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São 56 páginas que põem fim a uma polémica que fragilizou as relações entre Portugal e Angola. Os juízes do Tribunal da Relação que decidiram entregar o processo que envolve o ex-vice-Presidente angolano, Manuel Vicente, às autoridades de Luanda consideram que, se não o fizessem, iriam trazer “uma incerteza ao destino do processo”. No acórdão, conhecido esta quinta-feira, os desembargadores, Cláudio de Jesus Ximenes e Manuel Almeida Cabral, têm consciência de que o ex-governante até pode ser beneficiado no seu País pela lei da amnistia, mas que ele está no direito de gozar do “regime jurídico mais favorável”. Por outro lado, se o caso contra ele permanecesse em Portugal e fosse declarada a sua contumácia, seria “com pouca probabilidade de êxito”.
O processo em causa está a ser julgado desde janeiro no Campus da Justiça. Manuel Vicente é acusado de ter corrompido um procurador do Ministério Público, Orlando Figueira, pagando-lhe mais de 740 mil euros em luvas para que ele arquivasse dois processos que tinha em mãos contra ele. Estão também a ser julgados o advogado que à data representava o governante angolano, Paulo Blanco, e um empresário que o representa legalmente em Portugal, Armindo Pires. Mas Vicente nunca chegou a ser constituído arguido ou notificado da acusação.
O Ministério Público (MP) acredita que o contrato que o magistrado assinou com uma empresa angolana para abandonar a magistratura terá sido feito por ordem de Manuel Vicente, como contrapartida pelos arquivamentos. Mas, em tribunal, os arguidos têm recusado que a empresa Primagest lhe pertença. No início do julgamento, os factos relativos a Vicente foram separados noutro processo-crime que será agora entregue a Angola.
O acórdão do Tribunal da Relação foi a resposta ao recurso da defesa do ex-governante angolano, que pedia resumidamente três decisões ao tribunal superior, chumbadas em primeira instância:
- Que fosse declarada a imunidade de Manuel Vicente;
- Que o processo relativo a ele foi separado dos restantes arguidos;
- E que fosse entregue às autoridades angolanas.
O Observador explica-lhe cada um destes pontos e mostra quem disse o quê.
Manuel Vicente goza de imunidade?
O que diz o Ministério Público: vice-Presidente não tem imunidade
Seguindo as leis portuguesas e internacionais, o MP considera que a imunidade de que goza Manuel Vicente enquanto vice-Presidente de Angola nunca podia “limitar o Estado português”. Considera que, uma vez que os factos de que é acusado terão sido praticados em território nacional e antes de ele ter sido eleito, foram praticados no seu interesse exclusivo e não em representação da República de Angola. O MP argumenta, ainda, que o direito internacional costumeiro prevê a imunidade de um chefe de Estado ou de Governo, ou de um ministro dos Negócios Estrangeiros, mas não de um vice-Presidente. E que o Estado português não tem que respeitar as imunidades concedidas por Estados estrangeiros aos seus “cidadãos através da lei em vigor no seu país” por factos criminosos cometidos em Portugal.
O que diz a defesa: direito costumeiro alarga imunidade a altos cargos
A defesa de Manuel Vicente, nas mãos dos advogados Rui Patrício e João Lima Cluny, aponta para o direito internacional costumeiro que, pelo menos nos regimes presidencialistas como é o caso de Angola, prevê imunidade para Chefes de Estado, de Governo e altos cargos do poder político, incluindo nestes os vice-Presidentes. Refere, também, que este regime de imunidade de que beneficia Vicente acompanha todo o seu mandato (que decorreu entre 26 de setembro de 2012 e 26 de setembro de 2017) e é relativo a atos praticados em exercício das funções ou do foro pessoal e privado. A única exceção prevista é para crimes “contra a humanidade”. Assim, considera a defesa que todos os atos praticados pelo MP e pelos tribunais portugueses violaram este regime e devem ser considerados inexistentes. Não podendo, por isso, o processo prosseguir em relação a Manuel Vicente.
O que decidiu o tribunal: tem imunidade, mas Portugal não a violou
Os juízes desembargadores dizem que só a legislação internacional poderá clarificar se Manuel Vicente goza ou não de imunidade. Afirmam que o tribunal de primeira instância teve razão ao considerar que não existe tratado ou convenção internacional ratificado ou aprovado por Portugal que confira imunidade à jurisdição portuguesa a chefe de Estado estrangeiro. No entanto, vigora o direito costumeiro internacional — o que significa que, sendo uma prática em vários Estados, gera a convicção de que é obrigatória. Trata-se de uma lei que não está escrita, mas que é um costume adotado por vários países, tornando-se assim em lei.
Nota o tribunal de recurso, no entanto, que existem dois tipos de imunidade: a pessoal e a funcional. “Os dois tipos de imunidade foram desenvolvidos para permitir que os funcionários realizem os seus negócios públicos efetivamente livres de interferência pelo exercício de jurisdição por outro Estado e, assim, assegurar a condução ordenada das relações internacionais”. No entanto, a imunidade pessoal é restrita a uma categoria muito limitada de altos funcionários do Estado, em virtude das funções que exercem, enquanto a funcional é conferida a outros agentes e funcionários do Estado. O direito internacional costumeiro prevê apenas a imunidade pessoal — ou seja, para altos cargos. Onde se inclui Manuel Vicente.
Mas, tendo Manuel Vicente exercido o cargo de vice-Presidente de Angola entre 26 de setembro de 2012 e 26 de setembro de 2017, só goza da imunidade pessoal nesse período — contrariando assim o recurso da defesa. O Tribunal da Relação não tem dúvidas que sujeitar um chefe de Estado estrangeiro, em funções, a julgamento, a medida de coação ou a ato destinado a recolha de prova e a notificação da constituição de arguido não tem “qualquer influência direta no exercício” das suas funções. Logo, não considera estes atos inexistentes, como pedia a defesa. Também considera que não pretende o direito internacional, com o regime da imunidade, limitar a independência de cada país. Logo, não têm as autoridades portuguesas no seu país que respeitar a lei angolana no que esta diz sobre a imunidade.
Quanto à separação do processo
O que diz o Ministério Público: provas só possíveis em processo único
O MP entende que a separação dos processos só seria admissível se, quando começasse o julgamento, o arguido ainda não tivesse sido notificado e se fosse necessário desencadear os mecanismos necessários à eventual declaração de contumácia — o que acabou por ser feito pelo coletivo de juízes que está a julgar o caso, logo no início do julgamento em janeiro. O MP considerou, também, que, mantendo todos os arguidos no mesmo processo, a “pretensão punitiva do Estado” ficaria melhor salvaguardada. Além disso, refere-se no acórdão, os crimes de corrupção ativa e passiva deverão ser julgados em conjunto e dependem de provas comuns.
O que diz a defesa: os processos estão em fases diferentes
Como Manuel Vicente não foi notificado da acusação, o processo em relação a ele continua em fase de inquérito. Assim, à luz da lei, estando os processos em fases diferentes (relativamente aos restantes arguidos houve acusação, instrução e estão agora a ser julgados), devem os processos ser separados.
O que decidiu o tribunal: não se pronuncia
O tribunal não se pronunciou sobre a separação dos processos, porque o objetivo de Manuel Vicente é que, caso a imunidade não seja reconhecida à luz do código penal português, o seu processo seja julgado em Angola. Por outro lado, no início do julgamento do caso Fizz, o coletivo de juízes, presidido por Alfredo Costa, decidiu logo separar o processo com os factos relativos a Vicente e avançar com o julgamento.
Quanto à delegação do processo às autoridades angolanas
O que diz o Ministério Público: entregar o processo é não prosseguir com ele
O MP defende que entregar o processo às autoridades angolanas, na parte relativa a Manuel Vicente, violaria os princípios da “boa administração da justiça” e a “melhor reinserção social em caso de condenação”, como estabelece a lei, porque as autoridades angolanas “não dariam prosseguimento ao processo”.
O que diz a defesa: manter o processo em Portugal cria “um nó”
Os advogados que representam Manuel Vicente em Portugal lembram que, apesar de a Procuradoria Geral Angolana ter recusado cumprir a carta rogatória enviada pelas autoridades portuguesas para constituir o suspeito arguido, as autoridades revelaram disponibilidade para receber o processo e segui-lo lá. Quanto à separação dos processos, consideram que manter o processo em Portugal só iria criar um impasse e um “nó internacional e processual”, violando o Direito Internacional. Que o tribunal de primeira instância “errou” ao considerar que não estavam cumpridos os dois requisitos previstos na lei para entregar um processo a outro País: o “da boa administração da justiça” e o da “melhor reinserção social em caso de condenação”. Alega, ainda, a defesa que as questões de imunidade levantadas não permitem que Manuel Vicente seja julgado em Portugal, além de ser prejudicial para o normal andamento do processo.
O que diz o tribunal: delegação é mais favorável para arguido
A lei prevê que um processo seja delegado noutro país desde que o crime em causa esteja previsto em ambos os países, para crimes puníveis por mais de um ano, que o arguido seja estrangeiro e que a delegação justifique o tal interesse da boa administração da justiça e uma melhor reinserção social em caso de condenação.
Ao contrário do que o tribunal de primeira instância defendeu, os juízes da Relação consideraram a resposta enviada por Angola à procuradora-geral portuguesa, Joana Marques Vidal, em janeiro de 2017, sobre a lei da amnistia. Respondia-lhe o então procurador-geral angolano que a lei da amnistia é aplicada a crimes cometidos por angolanos em território estrangeiro, no entanto teria que se avaliar o caso concreto. Tal só seria possível prever depois da tramitação do processo para aquele país. “Não é possível retirar a conclusão de que a delegação na República de Angola da continuação do procedimento penal” contra Vicente “não asseguraria a obtenção da boa administração da justiça ou a melhor reinserção social em caso de condenação”, lê-se no acórdão.
O tribunal considerou igualmente a resposta a uma carta rogatória de Angola, em que esta recusava notificar Vicente da constituição de arguido porque, apesar de ele já não ser vice-Presidente, a imunidade mantém-se durante os cinco anos que se seguem ao final do mandato. “A amnistia é uma figura jurídica que faz parte do sistema penal angolano, como do sistema penal português e dos sistemas de justiça modernos”, lembram os juízes. Mesmo havendo doutrina a criticar abusos desta lei.
Assim, o tribunal considerou que, a serem entregues a Angola, os factos de que é suspeito Manuel Vicente serão apreciados e as autoridades vão decidir se Vicente é amnistiado ou não. Os desembargadores têm consciência de que essa lei poderá, até, ser vantajosa para o ex-governante, não só por um possível perdão, mas também pelo facto de só poder ser julgado cinco anos após o final do mandato. Mas esses argumentos não podem servir de “fundamento válido da recusa da delegação”, argumentam. Pelo contrário, baseando-se na “dignidade da pessoa humana” prevista nas constituições portuguesas e angolanas, deve o tribunal optar pelo regime jurídico mais favorável ao arguido.
Não entregar o processo a Angola seria trazer “uma incerteza ao destino do processo”, porque, não sendo possível notificar Manuel Vicente, o tribunal acabaria por declarar a contumácia do arguido “mas com pouca probabilidade de êxito”. Assim, a “boa administração da justiça” e o interesse da “reinserção social” de Manuel Vicente, caso seja condenado, só será possível em Angola, defenderam os juízes por unanimidade.