“Ainda me lembro do Lopes-Graça nas aulas a fumar um cigarro à janela do salão enquanto a Dona Laurinda ralhava com ele”. Conceição Brandão de Sousa conhece os cantos da Academia de Amadores de Música, associação sem fins lucrativos que se dedica ao ensino artístico e musical, no Chiado, em Lisboa desde 1984. Primeiro como aluna, depois como professora, agora como parte integrante da direção pedagógica desta instituição.
Defende-a com unhas e dentes. “Exige-se muito do aluno, temos um ensino rigoroso, não é só para despejar num teste. É como um desporto de alta competição, mas o ambiente é descontraído, familiar, e isso retira sofrimento”, diz ao Observador, quase adivinhando o que está para vir. Já lá vamos. Conceição só deveria passar umas quantas horas semanais na Academia, mas acaba a fazer o horário de uma semana em apenas um dia. Está também há 25 anos no coro do Teatro Nacional de São Carlos. Não quer, por isso, que “este espaço cultural se perca” numa Lisboa demasiada virada para a frente.
Quem, como Conceição, entra na rua Nova da Trindade todos os dias vê aquilo que já é rotina: turistas de um lado para o outro a saborear a história da cidade. Ali ao lado do edifício número 11, onde se encontra a Academia, há restaurantes que servem refeições de alta cozinha e cocktails para finalizar o dia. Uma harmonia lisboeta que veio para ficar. Mas nesse mesmo edifício, outra imagem, bem mais familiar: pais e filhos vão-se reencontrando à porta para rumar a casa, com malas pesadas onde se guardam os preciosos instrumentos. Dentro de portas, ouve-se outro tipo de som. Aquele que enche concertos, que faz sonhar, alimento para os ouvidos e não só. São pianos, flautas, baterias, coros, professores como Conceição Brandão de Sousa e alunos. Azáfama quente inscrita nas pautas.
Uma escola à beira da falência, que deu a volta e que quer continuar
Agora, a Academia está prestes a sair daquela morada porque o contrato de arrendamento está a acabar. Se nada mudar, até 2023, é preciso arrumar as malas. Garante quem por lá anda que só falta vender a fração em que a Academia está instalada. A instituição goza de uma proteção especial — a de entidade de Interesse Histórico e o estatuto de Utilidade Pública Municipal — e está em conversações com a Câmara Municipal de Lisboa para encontrar um novo espaço. Há esperança de ficar onde está, mas, para isso, é preciso investimento. Ainda mais do que aquele que foi feito pelo menos desde 2018. Portanto, se for preciso sair, que seja para melhor. É preciso um espaço quase tão grande como a história desta escola. “Não fico aqui nem mais um dia a empatar se vier um milagre. Queremos chegar a um acordo e sair de forma ordeira”, conta o diretor da direção administrativa, Pedro Martins Barata, cargo que exerce há quatro anos.
Sob a batuta do risco de despejo, segue-se então viagem pelo rasto da música. Entrando, é-se transportado para outra Lisboa. A de 1938, quando a Academia de Amadores de Música se mudou para aqui, 54 anos depois da sua fundação. É um espaço grande, perto de 700 m2 mais precisamente, com várias salas numa arquitetura onde ainda restam ligações ao Convento da Trindade. Em tempos, ocupou dois andares. Do nada, depois de férias escolares, ficaria reduzida só a um. Já os instrumentos não faltam. Uns fazem parte da mobília, como um piano que vai seguir para a Fundação Calouste Gulbenkian. Outros são para proveito de 300 alunos e 40 professores que compõem a população da escola.
Conceição Sousa, diretora pedagógica
Está há 25 anos no coro do Teatro Nacional de São Carlos. Não quer, por isso, que “este espaço cultural se perca” numa Lisboa demasiada virada para a frente.
Além do nome de Fernando Lopes-Graça, músico, maestro, compositor, comunista, “figura tutelar da Academia”, que surgiu em quase todas as pessoas que falaram com o Observador, há outro que salta à vista, dito cheio de orgulho por Pedro Martins Barata: o de Carlos Bica, nome fundamental do jazz português. “Ele entrou aqui com 18 anos [hoje tem 63], o que não aconteceria noutras escolas. Se não fosse a Academia, não tinha seguido música”, conta.
É um orgulho que não se estranha, já que Pedro Martins Barata, consultor na área do ambiente, veio parar a Academia um pouco por acaso. Começou por frequentar as aulas de flauta, acabou convidado para integrar a única lista às eleições da direção. Em 2019, a instituição “batia no fundo”. Para agravar, dois anos antes, a famosa “Lei Cristas” relacionada com os arrendamentos e despejos, começava a desenhar o cenário de hoje. Na sua história, teve altos e baixos. Perdeu alunos, ganhou outros tantos. Ou seja, teve quase tantas (ou mais) vidas do que os gatos. Mas nunca deixou de existir.
Quando Pedro Martins Barata tomou as rédeas, a situação da escola era drástica. Salários em atraso condicionavam a existência da Academia. Colegas chegaram a pagar o passe social uns aos outros para que o funcionamento da escola não parasse. “Estávamos perto da falência, foi possível alcançar um acordo. Agora até temos um projeto para remodelar a Academia”, diz. Entretanto, instalou-se numa nova rede elétrica, pintaram-se salas, compraram-se novos instrumentos. Um deles, uma marimba, que custou 5,5 mil euros — com recurso a campanhas de angariação de fundos online –, guardada na sala da percussão, que representará um autêntico desafio se tiver de ser movida.
“Uma segunda casa” onde netos, filhos, pais e avós se encontram
Nesta escola todos são bem vindos, todos se conhecem, dizem-nos. Miúdos e graúdos, como Conceição Brandão de Sousa ou Pedro Martim Barata. Engenheiros, pilotos, jornalistas, quem esperou uma vida para aprender a tocar violino, o que for. 10, 20, 50, 70 anos, todos contam. O que seja. Com um horário que vai das 9h00 às 22h00. “Uma segunda casa”, diz uma das alunas antes dos pais a virem buscar.
Os protocolos com algumas escolas, públicas e privadas, permitem integrar a Academia no ensino articulado, onde os mais jovens abraçam o ensino artístico como hobby, curso (até ao 12º ano), complemento, ou como porta de entrada para o conservatório — sendo que o próprio curso do conservatório pode ser feito na Academia. Pede-se a cada um deles que se mostrem ao público, pelo menos, três vezes por ano.
Pedro Martins Barata, presidente da direção administrativa
“[o contrabaixista Carlos Bica] Entrou aqui com 18 anos [hoje tem 63], o que não aconteceria noutras escolas. Se não fosse a Academia, não tinha seguido música. […] Não fico aqui nem mais um dia a empatar se vier um milagre. Queremos chegar a um acordo e sair de forma ordeira”
E é até aí que vamos, porque em março a Academia vai mostrar o que de bom se tem feito dentro destas quatro paredes. Enquanto Conceição entrega autorizações para um próximo concerto do coro de pequenos cantores no São Carlos no salão onde o pianista José Vianna de Motta tocou “pela última vez” a 19 de dezembro de 1945 (a placa de pedra não deixa mentir), o professor de violino e orquestra Jorge Lé prepara mais uma das suas aulas individuais numa sala de ensaios mais pequena. Está à espera de mais uma aluna. Já foi professor de “netos, filhos, pais e avós”. Conhece bem os cantos à casa, pelo menos desde 1977, quando foi convidado por Lopes-Graça, sempre ele, enquanto Jorge Lé andava por Santa Cecília. “As aulas lá eram de manhã, não dava para mim. Tive convites para outras escolas, mas aqui fiquei. Criei amizade, há um certo culto na forma como ensinamos”, diz
Não quer sair. Aliás, tem medo do que virá a seguir. “O que vão pôr aqui? Nada, só cimento. Espero que respeitem a traça desta Academia”, conta. Perdeu a conta aos concertos de que já fez parte, enquanto aponta para um panfleto a propósito da comemoração dos seus 40 anos de carreira. Nota-se a tristeza. Mas se a Rua Nova da Trindade deixar de ter música, Jorge Lé deixa as aulas. Nem o ensino particular lhe interessa. Tem outra carreira, como colecionador, que precisa de cuidar. “Tenho as minhas coleções, a minha mulher, os meus netos. Tenho muito para fazer”, finaliza, antes de fechar a porta.
Se no salão grande já se ouve o coro de pequenos cantores a aquecer a voz — com máscara, porque a pandemia ainda não acabou — uma mãe está à espera para ter uma reunião com a direção pedagógica. O aluno anda muito cansado, entendeu-se que era um bom momento para falar. Na Academia há tempo e dedicação para cada um, garantem. A mãe, Elisabete, tem dois filhos a frequentar a escola, um com dez, outro com quinze anos. Vindos do Algarve, porque assim a profissão obrigou, viram na Academia a melhor forma de prosseguir os estudos musicais. A saída iminente não agrada, porque a centralidade desta instituição é a grande mais valia, além dos métodos de ensino. “Sim, a localização, sem dúvida. Não sei como vai ser se sair do Chiado. A verdade é que a música estimula outras capacidades, eles têm melhores notas, é quase como ter dois cursos ao mesmo tempo. Música é vida”, conta.
Uma das alunas que contou ao Observador que aquele espírito familiar é, talvez, o melhor que se pode destacar, é Berenice. Ao lado da sua amiga Madalena, conta que a “Academia é uma casa, não é uma escola”. Foi parar à rua Nova da Trindade por causa do pai, por tocarem os dois piano e porque também ele foi aluno desta escola. Nenhuma das duas quer seguir música profissionalmente. E nenhuma das duas sabia que a sua escola pode estar de saída do Chiado. Mas sabem que o que aprenderam nunca mais desaparece.
Maestro Jorge Lé, professor e músico
“As aulas lá [na academia de Santa Cecília] eram de manhã, não dava para mim. Tive convites para outras escolas, mas aqui fiquei. Criei amizade, há um certo culto na forma como ensinamos.”
Já para Sara Sanchez, 31 anos, aluna desde 2020, a história tem mais notas. Ficou desempregada pouco tempo antes de começar a pandemia de Covid-19, assim que regressou da Bélgica. “Durante o confinamento fiquei numa casa de família onde havia um piano. A música acabou por ser o meu escape, mantinha-me positiva. Acabei por desenvolver uma grande paixão”. Quer agora dar o salto: tornar-se professora profissional. Quando era nova estudou no Conservatório Nacional de Dança, agora faz o conservatório na Academia. Está triste pela saída, mas vai seguir a Academia para onde for. “Tem um ambiente extraordinário, desenvolvem-se relações completas. Vai muito além do ensino escolar. Mas não, não faz sentido abandonar este grupo”, diz. Hoje, Sara dá aulas de piano a alunos adultos. Um ciclo que se completa e, confessam-nos, se repete geração após geração que passa por esta Academia.