Quase sete horas de viagem, mais de 400 quilómetros percorridos às escuras e, finalmente, uma luz. O pano levanta-se, a porta abre-se e Opala não pode desperdiçar a oportunidade: faz um sprint até uma distância segura, olha em volta para um reconhecimento rápido do local e esconde-se nos arbustos. Em apenas 30 segundos a lince-ibérica recém-chegada a Mértola desaparece de vista. Mas a missão está cumprida: Opala é a trigésima terceira reintrodução da espécie em território português desde 2014.
O processo é rápido — às vezes demora ainda menos que 30 segundos —, mas “nunca ninguém se sente defraudado”, diz Pedro Rocha, diretor do Departamento de Conservação da Natureza e das Florestas do Alentejo. “Estão a assistir a um momento histórico.” Não são muitas as pessoas que chegam a ver um lince-ibérico em liberdade. Nem mesmo Pedro Rocha, que já os seguiu tantas vezes pelos sinais rádio emitidos pelas coleiras. “Nunca vi um lince em estado selvagem.”
Opala nasceu no Centro de Cria de Lince-ibérico La Olivilla, em Jaén (Andaluzia, Espanha), no ano passado. Agora, chegou a altura de se separar da mãe e irmãos e estabelecer-se num território novo. Os irmãos terão nova casa em Espanha: a irmã Órbita libertada em Matachel (Badajoz) e o irmão Otero libertado em Montes de Toledo (Toledo). Já o destino de Opala vai ser traçado no Parque Natural do Vale do Guadiana — a não ser que, na busca por um território ideal, saia da região de Mértola para outra região em Portugal ou no país vizinho. A escolha do local onde é libertado cada animal é feita em pormenor pelos especialistas em genética, explicou Rodrigo Serra, director técnico do Centro Nacional de Reprodução de Lince Ibérico (CNRLI), em Silves.
Também é a genética que determina que animais formam casal em cada ano nos centros de reprodução. Nem que para isso os animais tenham de viajar de um centro para o outro — existe um centro de reprodução em Portugal e três em Espanha. “A gestão genética é pensada para manter o máximo de diversidade”, explica o veterinário — nos centros de reprodução e, tanto quanto possível, no campo. Não que os técnicos tenham qualquer interferência direta nos acasalamentos em meio natural, mas o animal libertado em cada sítio é escolhido para aumentar a diversidade genética nessa região.
Porquê Mértola e não a serra da Malcata?
A tarde de dia 14 de março começou bem para quem estava a assistir à libertação de Opala. João Madeira estava particularmente satisfeito. Já não era a primeira vez que via libertar linces-ibéricos (Lynx pardinus) na zona de Mértola, mas era a primeira vez que isso acontecia na exploração agrícola que gere.
“Vemos a agricultura que fazemos como parte da natureza. E este animal é o topo desta natureza”, diz João Madeira, gestor da exploração agrícola onde foi libertada Opala. “Estamos dispostos a gastar dinheiro para melhorar a cadeia alimentar.”
João Madeira sente-se de tal forma motivado com os objetivos do projeto que estabeleceu um protocolo com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) para melhorar o habitat do lince na exploração onde faz criação extensiva de ovinos e bovinos. Uma das medidas é melhorar as pastagens no montado de azinho, onde está instalada a exploração; a outra é construir abrigos para coelhos nesse espaço. O fim é o mesmo: garantir a presença de coelhos no local.
Cada lince-ibérico caça, normalmente, um coelho por dia. E a sua alimentação é quase exclusivamente baseada nesta presa. A presença e número de coelhos por área são assim condições fundamentais na escolha das zonas de reintrodução. Foi isso que fez a serra da Malcata ficar fora de hipótese. O concelho de Mértola, por sua vez, tinha as melhores características entre todas as zonas histórias de ocorrência do lince-ibérico em Portugal.
De 94 a 547 linces-ibéricos em 15 anos
Filha de Cynara e Fausto, Opala foi escolhida para aumentar a população do Parque Natural do Vale do Guadiana. Uma entre muitos animais reintroduzidos nos últimos anos. Em 2017, foi possível contar 547 linces-ibéricos em meio natural — entre os que foram libertados e os que já nasceram na Natureza. Mas a realidade era bem diferente no início do século: só existiam 94 animais na Natureza, com um máximo de 25 fêmeas reprodutoras (adultas e com capacidade de gerar crias), diz o veterinário Rodrigo Serra.
“Em 2000, o censo de lince-ibérico mostrou algo muito sério: não havia linces em Portugal, nem fora da Andaluzia. Só restavam duas populações: em Doñana e Andújar”, conta Miguel Simón, director do programa Life+Iberlince (2011-2018), o projeto de recuperação da distribuição histórica de lince-ibérico em Portugal e Espanha. “Começámos um projeto de conservação com o objetivo de evitar a extinção.” E, até ao momento estão a ser bem sucedidos. O estatuto de conservação do lince-ibérico, definido pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), passou de “criticamente em perigo” (classificado em 2002) para “em perigo” (em 2015).
O resultado do censos lançou o alerta e, em 2004, uma equipa de conservacionistas começou a criar uma reserva genética em cativeiro, em Acebuche (Doñana). A ideia ainda era apenas garantir que, caso os animais desaparecessem na natureza, existia um grupo mantido em cativeiro. Cerca de quatro ou cinco anos depois a ideia mudou e deu-se início ao programa de reprodução para reintrodução na Natureza. O centro de reprodução de Silves é parceiro desde essa altura.
A família de Opala conheceu de perto todo o processo e muito ensinou aos técnicos que tentavam pela primeira vez salvar o lince-ibérico da extinção. Esperanza, avó de Opala, foi a primeira cria de lince-ibérico a ser resgatada da natureza. Estava em mau estado, quando os técnicos da Estação Biológica de Doñana a encontraram, em 2011, no território da mãe. [A história contada por quem a salvou aqui.]
Cynara, a cria abandonada que se tornou numa mãe extremosa
Apesar de ter sido criada à mão, Esperanza conseguiu emparelhar-se com Jub e pela primeira vez nascia um lince-ibérico (Cynara) fruto do cruzamento de duas populações que há muito não se encontravam: uma fêmea da região de Doñana e um macho de serra Morena. “A criação de uma população em cativeiro resultante de cruzamentos de animais de Doñana e Andújar gerou uma população geneticamente saudável para a reintrodução”, diz José António Godoy, geneticista na Estação Biológica de Doñana. “Os animais reintroduzidos têm um ponto de partida melhor do que as populações que existiam na natureza. Misturar indivíduos geneticamente diferentes melhora a diversidade e a consanguinidade.”
Esperanza, mãe pela primeira vez, não conseguiu criar Cynara, que acabou por ser também criada à mão no centro de Acebuche. Com um ano, a mãe de Opala foi transferida para o centro de La Olivilla. Criada à mão, Cynara teve de aprender, sem a ajuda da progenitora, todos os comportamentos naturais da espécie. Mais dificuldade teve em socializar-se com outros linces e foi muito difícil arranjar-lhe um par. Até que acasalou pela primeira vez com Espliego em 2014. Apesar de ter sido criada à mão, Cynara tem sido uma mãe exemplar, não só com as suas já 11 crias, mas com as crias abandonadas por outras fêmeas, preparando a descendência para uma reintrodução bem sucedida.
Estando bem preparados para sobreviverem na Natureza é preciso garantir que a probabilidade de se reproduzirem com animais aparentados é mínima. A forma mais simples é conhecer bem a árvore familiar de cada indivíduo. Mas depois de os animais serem soltos, nem sempre é fácil. Uma análise a determinados marcadores genéticos (36 pontos no ADN) no sangue, pelo ou fezes dos animais permite perceber qual o genoma do indivíduo e assim ir fazendo a gestão dos melhores indivíduos a introduzir em cada região. Esta análise minuciosa e a reprodução controlada em cativeiro permitem favorecer a reprodução dos indivíduos que têm menos representação genética na população selvagem.
“[Por enquanto,] ainda estamos na fase aguda de gestão genética, é preciso escolher um a um”, diz Rodrigo Serra, diretor técnico do CNRLI. Este controlo genético apertado, conduzido pelos geneticistas, impõe-se até que a espécie consiga, por si só, manter uma elevada diversidade e baixos níveis de consanguinidade. “Queremos uma população selvagem com mecanismos próprios de gestão”, reforça. Isto será alcançado quando a população atingir um tamanho considerável (com 50 fêmeas estabilizadas no território, refere o site do ICNF) e as várias populações na Península Ibérica comunicarem entre si.
São precisas mais ligações entre as populações selvagens
Para cumprir estes objetivos, o consórcio já se encontra a preparar a candidatura ao próximo Life (financiamento da Comissão Europeia para projetos ambientais), visto que o Life+Iberlince termina no final deste ano. Pedro Rocha diz que o novo projeto ainda está em discussão, mas indica alguns dos pontos que podem vir a constar da proposta: avaliar outras áreas para a reintrodução de linces a nível ibérico; aumentar a ligação entre os territórios que têm animais selvagens e com isso trabalhar melhor os fluxos genéticos; adoptar melhores tecnologias para conhecer todos os movimentos e interações dos animais no campo; e trabalhar melhor a comunicação do projeto para o exterior.
Miguel Simón, diretor do projeto atual, acrescenta que o ideal para a população do Vale do Guadiana seria ter 20 ou 30 fêmeas reprodutoras. Neste momento existem nove ou 10, diz Pedro Rocha. As crias que estas fêmeas venham a ter este ano vão juntar-se às, pelo menos, 16 que já nasceram em meio selvagem em Portugal. Um balanço considerado positivo, especialmente tendo em conta que dos animais reintroduzidos em Portugal, ainda só morreram quatro: um por envenenamento, um por atropelamento, um por doença de felinos e outro que se julga morto porque a coleira foi cortada (embora o corpo não tenha sido encontrado).
“Estimávamos que 50% dos animais libertados morreriam, mas a percentagem tem sido menor”, diz Miguel Simón. E aponta as principais causas: doenças e atropelamentos. Envenenamento, disparos sobre os linces, armadilhas ou lutas entre os animais, são problemas menores, refere o diretor do projeto. Por isso, o mais importante é apostar no maior risco causado pelo homem: as estradas. Os responsáveis pelas vias, que também são parceiros no projeto, têm trabalhado para criarem passagens para os animais, sejam elas abaixo ou acima do nível das estradas.
Para proteger o lince basta cumprir a lei
Um dos aspetos que se tem trabalho em Portugal, tem sido a garantia de que o lince-ibérico não é vítima de armadilhas (ou envenenamento) preparadas para apanhar outros animais. “[O ICNF] só nos pediu que cumpríssemos a lei”, diz João Madeira, gestor da exploração agrícola onde foi libertada Opala. O ICNF apertou a fiscalização das práticas de controlo de raposas e sacarrabos, porque o lince pode cair nas armadilhas montadas para estes animais e isso provocou um certo desânimo nos gestores das zonas de caça, conta João Madeira, que também é caçador. Com medo de falharem nas regras impostas, os gestores cinegéticos diminuíram o controlo de predadores.
A presença de linces no terreno não preocupa João Madeira, até lhe agrada a ideia de os poder ver na propriedade que gere. Mas sabe que “no início, havia pessoas que tinham medo de ir ao campo e tinham medo que o lince lhes comesse as galinhas”. O que o preocupa é a diminuição do controlo de predadores. Como os animais da exploração estão sempre ao ar livre e fazem os partos no campo, estão mais expostos. Todos os anos perde cerca de 90 borregos (3% das crias nascidas) nos dentes de raposas, sacarrabos, javalis e até cães assilvestrados.
Apesar das restrições impostas pela lei, João Madeira defende que as regras devem ser cumpridas. O que é preciso é arranjar alternativas para controlar os predadores que não prejudiquem os linces. Também por isso é muito crítico da postura que algumas organizações do setor da caça tiveram no início do processo. “Tiveram atitudes vergonhosas.” Foram fazer seminários para Mértola para tentar convencer as pessoas a não aceitarem que os lince-ibéricos fossem ali reintroduzidos. “Vieram dizer mentiras”, conta. “Felizmente falhou. As pessoas entenderam porque é que se estava a fazer isto [reintroduzir linces].” Agora, continua, o sentimento geral é de “satisfação e orgulho”.
A informação que tem chegado às pessoas tem ajudado a que sintam o lince cada vez mais como seu e que liguem a avisar que os viram perto das estradas, com medo que algo de mal lhes aconteça. Mais difícil de controlar é a presença de presas. Os coelhos são afetados frequentemente com a doença hemorrágica viral ou com mixomatose, que faz diminuir o número de presas disponíveis. Já se tentou vacinar os coelhos e reintroduzi-los, mas as medidas não tiveram sucesso, conta Pedro Rocha. Estão sempre a aparecer novas estirpes dos vírus, o que torna mais difícil erradicá-los, explica Rodrigo Serra. O que se pode fazer, acrescenta Pedro Rocha, é criar locais de reprodução, os maroços: empilha-se três ou quatro paletas de madeira, cobre-se com um monte de terra em forma de cone e deixa-se que os coelhos escavem as suas tocas.
Linces treinados para terem medo do homem
Procurar coelhos vai ocupar uma parte dos dias de Opala. Mas o fundamental para a jovem lince neste momento é fazer o reconhecimento da área, perceber que outros linces vivem nas redondezas e estabelecer-se num território que ainda não tenha dono. Só tem um ano, mas durante a primavera, se já tiver o seu território definido, pode reproduzir-se.
Cynara, mãe de Opala, fez o melhor que pode para ensinar aos filhos os comportamentos típicos dos linces, mas os técnicos do centro também deram uma pequena ajuda. Antes de serem libertados, quando têm cerca de seis ou sete meses, todos os animais são treinados para saberem caçar coelhos e para terem medo de humanos, conta Miguel Simón. “Pregamos sustos, fazemos ruídos e movimento, de maneira a que se assustem e fujam.”
Este é um dos exemplos de técnicas que são testadas num centro e, caso resultem, são partilhadas por todos os centros. Outra das técnicas que se foi melhorando, foi a dos processos de libertação. Opala, como quase todos os animais antes dela, teve uma “solta dura”, ou seja, foi libertada diretamente no campo. Jacarandá e Katmandú, o primeiro casal a ser libertado em Portugal, teve uma “solta branda”: primeiro foram colocados num cercado, em dezembro de 2014, e só em fevereiro de 2015 as portas do cercado foram abertas. Como o casal se fixou no território, tornou-se impossível manter esta prática com outros linces naquele local: eram todos escorraçados.
Para Pedro Rocha, o projeto de recuperação do lince-ibérico é mais do que o Life+Iberlince, também inclui o trabalho com as populações locais, a auscultação social, o trabalho com os proprietários. Mas não tem dúvidas de que ter o maior Life de que há registo em termos de orçamento traz necessariamente vantagens. A maior delas é a parceria com os colegas espanhóis. Por isso é que o próximo projeto quer continuar este intercâmbio, a partilha de práticas e a construção de um caminho comum.
* O trabalho foi realizado em colaboração com Michele Catazanro, jornalista no El Periódico