tempo?
Sim, li-o quando tinha uns 16 anos. É um clássico russo, parece sempre um daqueles livros de literatura pesada mas, na verdade, até é bastante fácil de ler. Fixei muito a personagem do romance, o Bazarov — que aqui é a camarada que se transforma para uma outra realidade mas é essa ideia da personagem niilista, que não acredita em nada, que está contra os pais, põe em causa todas as ortodoxias da sua sociedade. Há aí uma força juvenil que é muito encantatória. O Tourgueniev, apesar de não ser novo quando escreveu este livro, pôs-se nos dois campos de uma forma muito equilibrada. Deu voz à geração dos pais, que era a dele, mas também a esses filhos revolucionários, que na altura estavam a por em causa todas as instituições. A história ficou muito tempo a martelar-me na cabeça, a pergunta do que quer dizer quando nos revoltamos, não necessariamente em relação aos pais, mas contra essa outra geração.
O Pedro revia-se nesse dilema de questionar tudo à sua volta?
Sim, e depois mais tarde até, na Escola de Teatro — agora é bastante diferente mas quando andei lá tinha um cariz muito tradicional —, de tentar propor uma coisa nova. Quando imaginamos fazer os nossos próprios projetos há sempre o pensamento de ir contra aquilo que já está instituído, fazer oposição ao que está estabelecido. A personagem de Bazarov é exagerada, mas acaba por dizer muito a uma geração que se vê perante poderes instituídos, neste caso poderes patriarcais.
Porque pegou neste texto agora?
Foi de forma mais ou menos casual. O desafio era adaptar um clássico. Não sabia ainda qual mas, como acontece muitas vezes nos meus trabalhos, juntei-lhe o ponto de partida de um facto autobiográfico e aí é que se fez um click — depois de toda a teoria que estava a ler, sobretudo teoria queer, sobre a ideia da abolição da família e outras abolições que entretanto tomaram uma dimensão grande. Houve uma espécie de encontro cósmico entre estes três elementos.
Quando começou esse processo?
A proposta do São Luiz surgiu há dois anos. Há um ano e meio encontrei este ângulo. Depois foi começar a escrever, a pesquisar.
O Pedro juntou elementos pessoais a esta versão. O que faz em palco acaba por ser uma espécie de terapia para conseguir lidar com o processo que acontece na vida pessoal?
Não, de todo. É o oposto disso. É um processo artístico e, logo aí, ele não está muito preocupado com condicionantes médicas, psicológicas. O que se pode aproximar um bocadinho dessa ideia é que os artistas muitas vezes estão a falar de coisas que lhes ocupam muito tempo, em que pensam constantemente e as ideias criativas vêm também dessa espécie de obsessão ou de grande contacto com um determinado tema. Nesse sentido, sim. É um processo da minha vida pessoal que obviamente é muito intenso e me ocupa muito tempo, mas não o faço nem por exposição, nem para tratar, nem para resolver nada.
Então é pesado, porque está sempre a remexer nesse tema.
Tem um lado libertador. Houve um cantor [Sam Smith, em 2015] que uma vez recebeu um Grammy e agradeceu ao ex-namorado por todo o sofrimento que lhe causou e disse: “O resultado disso é este prémio”. Acho esse mecanismo interessante. Pode até nem ser uma característica da nossa vida ou um sentimento muito positivo mas, por trabalharmos em arte, este métier, e sobretudo o teatro, permite usar todas essas ideias para transformá-las num objeto artístico. Isto é teatro, não importa se a vida é minha, se é real, que parte é real. Depois, o esforço é produzir um objeto artístico para o público ver, por isso não poderia afastar-se mais de terapia ou de uma coisa umbiguista. Não é de todo isso. É um ponto de partida, como acontece em quase tudo. O que me interessa é como um facto biográfico passa para o ficcional, até porque escrevi a peça a pensar nos atores e às vezes até utilizando coisas pessoais de cada um. Como é que eles podem ser gatilhos para chegar a determinados sítios na ficção. E como é que a ficção pode ser enriquecida com esses pontos de contacto com a vida real.
Há uma panóplia tão grande de opiniões nestas personagens que vamos sempre identificar-nos com alguma, é isso?
Certo, e podemos tomar partidos. Essa dimensão do espetáculo é do Turgueniev. Ele era até muitas vezes acusado de falar com muitas vozes. Às vezes não se percebia bem de que lado estava. Muitas vezes nos romances russos há uma espécie de humanização das personagens, deixam de ser tipificadas e passam a ter uma ideologia mas a sua humanidade acaba até por ser um empecilho para elas. Isso acontece muito em “Pais & Filhos”. Há uma demanda principal que é “eu quero destruir a minha família”, “eu quero dizer ao meu pai: já não sou teu filho” e isso é uma espécie de gatilho da narrativa. Estas duas pessoas vão a casa dizer que não querem mais ser filhos deles, mas essa é uma ideia que já vem de Marx, que já falava da família como um dos males. Mas, ao mesmo tempo, isso embate com as nossas emoções e com o amor. Estas personagens são humanizadas por isso, mostram as suas fragilidades, que acabam por se sobrepor até à ideologia mais pura. A teoria muitas vezes é traída pela possibilidade que a carne nos dá de sentir as coisas de forma muito intensa.
A peça aborda também os laços sanguíneos. Há uma filha que não quer ter aquela mãe e uma mãe que tem uma filha que não é bem aquilo que ela idealizou. Ao mesmo tempo, há ali qualquer coisa que as une, não é?
Claro, há uma ideia de que o sangue liga as pessoas, mas de facto sabemos que há muitas famílias que se organizam muito além do laço de sangue, há outras que estão ligadas pelo sangue e que são altamente disfuncionais, onde acontecem os maiores desrespeitos, violações, ataques à integridade física de cada um. Isso é também uma reflexão que este espetáculo propõe: até que ponto é que o laço de sangue é significativo e o que é que ele significa para cada um na sua história pessoal, que é muito diversa. Há famílias que são altamente funcionais, que é o caso da minha. Pode parecer até que faço este espetáculo porque tenho um trauma qualquer. Pelo contrário. A minha família é amorosa, no sentido de não problemática, mas há aqui uma extensão para muitos universos. Há pessoas que não têm família e que são prejudicadas por isso, porque toda a sociedade se organiza em torno da unidade familiar clássica. Há ainda um princípio de exclusão para quem não tem ou para quem foi expulso da própria família — há aqui também muitas questões de identidade de género e de identidade sexual que estão presentes no espetáculo e que muitas vezes implicam a quebra desse laço de sangue.
A ideia de “Pais & Filhos” é deixar o debate no ar? Não há aqui uma história fechada.
Certo e, de facto, aproveitei essa ideia do Turgueniev, o facto de me por, a mim que escrevi o texto, em várias cabeças e pô-las a discutir, a filosofar umas com as outras num espaço íntimo, da casa, sem querer sobrepor-me a nenhuma delas mas, ainda assim, identificando claramente que pertenço a uma daquelas gerações. O espetáculo fala também de um conflito geracional entre a minha geração [Pedro Penim tem 46 anos] e a geração que tem menos 20 anos e que está no ponto em que eu estava quando li o texto original. Eu sou agora o pai e o pai que é preciso deitar abaixo, matar, entre aspas. Tudo isto é muito complexo e começa logo no título. “Pais & Filhos” está a pôr a peça num paradigma de grandes pilares da nossa sociedade, que se organiza muito em torno de paternidade e filiação mas, ao mesmo tempo, pomo-los no masculino porque é essa a matriz do próprio texto. Mas depois o texto vai pondo isso em causa, porque é que são os “pais” e os “filhos”, porque é que são palavras masculinas?
De geração para geração há muita coisa que muda mas outras também se repetem. Ouvimos a sair da nossa boca palavras que os nossos pais diziam e que jurámos nunca repetir aos nossos filhos ou caímos no erro de exagerar alguma coisa para nos afastarmos de algo que conhecemos e não queremos. Não há um manual nisto da parentalidade, não é?
Isso é interessante porque quando se lê “Pais & Filhos” há essa ideia de manual mas acaba por ser anti-manual, no sentido em que não pretende impor nenhuma verdade.
Nesta peça não se encontram respostas?
Não, ou se calhar encontram-se muitas respostas. O espetáculo dá várias respostas, faz muitas perguntas também, e devolve a cada espectador a possibilidade de se por na sua própria experiência e, ao mesmo tempo, de se relacionar com a experiência das personagens. Obviamente, como é teatro, há sempre uma lente de aumentar em relação àquilo que seria a nossa realidade.
Como é que a sua história pessoal se encaixa na peça?
Há uma parte logo no início em que eu conto a história real, que começa a acontecer há três anos. Essa história vai sendo depois minada por vários elementos ficcionais que se transformam neste ambiente familiar e na forma como estas personagens começam a relacionar-se. O processo de gestação por substituição, que é muito complexo, levanta muitas questões éticas, morais, políticas. É a chave para o início e desenvolvimento da peça. É o ponto mais cru da minha realidade pessoal que depois vai sendo infetada por elementos inventados.
A partir do momento em que se decide ir por este caminho da gestação por substituição, questiona-se muitas vezes se vale a pena?
É uma montanha-russa de emoções porque se passa por emoções muito extremas. É um processo logisticamente complicado, eticamente também. É preciso tratá-lo sempre com pinças para fazer a coisa certa. Desistir não digo, mas muitas vezes é preciso ir buscar forças a coisas que nem sabemos bem onde estão. Passa-se, é o nosso caso, por situações bastante dramáticas. É preciso existir um ponto de encaixe para nos encontrarmos dentro do processo. Muitas vezes vou buscar essas forças ao meu trabalho. O facto de estar a escrever sobre isso, não sendo terapia, é uma forma de refletir sobre a minha vida.
Em que ponto estão?
Num impasse. Já passámos por fases mais esperançosas, outras mais dramáticas. Quem vier ver o espetáculo perceberá exatamente quais são. Estamos num tempo de alguma pausa para reflexão, mas não há nenhuma desistência.
Como é que trata de um processo destes?
A gestação por substituição não é permitida em Portugal. Por isso, o processo está a decorrer no Canadá, com uma agência canadiana, uma surrogate canadiana. Há apoios logísticos e legais. No Canadá este processo é feito de forma altruísta, o que quer dizer que não é uma troca puramente comercial, ainda que haja dinheiro envolvido. São as gestantes que escolhem o casal e não o contrário. Há todo um processo de convencimento da gestante, analisando os perfis dos vários casais que querem ter filhos. Não diria que as questões éticas desaparecem, mas muda o paradigma. Há sempre uma compensação financeira, mas há um outro valor, um valor humanitário. São pessoas que querem de facto ajudar outras pessoas que não conseguem ter filhos de forma natural. Têm essa ideia de dádiva a outrém de forma tão generosa que chega a ser comovente o facto de alguém se dispor a isso.
Acha que “Pais & Filhos” pode ajudar a reavivar ou a lançar este debate cá?
Tenho várias esperanças, uma é essa, que possa avivar esse debate, que ainda é feito de forma muito primitiva. Mas também tenho algum medo, medo de poder até ser acusado de um ato ilegal — porque, de facto, em Portugal é proibido —, se bem que aqui [na peça] não há nada concretizado, há ainda uma proteção legal suficientemente ampla. E tenho também receio pelo facto de estar a expor-me. Por ter uma vida pública de alguma forma exposta.
E vai ter ainda mais daqui a umas semanas.
Mais ainda, sim. E tenho medo que isso possa influenciar uma questão que é pessoal e íntima. No espetáculo tento protegê-la, no sentido de retirar a atenção sobre mim para que o debate seja mais amplo. O ponto de partida é esse, mas o espetáculo não é isso. Não há nada de narcísico nisto, se eu pudesse jamais partilharia com alguém.
Mas escreve muitas vezes a partir de histórias pessoais.
É um desafio para mim mesmo porque já percebi que trabalho muito assim. Utilizo factos biográficos e não consigo deixar de partir deles, mas por aquilo de que falávamos há pouco: há um investimento tão grande, um esforço que se transforma numa espécie de evidência que o objeto artístico terá de partir daí.
É engraçado, já referiu várias vezes esse medo de as pessoas acharem que quer expor-se.
Que quero tempo de antena, sim, porque penso que pode ser uma interpretação possível.
Mas a inspiração não parte sempre de algo pessoal, que conhecemos?
Sim, lá está. E muitas vezes o que importa é o ponto de chegada e não o ponto de partida. Ou seja, para mim o ponto de partida é claro, mas é mais importante para o espetáculo que se pense no ponto de chegada e esse ponto de chegada é de facto essa discussão mais alargada.
A peça vai estar em cena até ao início de outubro para depois ter margem de manobra para assumir o cargo de diretor artístico no Teatro Nacional D. Maria II?
Também. Calha bem, nesse sentido. Mas depois vamos estar no Teatro Nacional São João em fevereiro e em Paris, no Festival d’Automne, no outono do próximo ano.
Há a possibilidade de levar esta peça consigo para o D. Maria II?
Não. O espetáculo é do Teatro Praga, companhia da qual ainda faço parte — até porque ainda nem tomei posse no D. Maria, é preciso distinguir os vários momentos — e eu, como diretor artístico do D. Maria, não conto programar o Teatro Praga, pelo menos não logo.
Porque também tem receio do julgamento por poder estar a misturar as águas?
Não, acho que é só uma questão de bom senso. O futuro o dirá mas, para já, este espetáculo é do Teatro Praga e uma produção do São Luiz também. Já temos outros convites para apresentá-la em Portugal, espero que possa circular, mas nunca será uma produção do Teatro Nacional.
Toma posse no D. Maria II em novembro. Já pensou como é que vai ser o seu primeiro dia?
Já pensei na primeira reunião que quero ter e com quem, mas não posso revelar. Estou entusiasmado por conhecer os cantos à casa, o que é fundamental. Conheço-a como artista convidado, mas não como diretor. Quero conhecer bem as equipas, algumas pessoas já conheço de outras experiências profissionais. São máquinas muito bem oleadas, sabem o que estão a fazer. Tenho alguma sorte também porque a última temporada programada pelo Tiago [Rodrigues] vai começar agora, o que me dá algum tempo para deixar o pensamento fluir e não tomar já grandes decisões.
Por falar no Tiago Rodrigues, fez uma tournée pela Europa com ele [e com a companhia tg STAN] quando tinham 20 e poucos anos. Li numa entrevista que disse que fez tudo ao contrário. Porquê?
Ui, fiz mesmo tudo ao lado [risos]. Eu percebia muito bem aquela proposta e foi uma espécie de revelação porque senti que aprendi muito mais nessa experiência profissional do que em três anos de Conservatório.
Porque aí o ensino era muito tradicional?
Sim, exatamente. E ali senti pela primeira vez que havia uma liberdade ao lado de uma responsabilidade artística que me exigia muita autonomia e capacidade de decisão, não só como ator, mas também como co-criador daquele espetáculo. Mas, ao mesmo tempo, sentia que não tinha experiência suficiente para aproveitar aquilo da melhor maneira. Teoricamente eu entendi tudo muito bem, foi revolucionário para a minha vida, mas depois demorei muito tempo a perceber como é que aquilo podia fazer-se na prática.
Por exemplo, o que é que correu mal?
Os tg STAN praticam uma liberdade extrema do ator em cena. Para conquistarmos essa liberdade, precisamos de ter muita consciência das nossas capacidades e ferramentas, como ator, pensador e criador. Parece uma coisa relativamente fácil porque não há ensaios em palco, são só discussões, mas pela primeira vez no dia da estreia as pessoas encontram-se em palco e é o pânico total. Para ter segurança de chegar a esse momento é preciso que as ferramentas estejam já num sítio bastante oleado. E eu não estava aí. Tinha 20, 21 anos e não estava no ponto de maturidade que permitisse dar aquilo que eu achava que era uma resposta satisfatória. Mas serviu para, no regresso a Lisboa, saber que queria experimentar algumas daquelas ferramentas no Teatro Praga. Foi a partir dessa experiência que o Teatro Praga foi impulsionado, disso não tenho dúvidas. Permitiu-me adaptar à nossa realidade e aos nossos atores uma autonomia e criatividade e outra coisa, que até aí não tinha pensado, que é a ideia da diferenciação do projeto. É tentar fazer algo novo, diferente daquilo que os meus professores de teatro faziam. Havia essa ideia de que fazer bem era imitar, fazer igual ao que eles faziam, e isso para mim não tinha sentido. Para mim era muito claro que tinha de encontrar a minha voz, estilo, maneira de fazer as coisas, o meu próprio teatro. Para isso tinha de construir alguma coisa que necessariamente quebrava algumas coisas que a geração anterior fazia. E assim voltamos ao tema de “Pais & Filhos”, é engraçado.
Está tudo relacionado. Há pouco falava das questões da clareza na cabeça de um adolescente de 16 anos, mas mesmo para alguém de 20 e poucos anos já sabia muito bem o que queria.
Sim, tudo depende das experiências que cada um tem e como é que dá a volta a essas experiências. Para mim, esse percurso com os tg STAN foi revelador.
E depois teve outra experiência completamente distinta quando foi parar à televisão. Quando teve essa oportunidade teve receio que condicionasse o seu futuro?
Ainda estava no curso e, quando estamos numa escola de teatro, muitas vezes começamos a entrar em agências de casting.
Porque há a pressão de “quando saírem daqui têm de começar a trabalhar e há contas para pagar”?
Sim, é óbvio, há tudo isso. É preciso entrar no meio e a televisão aparece sempre como uma possibilidade extra, e que muitas vezes não tem ligação nenhuma até com o que se faz na Escola de Teatro, que os atores vão experimentando. Ou publicidade, que também fiz muitas vezes. Novelas, séries. Quando estava na Escola de Teatro — e até já me tinha estreado no Teatro Aberto —, a Patrícia Vasconcelos ligou-me e perguntou se eu queria ir fazer um casting. Eu nem sabia para o que era, mas disse que ia. Só percebi quando lá cheguei e achei que jamais ficaria.
Era para o programa “Clube Disney”, da RTP. O que lhe pediram para fazer no casting?
Era ser divertido e enérgico, apresentar desenhos animados. Eu fui ficando nas várias fases e a cada fase que passava pensava: “Mas porque é que estão a aprovar-me?” Achava que era a coisa mais absurda eu ser escolhido para apresentar um programa da Disney. Chegámos ao momento em que me disseram que tinha sido escolhido e eu fiquei com muito medo. Para já, medo que a Escola de Teatro não compreendesse e me ostracizasse de alguma maneira. Havia muito esse mito.
E de se fecharem portas?
Sim, diziam-me: “Nunca mais vais fazer nada”, “nunca mais te levam a sério”. Decidi arriscar e nunca me beliscou minimamente a notoriedade. Porque foi sempre uma coisa que fiz um bocadinho à parte, mantendo a ideia de que o teatro era aquilo de que gostava e que queria fazer. Também tive muita sorte. Mesmo sendo televisão, sempre foram projetos de muito valor pedagógico.
E, na altura, o que lhe pagavam também era cativante, não?
Obviamente, disso então nem se fala.
O que é que comprou com o primeiro ordenado, alguma coisa simbólica?
Não me lembro disso mas, quando comprei a minha casa, lembro-me de ter pensado: “Vou comprar esta casa porque fiz televisão”. Muitas vezes a televisão ajudou-me a fazer e a financiar projetos que não conseguiria fazer sem esse dinheiro. Mas realmente tive muita sorte porque os dois principais projetos que fiz, o “Clube Disney” e o “Art Attack”, são coisas de que me orgulho muito. Muitas vezes ainda sou reconhecido na rua por isso e acho que vou ser até ter 80 anos. Depois há coisas das quais nem vale a pena falar, que fiz e de que não me orgulho nada.
Isso todos nós, não é?
Completamente [risos].
“Pais & Filhos” vai estar em cena de 15 de setembro a 3 de outubro. Na sala Luis Miguel Cintra há sessões às 20 horas, de quarta-feira a sábado, e às 17h30, ao domingo. Os bilhetes custam entre 12€ e 15€. Estão disponíveis nas bilheteiras online ou no local.