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Entrevista a Alexandre Melo, crítico de arte, ensaísta, e também artista. 6 de Julho de 2023 Galeria Balcony, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
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TOMAS SILVA/OBSERVADOR

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Alexandre Melo: a arte num país e num mercado continuamente a “recomeçar do zero”

Ensaísta, curador e crítico, tem um conjunto de obras da sua autoria na galeria Balcony, em Lisboa. A exposição intitulada “Alexandria”, é o ponto de partida para uma conversa sobre o estado da arte.

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A cabeça entre mãos – para se recordar um título de um livro de Herberto Helder –, depois um mapa de referências mental, que só o próprio criador pode conhecer verdadeiramente e, de seguida, o olhar do espectador, perdido na imensidão. Estamos em “Alexandria”, uma exposição de obras da autoria de Alexandre Melo, reconhecido curador, ensaísta e crítico de arte, que embora seja um sujeito de muitos interesses, não se considera artista, deve dizer-se. Antes, um coletor de imagens, palavras e aspetos culturais e políticos que definem a sua mundividência e o seu percurso. Num processo de caos, organização e, por fim, uma espécie de ordem visual encontra-se um espaço de produção que, esse sim, pode ser artístico. E em boa verdade já existia. Faz parte do seu percurso há décadas, mas só agora se dá a conhecer efetivamente, através da exposição que abre portas esta sexta-feira, dia 7 de junho, na galeria Balcony, em Lisboa.

Estamos rodeados de impressões, 18 para ser mais exato, pigmentadas sobre papel de algodão, produzidas recorrendo a uma coleção de papeis impressos e materiais afins reunidos ao longo das últimas décadas. São, na verdade, colagens ampliadas e fixadas como quadros únicos onde se revelam gostos e interesses, bem como linhas de um pensamento de polímata, que pode ser kitsch (conceito que não rejeita) ou uma forma de tributo à arte popular que definiu muita da estética visual que rodeia as sociedades de consumo. Mas lá iremos. Tudo começou numa viagem aos Estados Unidos, algures entre 2002 e 2003. O período que passou em Nova Iorque e em Los Angeles, com outras incursões pelo meio, revelaram um lado de colecionador de recortes, que já estava presente desde cedo na sua vida. “Tenho uma vontade de recortar que vem desde que nasci. Lembro-me de olhar para jornais e revistas e de recortar as figuras, marcas e ícones. Era no fundo um colecionar de coisas que achava graça”, explica ao Observador.

Entrevista a Alexandre Melo, crítico de arte, ensaísta, e também artista. 6 de Julho de 2023 Galeria Balcony, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR Entrevista a Alexandre Melo, crítico de arte, ensaísta, e também artista. 6 de Julho de 2023 Galeria Balcony, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

“Ao longo de anos fui juntando papeis e na hora de regressar a Portugal tinha de fazer uma seleção. Foi assim que voltei aos recortes que mais tarde comecei a combinar e a juntar em forma de colagens”

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Desafiado pelos artistas Tiago Alexandre e Nuno Alexandre Ferreira, debruçou-se assim sobre esses mesmos trabalhos que foram ganhando forma, ao acaso. São a sua “Alexandria”, em duplo sentido: uma criação que só ao próprio dizia respeito, mas também um exercício de documentação que pisca o olho à célebre biblioteca da Antiguidade. “Ao longo de anos fui juntando papeis e na hora de regressar a Portugal tinha de fazer uma seleção. Foi assim que voltei aos recortes que mais tarde comecei a combinar e a juntar em forma de colagens”, diz. Logo nas primeiras impressões, está o sonho americano, mas também a sua decadência; está o cinema, o desporto e os arranha-céus, as joias e o dólar americano. “I Wanna Be a Part of It. Uma página rara do NYT. Olha: é isto a América”, lê-se num pequeno texto presente no livrete que serve de mapa para a exposição.

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Um voyeur sentimental, entre Nova Iorque e Los Angeles

Regressamos ao processo. A origem de cada uma destas colagens, explica, não é premeditada. “Não determino antes o que vou juntar, nem penso no que vou fazer. O processo é contrário. Se quiser fazer um texto tenho que pensar no que vou dizer, onde é que quero chegar. Isso implica um esforço. Aqui não. As imagens vão se chamando umas às outras e arranjo razões puramente gráficas ou estéticas para as juntar. A partir de um certo momento, apercebo-me que há muitas vezes um tema, seja Nova Iorque, o cinema ou outra coisa, mas tudo isso surge de forma espontânea e aleatória”, sustenta.

Não é de agora o seu fascínio pelo Estados Unidos, em especial por Nova Iorque ou Los Angeles. São geografias afetivas, que, desde logo se evidenciam nalguns destes trabalhos. Estão na sua cabeça, desde a década de 1980, quando conheceu as duas cidades. As imagens que daí surgem contêm vestígios desse percurso, mas não têm uma intenção definida – a interpretação está na forma como cada pessoa pode olhar para elas. Tanto pode haver um fascínio e encantamento, como um olhar mais crítico sobre o que é a vivência norte-americana. Para todos os efeitos não deixa de ser uma forma de voyeurismo, realça, sobre um conjunto de influências que foram determinantes na forma como olha para o mundo e, em concreto para a arte contemporânea. Tal como tem defendido, é neste domínio “que existem infinitas possibilidades e uma liberdade que se reflete nos diferentes tipos de obras e de médiuns que se utilizam”.

“A arte pop foi, de facto, uma das minhas primeiras fontes de fascínio e de registo, nomeadamente o trabalho do Warhol, do Roy Lichtenstein ou do James Rosenquist. São recordações que tenho desde a adolescência e que permaneceram.”

Neste conjunto, que é também uma seleção de um acervo maior, ficamos perante uma constelação, onde está o Alexandre Melo criança, adolescente e adulto. Pelo meio há Dean Martin e Elvis Presley, os gelados do tempo da mocidade, as sapatilhas da Converse, entre muitos outros detalhes que perscrutam nesse mundo que agora se abre de forma visual. Mas há mais.

Uma Itália de símbolos e um cinema de autores

Entre as imagens que compõem estas colagens, estão paixões mais antigas e outras mais recentes do autor. “Nápoles é uma descoberta recente, uma das minhas últimas paixões, numa altura em que achava que já não me iria fascinar tanto com um lugar.” Junta-se assim Nova Iorque, Los Angeles e Salvador, explica. “À posteriori, não posso esquecer a importância das viagens, são uma forma de geografia emocional.” Não se descuram símbolos, nomeadamente em Itália, que tem também um lugar central em “Alexandria”.

Estão lá as famosas trattorias, o café, a pizza, os perfumes, a moda, a pintura barroca, bem como a seleção italiana de futebol. É um espaço de intersecção, onde existem mapas e outras latitudes que nos remetem ao Médio Oriente, a título de exemplo. São derivações de um exercício que é, em certa medida ascético. “Mas não as podias ter feito de propósito”, assegura. No livrete que acompanha a exposição, Melo faz comentários a cada obra, alguns bastante explicativos. Escreve sobre uma das peças: “Meteorologia e reportagem em Milão no Corriere della Sera, mais café, promoção de loiças, uma pintura, pizza, um rapaz sentado de costas para o Coliseu de Roma”. Há uma aleatoriedade confortável, aclara. “Só não é pretensioso, porque não é feito de propósito. O acaso começa com as coisas que estão em cima da mesa”.

Entrevista a Alexandre Melo, crítico de arte, ensaísta, e também artista. 6 de Julho de 2023 Galeria Balcony, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Como razões para o atraso nas políticas culturais, Alexandre Melo aponta o “subdesenvolvimento histórico-cultural” do país, com “séculos de boçalidade por parte das classes dominantes”

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

Se “Alexandria” se dividisse por módulos, haveria um destinado aos Estados Unidos, outro a Itália e um dedicado ao cinema – sendo que este último contagia os restantes. A série Cinemateca, como lhe chama Alexandre Melo, traz à tona Jean Luc Godard e Luchino Visconti em destaque, bem como um diálogo com a figura de Alain Delon em “Rocco i suoi fratelli” (1960). Mas há espaço para referências a Allan Dawn, Orson Welles e Lino Brocka. Trata-se de uma verdadeira sociedade do espetáculo, que é, afinal de contas, um produto do sistema capitalista e de iconização das marcas e de certas personalidades, que em boa verdade começa também na própria arte, pop, claro está.

O capitalismo e o mercado de arte

“Os meus inputs são maioritariamente visuais, mas ao longo da minha vida essa inspiração veio também da literatura”, explica o ensaísta, que assim reflete sobre o que surge primeiro no processo, texto ou imagem. Se dúvidas existissem, deve dizer-se que entre estas colagens, se entra numa espécie de mapa mundo que traz à superfície elementos que se têm refletido na sua obra escrita. Sempre em diálogo com a pop art, Andy Warhol, as vanguardas artísticas que marcaram a arte contemporânea nas últimas décadas e Hollywood: todos estes aspetos não deixam de ecoar por ali. Para todos eles, diga-se, existe o denominador comum do sistema capitalista, sem o qual esta potência imagética muito provavelmente não existiria pelo menos em escala.

“A arte pop foi, de facto, uma das minhas primeiras fontes de fascínio e de registo, nomeadamente o trabalho do Warhol, do Roy Lichtenstein ou do James Rosenquist. São recordações que tenho desde a adolescência e que permaneceram”, explica Alexandre Melo, remetendo essa reflexão para o seu mais recente livro, Somos Todos Famosos (Documenta), onde se debruça sobre o modelo de starship, fortemente suportado pela indústria cinematográfica. “A conexão é estabelecida por uma realidade sociológica, que impacta toda a experiência cultural da segunda metade do século XX, que é o triunfo da sociedade de consumo de massas. É a fonte dessa imagética e este processo de seleção que aqui faço é claramente inspirado nessa potência”, sintetiza.

"Se as pessoas estão a visitar uma localidade e passam dois terços do tempo a olhar para o ecrã do telemóvel, é impossível que se olhe verdadeiramente para as cidades, que vão definhar."

Sobre esse aspeto, existe uma iconização que começa com Warhol. “A partir dele acho que já não há mais fenómenos de iconização. O que há é uma realidade em que estamos perante um supermercado de estilos, teoria proposta pelo [Jean-François] Lyotard. A partir da década de 1980, passamos a poder recorrer a um conjunto de imagens, de épocas totalmente diferentes. Isso tornou-se sistemático, como sistema de identificação. A partir dos anos 90, esse supermercado e as teorias da estetização entraram em colapso pelo excesso de massificação e de diversificação”, diz. Do supermercado, diz, chegamos ao shopping (em grande escala) onde a diversidade é instantânea e com um horizonte de escolhas tão grande que não permite sacralizar imagens. “Já nada é consagrado verdadeiramente, há uma avalanche de imagens e a diferença está no tempo e na atenção que nós dedicamos em termos de fruição.”

O mundo digital, a falta de manualidade e de tempo para se olhar as imagens constituem uma mudança na forma como a cultura visual impacta a realidade que nos rodeia – sobretudo pela efemeridade. “Isso traz uma mudança nas modalidades de atenção, mas também nas relações com as cidades. Se as pessoas estão a visitar uma localidade e passam dois terços do tempo a olhar para o ecrã do telemóvel, é impossível que se olhe verdadeiramente para as cidades, que vão definhar.” De regresso às imagens que agrega neste conjunto de peças, considera que pode existir uma certa atitude iconoclasta, uma vez que estes elementos se afastam do seu propósito original. “Pode existir uma certa desautorização do significado original. Eu gosto destas imagens, e não tenho uma intenção crítica ou destrutiva, tenho sim uma atitude lúdica e combinatória.”

Entrevista a Alexandre Melo, crítico de arte, ensaísta, e também artista. 6 de Julho de 2023 Galeria Balcony, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

"Há novos colecionadores com uma visão de mundo social e cultural mais alargada que vai criar raízes"

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Há um lado cómico, quiçá satírico, em que não se rejeita o conceito de kitsch. “É um preconceito elitista, associado à leitura modernista da história da arte do século XX, à qual me oponho completamente, porque é eurocêntrica e antipopular.” No lugar de criador, escolhe esse lado pop, que é também ele um introdutor de conceitos importantes para pensar a arte e o seu mercado na atualidade. “Não só não me demarco, como perfilho a estética kitsch, porque adoto essas imagens populares”, sublinha.

Um mercado da arte na era da “desglobalização”

A partir de “Alexandria” insere-se também uma proposta de reflexão sobre o mercado da arte. No caso português e olhando para o panorama atual, Alexandre Melo diz tratar-se “de um mercado minúsculo, com muitas limitações”. Sofre da falta de continuidade, o que faz com que o mesmo pareça estar muitas vezes a “recomeçar do zero”. “Em Lisboa houve alguns progressos com as coleções privadas, designadamente por iniciativa do Berardo e do João Rendeiro e na sequência, nalguns casos até como inspiraram, surgiram outros colecionadores importantes”, realça. No seu entender, parece, no entanto, não existir “mecanismos de transmissão geracional que permitam um outro enraizamento”.

“Penso que isso pode mudar, porque há novos colecionadores com uma visão de mundo social e cultural mais alargada que vai criar raízes”, explica. Alexandre Melo acredita que faltaram políticas culturais por parte do Estado, o que resultou num atraso de intervenção – como agora se pode dar a ver na criação de uma coleção de arte contemporânea do Estado. “Chegamos ao fim do século XX sem uma coleção de arte moderna e contemporânea portuguesa pública e só se começou a criar uma atmosfera verdadeiramente com o CCB, Serralves e a Culturgest”, acrescenta o ensaísta. Como razões para esse atraso, aponta o “subdesenvolvimento histórico-cultural” do país, com “séculos de boçalidade por parte das classes dominantes”.

"O mercado da arte está a crescer depois da pandemia, pela acumulação de riqueza que esse período gerou. E tem a possibilidade de continuar a crescer, com a vantagem de que o multiculturalismo trouxe novas perspetivas para esse mesmo panorama.”

Quanto à realidade internacional, há uma dissonância. Ao passo que no princípio do milénio se assistiu a uma ampliação do mercado de forma global, nos últimos anos existe um fenómeno de desglobalização. “Com a guerra e o renascimento do nacionalismo, o mercado está mais cometido num círculo euro-americano, embora tenha havido grandes novidades, através das novas vagas de feminismo, antirracistas e de um trabalho multiculturalista que parecem ter começado a produzir resultados”. Artistas africanos ou latino-americanos, mulheres e outro tipo de abordagens artísticas traduzem-se, diz, num alargamento de uma “tendência que é positiva e irreversível”.

“No meio desta reflexão, é preciso perceber que não é possível fazer-se uma história da arte onde só há homens, europeus ou brancos. Está a começar a enraizar-se nas galerias e nos museus. Infelizmente, em termos políticos, este movimento vai ter uma reação para criar um estado de guerra”, frisa. Não deixa de existir um lado contraditório com a liberdade no domínio artístico, ainda que isso seja um movimento eurocêntrico. “Muitas dessas latitudes que agora o pensamento europeu e ocidental está disposto a acolher, conhece realidades cada vez mais difíceis e fundamentalistas, que os impedem de afirmar em nome próprio o lugar que devem ocupar.” Regressamos aos mapas-mundo, que contribuem para as imagens e os livros que tem concebido – são uma forma de diagnóstico. “Estamos numa época de conflito e vamos assistir a conflitos que poderão fazer com que muitas das tendências liberais e democráticas sofram recuos, mesmo nos próprios territórios que as produziram”, explica.

O retrato do mercado da arte para o futuro é difícil de se desenhar. Ainda assim, assevera há uma dinâmica ligada aos artistas de coprodução e de lógicas colaborativas, militâncias ecológicas e de diversas formas de ativismo, através das quais se ensaiam novos caminhos. “Essas dinâmicas são cada vez mais fortes e o mercado da arte também está a crescer depois da pandemia, pela acumulação de riqueza que esse período gerou. O mercado tem por isso a possibilidade de continuar a crescer, com a vantagem de que o multiculturalismo trouxe novas perspetivas para esse mesmo panorama”, salienta. Resta saber se serão devidamente absorvidas, para que no fim se possa então contribuir para uma constelação, essa sim, feita de um liberdade exponencial e de produção de conhecimento.

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