Carlos Conceição veio de direta de Nova Iorque para aterrar em Lisboa. Tem várias entrevistas programadas para o dia, juntamente com o elenco da longa-metragem, “Nação Valente” (produzida pela Terratreme), que chega esta quinta-feira às salas portuguesas, depois de ter passado por cinemas americanos e de se ter estreado em Locarno. Está de blazer e camisa de cores, alimentado a Coca-Cola, mas ainda lhe resta um pouco de energia para se meter com os atores que dirigir para firmar estas duas horas alegóricas sobre os fantasmas da guerra colonial.
O luso-angolano tem 43 anos, apresentou o seu mais recente filme no New Directors/News Films em Nova Iorque, antes de um lançamento comercial a 12 de abril. No currículo conta com curtas-metragens e longas “Serpentário”, de 2019, ou “Um Fio de Baba Escarlate”, do ano seguinte. Em conversa com o Observador, foi possível mergulhar na cabeça de Carlos Conceição, um auto-denominado “rebelde recém formado”, que gosta de remar contra a maré, de ir contra aquilo que diz ser o status quo e convidar o público a participar nesse processo.
Desenganem-se aqueles que vão ver “Nação Valente” na esperança de recordar o espírito militar de uma época, marcada por uma guerra que deixou feridas abertas e ainda muitas vezes invisíveis, tanto em Portugal como em Angola. O realizador, que já tinha na gaveta uma ideia de tentar explorar, subverter e baralhar o género, não quis explorar o trauma com a lupa do passado, tal como fez a sua mãe, autora de uma tese de doutoramento sobre os efeitos do conflito. Este é, sobretudo, um filme sobre o presente, carregado de alegorias, onde um muro separa um grupo de soldados ingénuos e virgens, entre um ideal patriótico conservador e dois países que têm de seguir em frente.
[o trailer de “Nação Valente”:]
É também o filme de um realizador que parece saber perfeitamente o que está a fazer: provocar-nos subtilmente numa cicatriz fraca: “Se um espectador estiver à espera que o ‘Nação Valente’ represente a vida militar pré-25 de Abril, a vida de quem fez a luta da libertação em Angola, não vai funcionar. Nada neste filme quer representar um grupo ou uma identidade. Não é esse retrato que está aqui em causa. É uma espécie de alegoria. A metáfora mais aprofundada no filme é a do muro. Do lado de lá, está o presente, o acordar para a vida. Lá dentro, estão presos a ideias antigas”, diz.
Há John Ford e Jordan Peele nos bastidores inspiracionais desta obra, conta-nos. Zombies, fantasmas, uma Anabela Moreira provocadora a dar a chave que abre o muro para o mundo. Mas se nos filmes de guerra nos habituámos ao ruído, em “Nação Valente” temos de estar preparados para o silêncio. A câmara segue, fixa-se, movimenta-se, as imagens têm de falar por si. Diálogos? Os necessários. O realizador entra em conflito com o próprio género que quis rodar, mas não parece nada incomodado com isso. Carlos Conceição não gosta de falar de influências, ainda que possam ser evidentes, mas não se importa de ter dois dedos de conversa sobre o estado da indústria cinematográfica, quer em Portugal, quer lá fora. E isso é simples de explicar: nunca se sentiu como membro de uma classe. Nem quer. “Não papo grupos. Não gosto da ideia de pertencer por pertencer. De fazer parte da turma. Gosto de fazer as minhas cenas, se alguém precisar da minha voz e do meu voto para conseguirmos vencer um problema, ou garantir mais dinheiro para a cultura, estou lá. Contem comigo. Mas não quero fazer parte, não acho que deva.”
Passou a infância a ver filmes sozinhos em Angola, os grandes clássicos norte-americanos, com Sirk Douglas ou Vincente Minnelli, entre tantos outros. Foi só quando chegou à Escola de Teatro e de Cinema que percebeu que, afinal, havia mais gente como ele. Ainda assim, quer manter-se desalinhado, entre Portugal e Angola, dono da sua própria história. Acredita que o cinema, mesmo com o advento “monótono e mastigado da cinematografia das plataformas de streaming”, pode ser revolucionário. Aquele que olha para o ressurgimento de ideias antigas, para casos como o assassinato de Bruno Candé e diz: é preciso fazer alguma coisa. “O cinema sempre teve esse poder. A questão é se as pessoas o usam. Se os artistas usam o cinema para esse fim e se o público olha para o cinema com o fim de se elucidar.”
O Carlos esteve em Nova Iorque a apresentar o seu filme. Os norte-americanos têm uma relação especial com a cinematografia de guerra. São, muitas vezes, os heróis da história. Qual foi a reação ao verem um “Nação Valente” onde esse mito do heroísmo é, no mínimo, relativo?
A reação das pessoas que falaram comigo foi de desconcerto. Viram o filme como sendo construído de uma forma que pessoas de outras realidades espelham a sua. Este não é histórico, ou seja, é possível que os norte-americanos possam fazer paralelismos com a guerra do Vietname ou do Iraque. Essa constatação não glamorosa do conceito de conflito acaba por ser desconcertante. Deu origem a perguntas interessantes…
Como por exemplo?
Há muita gente habituada a cinema mastigado, acostumada a ver tudo em prateleiras específicas. Disseram-me: “Isto, na verdade, não é bem um filme de zombies nem um filme de guerra”. Querem que corrobore uma ideia de taxonomia mas, ao mesmo tempo, houve reações de gente que veio ter comigo, com uma determinada descrição, à espera da minha aprovação. Gosto de abrir espaço para que o espectador participe. Não gosto da ideia de um espectador passivo. Quero que ele se engaje no filme, seja porque lhe é pedido que deslinde alguns puzzles, seja porque lhes é pedido que façam uma caminhada, tal como aconteceu no “Serpentário”. O espectador tinha de participar com a sua própria paciência e disponibilidade. Neste, o que gostava era que o público tivesse a disponibilidade de participar de forma ativa.
Mas essa sua intenção não entra em duelo com um público que tem pouca disponibilidade e tempo para estar à frente de um ecrã a fazer “uma caminhada”?
Sim, esbate. O cinema de hoje parece servir para as pessoas verem quando estão entre o acordado e o adormecido. Os filmes produzidos para plataformas de streaming parecem sempre algo mastigados, a não ser que sejam de autor. Quase tudo o que tenho visto é assim. A mim interessa-me mais um cinema não hermético, que permite que o espectador interprete e chegue às suas próprias conclusões. Mas também gosto que o cinema faça com que o espectador mais cinéfilo tente interpretar as questões mais plásticas. Muitas vezes as imperfeições de um filme são o que joga mais a favor da sua autenticidade.
Mas o público de hoje está disponível para essas imperfeições?
É uma questão de hábito. Alguns filmes do Abbas Kiarostami são muito articulados sobre as suas próprias limitações e isso é muito bonito. No “Sabor da Cereja”, essa simplicidade e mesmo as suas limitações, são solucionadas pelo realizador para sugerir e não para mostrar. Mas esse nem é o caso do “Nação Valente”.
Já estava a preparar este filme há muito tempo. À segunda longa-metragem, já se pode falar de uma cinematografia de Carlos Conceição?
As pessoas dizem-me que sim, mas já o dizem desde a curta “Boa Noite, Cinderela”…
O que é que isso quer dizer?
Que reconhecem um determinado padrão estético e de preocupações narrativas que associam a um autor. Eu trabalho de forma espontânea, tento sempre que o filme novo seja o oposto do anterior. Parece que estou a sabotar a continuidade do meu percurso, porque interessa-me pouco a repetição. Mas as pessoas encontram sempre paralelismos entre filmes tão diferentes como o “Serpentário” e o “Fio de Baba Escarlate”. Agora, constatar isso, para mim, não é assim tão simples.
Mas não procura uma identidade?
É acidental. É consequência da pessoa se expressar de acordo com as suas sensibilidades e gostos pessoais.
Li algures que esta ideia vem do “Carne”, de 2010. Porquê tanto tempo à espera?
O financiamento demorou. É sempre a mesma coisa em todos os filmes. Só é feito quando chega o financiamento, infelizmente. Neste caso, demorou algumas tentativas.
Não se prendeu com um certo receio de remexer no tema da guerra colonial?
A questão da guerra e do ressurgir da extrema direita tem trazido os temas do filme para a ordem do dia. O que nos deu muitas oportunidades de repensar o “Nação Valente”. Todas essas ocasiões canalizaram-se para dentro do próprio filme. Os momentos acabaram por refletir uma nova preocupação.
O cinema português, mais até de um ponto de vista documental, tem-se debruçado muito sobre a guerra colonial. Ao mesmo tempo, parece que essas reflexões cinematográficas nem sempre tornam o tema mais visível na sociedade portuguesa. Concorda?
Se é documental, parece que está preso no passado porque se articula em testemunhos que fazem parte de uma determinada época. Aquilo que tentei fazer foi um filme sobre o presente. Fazendo um filme sobre estas temáticas, que vai do ressurgir do fascismo ao pós-guerra colonial, na verdade, concentrando-me no presente e não no passado. Foi necessário munir-me de alegorias. Usar metáforas, momentos animistas, estratagemas de cinema de género para conseguir pintar a tela de forma a convidar essa reflexão no presente. Se um espectador estiver à espera que o “Nação Valente” represente a vida militar pré-25 de Abril, a vida de quem fez a luta da libertação em Angola, não vai funcionar. Nada neste filme quer representar um grupo ou uma identidade. A personagem do Gustavo Supta não é uma representação dos militares da altura, é, talvez, do fascismo. Não é esse retrato, nem pensar. É uma espécie de alegoria em relação a essas ideias. A metáfora mais aprofundada no filme é o muro, acho. Do lado de lá, está o presente, o acordar para a vida. Lá dentro, estão presos a ideias antigas. Até tem som, tem uma espécie de patine de fábula.
O muro abre-se, que é o que acontece agora: esse ressurgimento de ideias extremistas já foi desenterrado. Mas em “Nação Valente” estes soldados são miúdos ingénuos presos a um ideal patriótico e conservador.
Eles são ilibados pela sua própria ingenuidade. Há muitos crimes que são cometidos em nome da ingenuidade.
É a ideia da Hannah Arendt sobre a banalização do mal: os capangas de Hitler estavam só a executar uma ordem de extermínio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial.
Por exemplo, sim.
A sua mãe tem um doutoramento sobre traumas de guerra. O Carlos também fez a sua investigação sobre as marcas que uma guerra como esta teve?
Não precisei. A ideia de uma personagem que está presa no passado e age como se estivesse em 1974 veio de uma pessoa específica que a minha mãe entrevistou. Estávamos nos anos 90 e ele não conseguiu virar a página. Já o caso do assassinato do Bruno Candé, que nos apanhou no início da produção, foi o derradeiro choque de realidade para mim. Pensei: sim, o filme é sobre isto, pode ser importante, pode ser quase medicinal para as pessoas. Pode ajudar a abrir os olhos, a compreender, a encontrar justiça ou redenção.
Esse caso levou-o a mexer no filme?
Superficialmente. Ajudou-me a compreender o que tinha entre as mãos. Fez-me abrir os olhos, perceber o potencial e o espectro que podia ser explorado. Para que o filme fosse o mais honesto e abrangente possível.
Falemos do papel de Anabela Moreira, uma mulher contratada para tirar a virgindade aos soldados. É ela que tem “a chave” para abrir a porta deste muro.
Uma prostituta é sempre uma mulher, em primeiro lugar. Não se define pela sua profissão. A não ser que olhemos para isto de um ponto de vista cristão, de uma personagem falível perante os pecados da Bíblia. Ela é uma Medeia, uma heroína de uma tragédia grega. Traz o presente com ela e leva-os para o lado de fora.
É ela que, para surpresa de um dos soldados, avisa que a guerra colonial já acabou.
Sim, é tudo inesperado, até para ela. Representa uma ideia de maternidade relacionada com a pátria, apesar de pátria remeter para pater. Deveríamos dizer mátria e não pátria. E isso é presentado por três mulheres-chave. E aqui não estou a dissecar o filme, estou a dizer o que pensei ao construir essa progressão: ter a freira, a virgem e a pecadora. A freira, interpretada por Leonor Silveira, é o antigo regime, o principal produto desse regime que era a religião. O principal totem. Depois, temos a Ule Baldé, com um olhar cristalino e cândido, que é livre, não tem pudor nem preconceitos. Não tem conhecimento do mal até ser tarde de mais. E a Anabela, que traz metaforicamente a tal chave. São três mães. A quarta figura será a mátria, a terra-mãe. Nesse sentido, podemos questionar qual seria a pátria de alguns soldados. Os angolanos eram cidadãos portugueses, logo, eram parte do exército português, o que é um contrasenso: tinham de lutar contra a libertação do seu próprio país.
Uma guerra constrói-se de ruído. O “Nação Valente” tem muito pouco diálogo. Qual foi o processo para contrariar, novamente, este género?
O “Serpentário” não tem diálogos. O que normalmente faço é escrever diálogos só quando são precisos. Se preciso para expor uma ideia, o diálogo vai ter de ser tudo menos positivo. Ali no meio vai surgir a ideia que precisamos de transmitir. Quando o João Cachola, outro dos soldados, diz à Anabela que ela “é má”, de certa forma está a dizer mais sobre o estado de infantilidade deles do que o estado da situação em que estão envolvidos. Para mim, um guião está pronto para filmar quando as cenas funcionam sem terem diálogos.
De onde vem esse processo?
Não sei. Foi algo que comecei a desenvolver aos poucos. Muito do cinema que gosto de ver acontece quando as imagens contam. Gosto muito de ver cinema mudo, ver os filmes do Carl Theodor Dreyer, do Murnau, ou do Chaplin, onde as cenas eram à volta de gags visuais com a câmara parada. O que acontecia era ver uma casa em desequilíbrio numa montanha, as personagens vão para a esquerda ou para a direita. Nesse sentido, o inter-título, que seria o diálogo no cinema de hoje em dia, representava o grau mais baixo de necessidade de clarificação. O cinema mudo oferece modelos de como arquitetar uma narrativa recorrendo ao mínimo possível de informação verbal.
É um toque autoral seu, porque muitos filmes são feitos agora com carradas de diálogos. Tudo é explicado, do início ao fim.
Tenho reparado que as pessoas se aborrecem quando não há diálogo.
Não estava à espera?
Não o digo em relação aos meus filmes. Mas há uma tendência para querer ver personagens a falar. O “Winter Sleep”, por exemplo, é faladíssimo do início ao fim, mas essa é uma outra arte. Por um lado, é bom que o cinema ofereça essa possibilidade, das imagens contarem a história, mas escrever diálogo também é uma arte. Há cinema cuja a pureza e originalidade está nesse diálogo. É certo que o “Nação Valente” é muito de situações, não é um estudo de personagem. Não é muito importante saber tudo sobre o passado delas.
Há um filme de animação em sala, o “Nayola” do José Miguel Ribeiro, que fala da guerra civil angolana. O filme demorou dez anos a ser feito. O José diz que agora a questão da legitimidade para falar de certos temas está mais presente. Estamos num momento em que existe uma preocupação, talvez por medo da crítica ou até do “cancelamento”, dos autores em retratar histórias que não são nossas, de minorias, de ex-colónias, de outras etnias. O Carlos nasceu em Angola, mas veio para Portugal, é um homem branco a falar da guerra colonial. Ainda tem discussões sobre a sua legitimidade?
Todos os dias. Não me define ser um homem branco. Quanto muito, define-me o contexto histórico, tenho uma herança aparente. Olham para mim e pensam: “É branco, nasceu em Angola, a família é colonialista”. Não é verdade. Pronto. Não interessa qual é a verdade, mas isto não é. O lugar de fala é falacioso muitas vezes. Os filmes têm de ser feitos, os discursos têm de ser feitos. Mas não é por eu ser branco que, sendo angolano, perco o direito a contar a minha história. Porque isto é a minha história. Se, por um lado, até defendo que há uma importância antropológica no lugar de fala e é preciso analisar caso a caso, por outro, nem todas as situações devem ser vistas à mesma luz.
O Carlos está no meio desta “luta cultural”?
Sim estou no meio. Vivi quase toda a vida em Angola, a minha mãe mora lá, tive lá a minha infância. Só recentemente é que sou colocado no papel de ter de justificar porque é que faço filmes sobre Angola. E porque é que sou angolano. Nunca me passou pela cabeça ter de justificar porque é que sou angolano. Só agora. Vivo em Portugal porque quero trabalhar cá.
Está mais alinhado à esquerda, ainda assim.
Totalmente.
Mas tem um lado anarquista.
Mantenho esse lado, sim. A anarquia é a única saída.
Tem mais a certeza agora?
Sempre tive. Nenhum sistema político parece capaz. Cada pessoa é uma ilha, é um cliché, eu sei, mas é impossível que haja uma resposta política que espalhe, reflita e…
…agrada a todos.
Não é agradar.
Então?
Que dê voz a todos. As minhas convicções, dentro do que existe disponível, viram à esquerda.
Não se foi desiludindo?
Pelo contrário. Estou cada vez mais convicto. Há uma coisa que é o que me interessa, seja de qualquer frente política for: progresso, liberdade e justiça. Acho que tudo deve ser legalizado, ainda bem que Portugal é pioneiro na legalização do aborto e do casamento de pessoas do mesmo sexo. Isso é motivo de orgulho para mim.
Dentro dessa ideia de anarquia, façamos um exercício: como é que ficaria o cinema? É que o cinema funciona sob uma hierarquia, um modelo, vai um pouco contra a ideologia anarquista.
A partir do momento em que é possível fazer um filme sozinho com o telemóvel… as hierarquias, no cinema, não servem grande coisa a não ser para organizar as equipas. Um realizador não está necessariamente num posto superior à pessoa do som.
Mas há uns que se sentem assim.
Pois, aqueles que gritam, não tenho paciência nenhuma para isso. Agora, o diretor de som, de fotografia, não são personagens que estão abaixo. Há um sistema autoral, claro, em que há um padrão, em que o realizador vem apresentar os caminhos e dar as respostas. Isso não é necessariamente uma hierarquia. É como um stencil na parede a dizer “parta-se já”. Mas acho que sobreviveria, sim. Sou a favor de se trabalhar com equipas pequenas. O “Serpentário” foi só feito por mim e pelo ator. Claro que na pós-produção também teve gente e, em certos momentos, foram mais importantes do que eu.
A anarquia não poderia individualizar-nos mais?
Isso pode ser bom.
Acha?
Na arte?
Ou em sociedade. O ser humano também vive de egoísmos.
Falta qualquer coisa à anarquia, ainda não é um sistema político. Falta-lhe o resto, uma espécie de tabela de princípios. Regras. Quando se fala em anarquia, não é preciso pensar que é apenas a ausência de regras. Acho que devia haver meia dúzia delas nesse sistema. De um ponto de vista artístico, acho que seria muito interessante. Já quanto ao lado social, nunca saberemos. Organizámo-nos ao longo de milénios para sermos isto, viver em praças, ser tudo geométrico. A democracia é uma grande invenção porque é um compromisso. Funciona melhor.
Por falar em duelos ou oposições: onde é que o Carlos se insere na divisão entre cinema de autor e cinema comercial?
Sempre achei que o cinema português não devia ser observado como sendo um género. Tem Leonel Vieira, O João Pedro Rodrigues, Fernando Vendrell, Manoel de Oliveira, Miguel Gomes ou Cláudia Varejão. Não há semelhanças. Não existem tantos parentescos, a não ser a língua do mesmo país.
Essa é a sua riqueza?
Sem dúvida. Temos muita sorte de ter a liberdade criativa que temos. Noutros países não conseguia fazer este filme. Mesmo no “Nação Valente” existiu essa diferença de perspetiva. Os produtores franceses e a Terratreme não têm o mesmo tipo de postura em relação ao realizador, de poder ou não fazer aquilo que pensa e quer. As primeiras pessoas a quem mostrámos o filme acharam que duas horas era de mais, que o que lhes dava jeito era 90, 100 minutos. Estamos a falar de papel de parede. É mais ou menos assim. Em Portugal temos mesmo sorte de não ceder a isso. Não conheço produtores que digam isso.
Ainda assim, o público português está longe do seu cinema.
Tem uma relação difícil com a língua. As telenovelas até são muito vistas, mas ninguém leva a sério uma coisa daquelas. Ir a sala de cinema ver algo durante duas horas em português pode representar um desafio a um certo público por falta de hábito. Mas voltando aos realizadores, se existe algo em comum, além de serem todos portugueses, que torna o cinema português em cinema português, é a transversalidade da liberdade. Lá fora são vistos como um objeto muito fora de comum.
Isso é bom?
Acho que sim. Não temos tamanho geográfico nem percentagem de orçamento cultural para o cinema que permita fazer mais do que cinema de autor. Existem casos que saltam um pouco fora, mas é esporádico.
Quando o “Nação Valente” vai aos Estados Unidos da América, encaixamo-lo onde nesta conversa?
Qualquer filme que se estreie lá, ou na Rússia ou na Austrália, acaba sempre por abrir uma série de portas a novos públicos. O norte-americano é quase paradigmático, tem muito por onde escolher, mas talvez por isso é que gostam de ver coisas diferentes. O mais recambolesco que existe no cinema norte-americano é o Wes Anderson agora. Pode passar por exotização, mas há abertura da parte deles.
Uma abertura que cá não temos.
Nem sempre.
Acha que o seu filme será bem recebido em Portugal?
Raras vezes foi.
Porquê?
Pode ter a ver com o ser demasiado próximo. Com a questão da língua. De se ter criado um preconceito à volta das dinâmicas do cinema português. Um público menos cinéfilo prefere ver algo por escapismo puro.
De onde vem esse preconceito? Dos autores ou do público?
De uma determinada época em que o cinema português era mais divulgado do que é hoje, o grande público ia ver o filme por isso, mas saía defraudado. Criou-se o cliché de que os filmes portugueses têm um ritmo lento. Associa-se esse lugar comum ao Manoel de Oliveira, acho o maior disparate. Basta ver um filme dele para constatar que é tudo menos isso. Acontece tanta coisa, é quase tudo tão especial e deslumbrante que não pode ser daí que venha esse cliché.
Sente-se um ovni no cinema português?
Não papo grupos. Não gosto da ideia de pertencer por pertencer. De fazer parte da turma. Gosto de fazer as minhas cenas, se alguém precisar da minha voz e do meu voto para conseguirmos vencer um problema, ou garantir mais dinheiro, estou lá. Contem comigo. Mas não quero fazer parte, não acho que deva. É importante ser independente.
De onde vem essa vontade de rumar contra a maré? Era um miúdo rebelde?
Não sei dizer, honestamente. Fui sempre uma pessoa normal, uma relação boa com os meus pais. Nunca fui rebelde, sou agora, talvez. Gosto muito de considerar os outros lados da moeda. De fazer contrapropostas pelo lado da observação. Há um lado de deliberada provocação nisso, claro, mas nunca estive armado em enfant terrible. Quero contrariar as tendências de manada que as sociedades impõem a si próprias. A política da carneirada, toda a gente por causa de um post a dizer a mesma coisa.
Isso é o que mexe mais consigo?
Se toda a gente remar para o mesmo lado, é contraproducente. Claro que os progressos obrigatórios de que falávamos há pouco, aí é preciso remar. Quem rema contra, já lá estava. Vão estar sempre.
Estamos prestes a celebrar mais um 25 de Abril. O cinema pode ser revolucionário?
O cinema pode fazer a revolução. A questão é se as pessoas o usam. Se os artistas usam o cinema para esse fim e se o público olha para o cinema com o fim de se elucidar ou esclarecer.
O “Nação Valente” tem esse poder? Não estarão as pessoas “adormecidas” para descodificar um filme que mexe alegoricamente com a guerra colonial?
Daí falar da atitude ativa do espectador. Se o filme apresentar puzzles para serem completados, o público é obrigado a sair dessa dormência passiva. Algumas pessoas não estão para aí viradas e vão-se embora.
Quanto tempo levou a fazer este filme?
Tivemos uma rodagem muito rápida, foram sete semanas em 2021, ainda em pandemia. Toda a gente a ser testada, tivemos todos os cuidados e mais alguns.
Voltou a usar uma equipa pequena?
Aqui foi tudo menos uma equipa pequena, para os meus padrões, claro. Se é para dissecar as ideias com a câmara e tentar encontrar algo novo, quanto menos, melhor.
Nessas sete semanas, já tendo a experiência de longas-metragens, teve alguma dúvida?
Precisava de mais tempo. Deviam ter sido oito ou nove semanas. Mas eram as únicas que nós conseguíamos pagar.
Em que momentos precisava de mais tempo?
Em todas as partes. Uma rodagem mais extensa e com mais meios financeiros faculta o fazerem-se menos planos por dia e assim podemos trabalhar os que temos de forma mais complexa. Ontem, no avião, o meu “vizinho” estava a ver o “Casino” do Scorsese. Sem ouvir o som, estava a olhar para aquilo e a perceber que a Thelma Schoonmaker [montadora] era doida. Tinha uma decopagem lixada, com vários movimentos de câmara, panorâmicas, a câmara sobe, corta para o contra campo, quando volta já não é o mesmo plano… são dias e dias de rodagem. Cada cena no “Casino”, que no meu filme era só num dia e tinha quatro planos, tinha para aí trinta! E dura uma semana! Ela monta aquilo de uma maneira completamente louca. Vemos o Robert DeNiro, panorâmica para a Sharon Stone, volta para o DeNiro, antes corta para a porta… é uma coisa…
Gostaria de ter esse tempo?
Quero passar pela experiência de fazer um filme com muito dinheiro, outro quase sem nenhum. Não sei se com mais orçamento seria um “Nação Valente” muito diferente. Tenho uma tendência cristalizada para fazer com que cada cena seja só um plano. Prefiro que a câmara se movimente em vez de fazer muitos cortes. Podia fazer um plano por dia, mas os argumentos que estou a escrever agora não os filmaria desta forma.
Em Portugal estudou cinema. Mas em Angola, onde e quando é que ele apareceu?
Descobri que gostava muito de ver filmes muito cedo.
Qualquer género?
Em criança tinha um interesse enorme por clássicos dos anos 50 e 60. O cinema norte-americano e britânico, Douglas Sirk, John Ford, Vincente Minelli — não necessariamente os musicais — ou o Elia Kazan.
Era um gosto que partilhava sozinho?
Sim. Muito solitário. Só descobri que havia pessoas como eu com 22 anos quando entrei na Escola de Cinema em Lisboa. Antes tinha interesses, eram meus, sobre os quais não tinha com quem falar.
Os seus pais queriam que fosse por outro caminho?
Não. Apoiaram-me muito. A minha mãe insistiu que fizesse outro curso antes, achava que não ia singrar.
E agora?
É minha fã número um. Aliás, é minha co-produtora.
Essa ideia de rebeldia não veio de uma vontade de ir contra a família?
Não, acho que não. Nunca precisei. Interessa-me mais a rebeldia social, que está associada à resistência às ideias velhas que voltam, ao status quo. Resistir contra os muros.
Escolheu Portugal por alguma razão?
Família que veio para cá.
Teria escolhido outro país?
Talvez. O mais óbvio era vir para cá. Criei uma relação em criança porque vínhamos cá nas férias. O meu pai mudou-se para cá. Entre vir para aqui ou ir para os EUA sem apoio, o mais óbvio era começar pelo que era mais garantido.
Sei que não gosta de falar de influências, mas tem memória do primeiro filme português que o tenha marcado? E que goste de rever? Dentro desta diversidade?
“Benilde ou a Virgem Mãe”. Não foi o primeiro, mas gosto muito. É um filmaço. É de terror.
O “Nação Valente” tem algum terror.
Mas o “Benilde ou a Virgem Mãe” é o Manoel de Oliveira a adaptar o Régio, mas diria que é terror. Também gosto do João César Monteiro.
Da personagem ou dos filmes?
A personagem tem uma graça inerente, mas hoje em dia seria completamente cancelado. Safou-se. Gosto do “Veredas”, do “Silvestre”, “Fragmentos de um Filme Esmola”, é a minha fase preferida dele.
No futuro, as “fases do Carlos Conceição” serão assunto?
Não sei… Vamos lá ver se vai haver outra fase depois desta.