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HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

"A Noite da Iguana". Com Nuno Lopes fomos ao abismo e voltámos

A 18 de janeiro em Lisboa, a 9 de fevereiro no Porto, o ator faz "A Noite da Iguana", de Tennessee Williams. Acompanhámo-lo entre ensaios e dúvidas e descobrimos um "gigante delicado".

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O estômago nem sempre acorda direito. Estamos a 9 de novembro de 2016 e as caras que encontramos nos escritórios dos Artistas Unidos, em Lisboa, sugerem más notícias. A manhã trouxe a confirmação da eleição de Donald Trump e as olheiras de Nuno Lopes batem certo com os acontecimentos. O ator pousa o casaco e explica-se: “Mal consegui dormir, estive a seguir os resultados a noite toda, que mundo é este?”. Não temos a resposta certa para esta pergunta mas temos a certeza que no meio de tamanha confusão há boas notícias.

O desalento à boleia de Trump gera tensão e nervosismo que vão ter de escapar de alguma maneira. E isso é tudo o que precisamos para ver nascer “A Noite da Iguana”, de Tennessee Williams. O conto do americano é de 1948, a peça é de 1961. Dois anos chave na história dos EUA. No primeiro os americanos escolhem Truman para Presidente, depois da morte de Roosevelt. No segundo toma posse John F. Kennedy. Nunca mais a América foi a mesma. Olhamos para o calendário e temos a certeza está tudo a mudar, outra vez.

Nuno Lopes senta-se. Estamos nos ensaios de mesa, está tudo a começar. E o ator sabe que para ele também nada será como antes. Enquanto o mundo muda, o dele também mudou, e a próxima viagem passa por essa América conflituosa. No palco do Teatro São Luiz, em Lisboa, a partir de dia 18, e no de São João, no Porto, a 9 de fevereiro, vai ser T. Lawrence Shannon, ou apenas Shannon, um perfeito bico de obra para a sensibilidade humana. Como gostar de um sacerdote com um fraquinho por miúdas de 16 anos, expulso da paróquia por estupro e heresia, alcoólico e sombrio, cujo emprego é guiar turistas católicos por terreno aberto de Deus nosso senhor?

"Ajuda-me bastante ver a realidade da mesma maneira que me ajuda ver como é que na ficção as pessoas lidaram com essa realidade”

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

Depois do prémio em Veneza, para melhor ator na secção “Horizontes”, “São Jorge”, o filme de Marco Martins que lhe deu a distinção, estará nas salas neste 2017 (a 9 de março). E entretanto começara já a gerar uma nova personagem. Procurámos acompanhar parte do processo, já entre ensaios.

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Primeiro ato: o método

Voltemos aos escritórios dos Artistas Unidos. Há uma decadência atraente nestas instalações, há figurinos e mais figurinos, daqueles que serviriam as marchas de Lisboa, se fosse preciso. E é daqui que nasce a nova produção desta companhia.

Dizíamos umas linhas acima que não temos sempre respostas certas, mas temos uma ou outra certeza. Esta é uma delas: a dupla Nuno Lopes-Jorge Silva Melo – encenador em questão – era um desejo antigo à espera de acontecer: “Sempre segui o trabalho dos Artistas Unidos e do Jorge, mas nunca tinha surgido a oportunidade. Quando o Jorge me telefonou e percebi a complexidade da personagem não hesitei”, avisa o ator, ou Mr. Shannon, uma dúvida que percorreu todo o processo.

Feitas as apresentações, seguimos caminho. Qual é a melhor forma de fazer uma personagem com problemas sérios com o álcool? Bebendo, talvez. Só que Nuno Lopes não bebe e convenhamos que a ética profissional dessa hipótese deixa bastante a desejar. Até porque Shannon nem sempre está embriagado, há alturas da peça em que está só a ressacar, outras em que está com tremores a sugerir delírios, outras com febre. A isto acrescente-se o facto de o protagonista estar praticamente todo o espetáculo em cena.

A 16 de novembro, já nos estúdios da antiga Tóbis – segunda casa de ensaios cedida pelo São Luiz – Nuno Lopes ainda está “à procura”, avisa antes de prosseguir: “Hoje, a primeira vez que fiz a personagem estava focado em perceber as cenas, perceber o que significa cada um dos momentos, para depois deixar que isso contagie o bêbado. Não sei se esta é a maneira certa de trabalhar, é quase como ter uma mesa de mistura à frente e saber que não se pode subir as vias todas ao mesmo tempo”. Ou seja, nos momentos em que Hannah [personagem interpretada por Joana Bárcia] ou Maxine [Maria João Luís] estão sob os holofotes, talvez não seja boa ideia tomar conta de tudo: “Se o fizer ninguém vai ouvir o que as outras personagens estão a dizer”, confessa.

"As personagens servem sempre um bocado para mostrar o ator e, portanto, tem que haver sempre um fator da personagem de que saibamos falar, que queiramos dizer com propriedade. Há uma parte do Shannon que sou eu, claro que sim."
Nuno Lopes, ator

Tudo tem o seu manual – o que seria de nós sem as três ou quatro folhas para montar aquela estante que ainda lá está em casa — e dispensá-lo seria erro de principiante que Nuno Lopes não comete: “Trabalho bastante por referências e por isso, para este papel, tenho feito duas coisas. Tenho visto muitos vídeos de alcoolismo – o YouTube veio ajudar bastante os atores – para perceber como eles agem. Depois vejo filmes, para descobrir como determinado ator deu a volta a determinada situação. Ajuda-me bastante ver a realidade da mesma maneira que me ajuda ver como é que na ficção as pessoas lidaram com essa realidade”.

Segundo ato: o amor

Que ninguém nos leve a mal, mas rapidamente nos tornamos sensíveis à luta de Shannon. O enredo decorre na varanda da pensão Costa Verde, no México – cuja gerente é Maxine Faulk, uma senhora com idade suficiente para se deixar derreter por homens mais novos e bem constituídos. A pensão tem uma daquelas vistas que torna difícil a escolha: queremos floresta ou mar? Escuridão ou horizonte?

No meio disto, o turbilhão. No grupo turístico que agora Shannon dirige está Charlotte (Catarina Wallenstein), uma miúda de 16 anos que lhe entra pelo quarto adentro sem lhe deixar grande hipótese de fuga. Sobra ainda Hannah, mulher solitária que pouco mais é que neta do seu avô, Nonno (Américo Silva). Uma espécie de Madre Teresa de Calcutá, com sensibilidade e bom senso para dar e vender, mas que nada faz por ela própria.

Imaginemos este cenário, afrodisíaco, a temperatura e a humidade a pedirem rum-coco e cerveja gelada, um bando de alemães barulhentos… tentar sobreviver a este andamento, sobretudo no caso de Shannon – com toda a carga depressiva que já lhe conferimos – é o passo mais certo para um “longo mergulho até à China”, expressão que aqui se confunde com suicídio.

A realidade de Shannon é demasiado agressiva para alguém que vive em luta com os próprios demónios, com a sua própria assombração. E o que dizer do ator que o quer representar? “Comecei por achar que o problema do Shannon era querer ser amado por alguém, e ainda acho que tem muito disso. Mas agora parece-me que o maior problema dele é que já não acredita em Deus. No final da peça, ele descobre que é preciso acreditar mais no ser humano do que em Deus. Confessa-nos Nuno Lopes, já na última semana de novembro: “Pronto estou a seguir esse caminho, a ver se funciona”.

Não foram poucas as ocasiões em que, dez minutos antes do ensaio, Nuno Lopes nos dizia: “Vou para ali concentrar-me, OK?”

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

E não é que funcionou? Claro que sim, nada de admirações. A meio de novembro Jorge Silva Melo dizia: “Desta vez já acertaram com a peça, é esta”. E Nuno Lopes respondia: “É, ainda não está boa, mas é esta”. Daí para a frente, foi sempre este jogo. De um lado os elogios, do outro a insatisfação, uma e outra vez. Não foram poucas as ocasiões em que, dez minutos antes do ensaio, Nuno nos dizia: “Vou para ali concentrar-me, OK?”. E falamos daquela concentração que Cristiano Ronaldo invejaria antes de bater qualquer livre.

“É um ator entusiasmante porque tem uma seriedade, uma capacidade de trabalho e um gosto pelo pormenor que me encantam”, confessa-nos Jorge Silva Melo já mais perto da estreia. No fim de quase todos os ensaios, Nuno Lopes dizia: “Jorge, depois precisava de ver uma dúvida contigo no final”. Diriam os leigos “qual quê, estás ótimo”. E é por isso que uns que sobem ao palco e outros veem. A natureza sabe o que faz.

Terceiro ato: o desespero

A meio de dezembro estamos cada vez mais próximos d’“A Noite da Iguana”. E numa peça com três atos cabe ao último ser o mais complexo, com discursos aparentemente intermináveis, com uma cena entre Shannon e Hannah onde Nuno Lopes está amarrado a uma cama de rede, preso por cordas, agarrado pelos muchachos de Maxine, que o impediram de — lá está — mergulhar até à China. Estão lá os tremores todos, a falta da bebida, o desespero de se ser confrontado com o óbvio: “Não me sobra muito mais”, deve pensar o sacerdote caído em desgraça.

A cena é tudo menos curta. Shannon desfeito em texturas: tanto se acalma e se desilude com o chá de sementes de papoila que Hannah o obriga a ingerir como explode e quer morrer e beber ao mesmo tempo. A densidade é tanta que faz Jorge Silva Melo ter uma apreciação das mais curiosas que apanhámos por aqui: “Nuno, tens um arco de emoções tão grande neste ato… estás a ver aquela coisa de se pedir aos atores que sejam consistentes na personagem? Não quero nada disso, quero é inconsistência”.

“O que o Nuno conseguiu aqui foi de gigante com uma enorme delicadeza, que é dele, pessoal e como artista. Uma delicadeza em não condenar a sua personagem, o Nuno não diz 'o Shannon', diz eu. Vai encontrar em si mesmo o desespero, o 'à beira do ataque de nervos' que é só dele e que ele empresta”
Jorge Silva Melo, encenador

Esta Guerra Fria que é o ato final, onde as palavras parecem tiros e facadas, é uma espécie de salve-se quem puder. Joana Bárcia, atriz que veste Hannah com uma destreza singular, admite que não queria estar no papel — literalmente — de Nuno Lopes: “É uma coisa muito esquizofrénica, tens que estar em quarenta planos em simultâneo e está sempre tudo a mudar. Ao mesmo tempo, é uma personagem super charmosa e misteriosa. Porque é que ele é tão atraente? Se reparares, todas as mulheres caem de quatro com ele. A violência inerente também é atrativa, aliada à pureza e à liberdade. Quase ninguém consegue ser livre e este Shannon consegue. Isso é sedutor e arrepiante”. Mais uma vez, já não sabemos se falamos mesmo de Shannon ou de Nuno Lopes mas isso só pode ser bom.

O cenário montado na Tóbis está bem perto do que será o final, no São Luiz. Os figurinos ajudam à aproximação. Nuno Lopes, bem como os restantes atores, já dispensam o papel na mão e quanto a Shannon há uma contenção, em certas cenas, que antes não estava aqui. Ou seja, a tal inconsistência que Silva Melo lhe pedia foi atingida que nem um relâmpago amigo, exigente mas afável, que faz bem à segurança de qualquer ator que se preze.

9 fotos

Em janeiro, Nuno Lopes sabe que já é Shannon: “O que me fez chegar lá foi o trajeto dele, dar-me conta que a cena que muda a personagem é a cena final com a Hannah. Estou a pegar muito na personagem por aí, ele tem uma vontade enorme de ser um género de pessoa que não é, essa é a sua grande luta. A Hannah, o que lhe mostra, é que se calhar mais vale desistir de tentar ser outra pessoa e passares a ser o que és, quer isso te traga felicidade ou não. Há um lado dele que me parece que fica triste com essa conformação.”, confessa.

Último ato: a luta

Não esqueceremos o início de 2017. Após o primeiro ensaio de imprensa, que aconteceu dia 4 – o mesmo que dizer o primeiro ensaio corrido com assistência, o primeiro mais a sério, com emoções mais reais – Nuno Lopes chega à Tóbis exausto. Com uma serenidade de quem gastou a barra da energia em palco e mal conseguiu dormir, tal era o cansaço. Nunca “A Noite da Iguana” esteve tão bonita como nessa tarde, à boleia de um Shannon de rastos, que trouxe o detalhe, como se uma navalha afiada tivesse cortado tudo o que era excedente.

Ou seja, quanto mais duvidarmos de quem está a nossa frente, de quem sofreu o verdadeiro cansaço — Nuno ou Shannon — mais perto estaremos do triunfo. A mudança para o São Luiz pode ter trazido à baila os pormenores técnicos, aqueles que ainda estão por arrumar até à estreia. Mas é sobretudo uma questão de escala, que de resto estamos que nem ginjas.

"Quase ninguém consegue ser livre e este Shannon consegue. Isso é sedutor e arrepiante”, disse-nos a atriz Joana Bárcia

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

Que o diga Jorge Silva Melo, que em vésperas do subir do pano já pode dormir tranquilamente, sobretudo no que ao sacerdote alcoólico diz respeito: “O que o Nuno conseguiu aqui foi de gigante com uma enorme delicadeza, que é dele, pessoal e como artista. Uma delicadeza em não condenar a sua personagem, o Nuno não diz ‘o Shannon’, diz ‘eu’. Vai encontrar em si mesmo o desespero, o ‘à beira do ataque de nervos’ que é só dele e que ele empresta”.

Nuno Lopes não questiona. Mais: está certo de que as palavras de Jorge Silva Melo foram o grande golpe que deu à sua personagem. Shannon não quer ser a pessoa que é, e o ator diz-nos que sabe bem o que isso significa. “Eu conheço essa luta, já passei por isso. Conheço esse lado da personagem muito mais do que o lado da fé porque sou ateu, muito mais do que o lado do alcoolismo porque não bebo álcool. As personagens servem sempre um bocado para mostrar o ator e, portanto, tem que haver sempre um fator da personagem de que saibamos falar, que queiramos dizer com propriedade. Há uma parte do Shannon que sou eu, claro que sim, que uso para mostrar a peça.” No fim prometemos que será difícil distinguir um do outro.

“A Noite da Iguana”, de Tennessee Williams, encenação de Jorge Silva Melo. De 18 de janeiro a 5 de fevereiro no Teatro São Luiz, em Lisboa. De 9 a 26 de fevereiro no Teatro São João, no Porto.

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