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Foi num agosto assim quente, com Lisboa desertada para os algarves, Portugal na CEE, Mário Soares na presidência, Cavaco Silva primeiro-ministro, as rádios a passarem Jimmy Summerville a cantar Don’t Leave Me This Way, que Alexandre O’Neill (Xana, entre os amigos) nos deixou. Morreu no dia 21 de agosto de 1986, vítima de um AVC. Tinha 61 anos e uma vida saudavelmente dissoluta, feita de álcool, tabaco, mulheres, amores, tascas, pouco dinheiro, muitos livros, um inconsolável sofrimento por Portugal e uma rara capacidade de rir. De rir sobretudo de si mesmo. Não era poeta porque escrevia, era poeta porque (vi)via. E se estivesse aqui dir-nos-ia, só para deixar as coisas em pratos limpos:

“A poesia é a vida? Pois claro!

Conforme a vida que se tem o verso vem

— e se a vida é vidinha, já não há poesia

que resista. O mais é literatura,

libertinura, pegas no paleio;

o mais é isto: o tolo dum poeta

a beber dia a dia a bica preta,

convencido de si, do seu recheio…

A poesia é a vida? Pois claro!

Embora custe caro, muito caro

e a morte se meta de permeio.”

(Alexandre O’Neill, in Feira Cabisbaixa, 1965)

Neste agosto de 2016, quando passam 30 anos sobre o derradeiro adeus português de Alexandre O’Neill, a Assírio & Alvim prepara-se para lançar, até ao fim do ano, uma versão revista e aumentada da obra completa do poeta. A única biografia existente no mercado, Alexandre O’Neill- Uma Biografia Literária, lançada em 2007, de resto uma obra riquíssima em factos e fontes, teve ordem de guilhotina pelo grupo Leya. Haverá ainda alguns exemplares à venda, sobretudo em alfarrabistas, os outros estão na casa da biografa, Maria Antónia Oliveira, que contou ao Observador que a editora D.Quixote lhe deve ainda parte dos direitos autor desta obra. Ó Portugal se fosses só três sílabas de plástico para ser mais barato, diria o poeta a rir-se…

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Alexandre O’Neill, uma biografia literária, D.Quixote, 2007

Para escapar a essa “invenção atroz a que se chama o dia-a-dia”, O’ Neill viveu intensamente, desregradamente, até ao osso, levando à letra aquele mandamento que ele mesmo ditou para o Grupo Surrealista de Lisboa, em 1949, “quem se destrói não se cansa”, diz Maria Antónia Oliveira. Por isso, recusou sempre a fazer da poesia uma carreira, dizia que não trocava um copo com amigos por um poema. Por isso, desmultiplicou-se em trabalhos, desde a secretaria da Caixa de Previdência de Trabalhadores do Comércio, nos anos 40, até à escrita de textos televisivos para Florbela Queiroz, nos anos 70. Por isso, riu de quem se ria dele, do meio literário que sempre olhou de lado enquanto tentava, sem sucesso, arranjar um lugar onde coubesse o seu tom anti-lírico, a sua ironia, os seus jogos de linguagem e, sobretudo, aquele mundo de gente e de coisas que ele trazia para a poesia e que o meio considerava não serem “sérias”, não serem “poéticas”, ou mesmo “de mau gosto”.

Mas a todos O’Neill parecia responder o mesmo que respondeu ao crítico Gaspar Simões, quando este demoliu o seu romance Ampola Miraculosa, ainda nos anos do Surrealismo: “Não compres objetos inúteis a pretexto de que são baratos”. É esta ironia subtil que obrigava (e obriga) os seus leitores a tentarem virar do avesso as suas frases para as entender (enquanto, à socapa, o Xana ri sabendo que não querem dizer nada, mas são tão só uma forma de expor o ridículo das falsas inteligências, das poses superficiais, da ignorância arrogante) que vai erigir a sua poesia e a sua vida. Riu do Salazarismo e depois do Gonçalvismo, riu do Socialismo e de tudo o que lhe pedia obediência e militância.

O poeta em todo o seu esplendor, a posar como um herói grego na praia do Baleal, anos 50

O poeta em todo o seu esplendor, a posar qual herói grego na praia do Baleal, anos 50

“É uma ironia aristocrática, de alguém que estava em todo o lado mas estava sempre ausente, que se dava com toda a gente mas não se dava a ninguém”, explica Maria Antónia Oliveira. “O’Neill afastou-se e depois rejeitou o Surrealismo mas nunca deixou de ter um olhar surrealista, no sentido em que captava ligações inusitadas entre as coisas, juntava o que aparentemente não tinha relação e, com isso, mostrava uma realidade absolutamente simples, uma realidade que está aí à vista de todos mas que ninguém parece ver até ler O’Neill. Então exclama: é pá é isto mesmo!”, diz ainda a biógrafa, que é também a organizadora das edições da obra completa do poeta na Assírio & Alvim.

Apesar da vida turbulenta, quando morreu, O’Neill deixou uma obra considerável, feita de vários livros de poesia onde passa pelo surrealismo, o concretismo e o realismo. Prosa dispersa em jornais e revistas, letras para fado (ele que detestava fado), entre elas o imortal poema Gaivota, escrito para Amália Rodrigues e Alain Oulman, slogans publicitários que lhe deram fama e dinheiro, diálogos para cinema, textos para televisão. Mas, trinta anos depois de morto, o Xana continua a ser um ovni que passou pela feira cabisbaixa portuguesa e não deixou um só herdeiro à altura.

“(…)

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,

golpe até ao osso, fome sem entretém,

perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,

rocim engraxado,

feira cabisbaixa,

meu remorso,

meu remorso de todos nós…”

(Alexandre O’Neill, in Feira Cabisbaixa, 1965)

“Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim?”

Alexandre Manuel Vahía de Castro O’Neill de Bulhões era descendente de aristocratas irlandeses. Os senhores da Irlanda, cujo brasão familiar era uma mão decepada. Reza a lenda que, no século XIII, o rei de Inglaterra disse aos cavaleiros que iam tentar conquistar a ilha: “Dou a posse da terra ao primeiro que lá puser a mão”. Então, ao chegar perto da da praia, esse O’Neill cortou a própria mão e atirou-a para terra. Tomando à letra a promessa do rei tornou-se senhor da ilha. Depois de muitos séculos no poder, os O’Neill terão fugido no século XVIII quando a Inglaterra tentava expulsar os católicos da ilha. Outros ramos da família terão ido para outros pontos do mundo, mas descendem todos deste conquistador que decepou a mão. Inclusive os criadores da marca de roupa desportiva O’Neill.

Embora a família O’Neill tenha sido muito poderosa em Portugal, para onde veio no século XVIII, o poeta pertencia ao “ramo falido”. Contudo, Alexandre tinha ainda um anel com o brasão da mão decepada que muito agradava aos amigos, que gostavam de o pedir emprestado, como José Augusto França, companheiro dos tempos do Grupo Surrealista, que o terá usado durante muito tempo. Em momentos de aperto financeiro, o anel também servia para “pôr no prego”, o que mostra que o Xana se estava “nas tintas” para a sua ancestral aristocracia.

De resto, nem completou o liceu, por não conseguir passar nos exames de latim e geografia (e passou com uns míseros 11 valores a Língua Portuguesa). Tentou entrar para a escola náutica para ser piloto de barcos, mas foi afastado devido à profunda miopia que lhe foi diagnosticada. Ainda terá sido aceite num curso na Marinha, que nunca lhe daria acesso à vida de piloto, e onde nunca pôs os pés. Falhado o sonho de uma vida no mar, passou o ano a jogar bilhar no café A Cubana, onde veio a conhecer Mário Cesariny, embora dissesse a toda a gente que andava a fazer o curso.

Não obstante odiar a escola, O’Neill já escrevia poesia e era um leitor fervoroso. Começa a frequentar uma tertúlia onde conhece Rui Cinatti e outros escritores, mas é o Surrealismo que o vai apaixonar. O movimento surgido em França, precisamente no ano em que ele nasceu, 1924, já levava mais de 20 anos quando, em 1948, O’Neill compra o livro História do Surrealismo de Maurice Nadeau. É ele que o empresta depois a Mário Cesariny e que há-de levar à criação do primeiro Grupo Surrealista de Lisboa, em 1949. Do grupo faziam ainda parte o poeta António Pedro, José Augusto França e os artistas gráficos Marcelino Vespeira, António Domingues, João Moniz Pereira e Fernando de Azevedo.

Grupo Surrealista de Lisboa, na fase em que O´Neill colecionava ossos

Grupo Surrealista de Lisboa, na fase em que O´Neill colecionava ossos, final dos anos 40

Como explica Maria Antónia Oliveira, o grupo surrealista era sobretudo uma reação contra o Neorrealismo que dominava a arte e a literatura portuguesa daqueles anos. Começam as leituras de Rimbaud, Lautrèamont, Henri Michaux, Elouard, Freud, Kafka e com elas a busca de uma nova linguagem que desse a ver um outro real. A dada altura, O’Neill começou a juntar ossos em casa para fazer uma escultura, o que terá deixado a mãe preocupada com a saúde mental do filho. Os pais de O’Neill eram apoiantes de Salazar e muito católicos, nada os desagradava mais que as vidas literárias do Xana, as suas companhias, a sua inapetência para um trabalho e uma vida “séria”. De resto, a mãe, à boa maneira freudiana, vai intervir decisivamente nos destinos do poeta.

Primeiro quando, em 1950, O’Neill, apaixonado pela francesa de origem italiana, Nora Mitrani, quer deixar Portugal e partir com ela para Paris, a mãe consegue, junto da PIDE, que lhe confisquem o passaporte impedindo-o de sair do país. Nora Mitrani suicidar-se-á 11 anos depois. Não voltariam a ver-se. Desse amor contrariado há-de nascer o poema Um Adeus Português, o texto Os Lobos Adoram-se e um dos mitos românticos da literatura portuguesa do século XX.

Um Adeus Português

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti

A segunda intervenção da mãe é quando o poeta é preso pela Pide, em 1954. Ela consegue que ele seja libertado depois de um mês e meio de cárcere em Caxias. Através de uma carta enviada ao Ministro do Interior, implora “a benevolência” de libertar o filho “cabeça louca levada por companheiros irrefletidos, para os quais esta aventura, digamos, romântica, constitui um página emocionante de má novela na qual se sentem heróis, e para o qual a necessidade de trabalhar e ganhar o pão quotidiano se mostra mais imperiosa que essas tolices de que bem cedo se arrependerá”. Porém, não consta que Xana alguma vez se tenha arrependido.

Alexandre com Nora Mitrani e Marcelino Vespeira fotografados por Fernando Lemos, 1950

Alexandre com Nora Mitrani e Marcelino Vespeira fotografados por Fernando Lemos, 1950

Entretanto, o Grupo Surrealista de Lisboa tinha-se desfeito e, apesar de se ter criado outro, com Cesariny, António Maria Lisboa, Pedro Oom, Mário Henrique Leiria, O´Neill afasta-se definitivamente. Será, como todos os surrealistas, um dissidente do Surrealismo. Não volta a “ir em grupos”, o seu caráter individualista e solitário impõe-se. Aproxima-se de pessoas, participa em projetos de resistência contra o fascismo, como o MUD juvenil e mais tarde na criação revista Almanaque, com Cardoso Pires. Dá-se com poetas e escritores, tem relações intensas que terminam, frequentemente, em zangas prolongadas. Apesar de ser socialmente fascinante para todos os que o conheceram, não se ligava profundamente a ninguém.

Poesia? O importante é “desimportantizar”

“que quis eu da poesia? Que quis ela de mim? Não sei bem. Mas há uma palavra francesa com a qual posso perfeitamente exprimir o rompante mais presente em tudo o que escrevo: dègonfler. Em português traduzi-la-ia por “desimportantizar”, ou em certos momentos, por aliviar os outros e a mim da importância que julgamos ter…” (1972)

O’Neill nunca teve paciência para a pompa e a auto-importância do meio literário português, em geral, e poético, em particular. Esta herança aristocrática da família, mas também dos surrealistas, este compromisso (que afinal não era brincadeira nenhuma) de rejeitar todas as regras da vida e da mentalidade pequeno-burguesa manifesto no “quem se destrói não se cansa” hão-de acompanhá-lo a vida toda. Esta “desimportantização” da poesia e de si mesmo foram, afinal, a sua fonte essencial. A distância fundamental por onde entrava a luz que o fazia, num relance, ver as zonas mais sombrias do mundo e depois encontrar as palavras certas para as dizer, isto é para as dar a ver.

Poesia Completa, Assirio & Alvim que terá reedição ainda este ano

Poesia Completa, Assirio & Alvim que terá reedição ainda este ano

A poesia de O’Neill começa na singularidade do seu olhar carregado de ironia e melancolia, de malícia e de pudor. O seu olhar virava-se constantemente para as pessoas e as coisas do quotidiano que, sendo banais, estavam carregadas de simbolismo: os cães, os gatos, os velhos, as pernas das raparigas, a ternura escondida nos gestos desapiedados, o desespero dos homens engravatados, as ruas e os ambientes das tascas de Lisboa, a dolorosa efemeridade dos sentimentos e da beleza. Sem sentimentalismos e com uma crescente ironia que tocava a crueldade, a sua poesia nunca é uma mera descrição bocejante, como tantos neo-poetas do quotidiano que desejaram segui-lo, sobretudo a partir deste início do século XXI. Porque cada imagem exterior (e O’Neill repetia com Baudelaire:”Há lá algo mais excitante que um lugar comum?”) abria para uma sabedoria interior, profunda, intemporal. Por isso a sua poesia continua atual e “urgente”, como a descreveu Jorge de Sena.

Sim, o Xana “desimportantizava” só porque percebeu que quanto mais “desimportantizasse” melhor poeta seria.

O poeta mora no telhado

com a mulher e o filho

A renda é cara: faz calor e faz frio.

É um 3º alto, sem elevador.

Há baratas

e aventuram-se as visitas a ir lá

visitas que depois

uma não dizem senão um tudo-nada

que ao poeta é que cabe falar…

…(aqui uma linha censurada)…

Outras descrevem a última lagosta

que quereriam comer,

e os crocodilentantes, depois de beber,

necessitam mito de ler…”

(inédito)

O’Neill o homem dos três “cês”: Cama, Copos e Conversa

Se Portugal era o país dos três “éfes”: fado, futebol e Fátima, Alexandre era, nas palavras da irmã Maria Amélia O’Neill, “o homem dos três “cês”: cama, copos e conversa. O fascínio pelo sexo oposto terá começado logo na 3ª classe quando beijou a colega Bertilde e foi chamado à direção do colégio para ser admoestado. E a história com Nora Mitrani foi, na verdade, apenas uma das dezenas de amores, amantes, namoradas, que o artista colecionou. Dizia irónico que “em Portugal os poetas tinham muita saída”. Ele pelo menos tinha. Não tanto pela beleza física mas pelo charme, pelo humor, “pela lábia”, pela originalidade. O Xana enlouquecia as mulheres, mas elas também o enlouqueciam a ele. Era frequente andar de cabeça perdida por causa de uma paixão, começava a faltar ao trabalho, a desleixar-se. Como escreve Maria Antónia Oliveira, na biografia: “Albertinas Celestes Doras Guidas Isabeis Isauras, Marias Mercedes do Carmo de Loures da Conceição Teresas Susanas — Alexandre não tinha género, tinha número. Mulheres que persegui pelas ruas de Lisboa, outras a quem se encostou no aperto do elétrico, feito ceboleiro (histórias que aliás gostava de contar em várias versões); (…) Seduz porque se apaixona por todas as mulheres que lhe agradam…”

Tão fascinante e generoso quanto promíscuo e cruel, era, sincero e fazia tudo para agradar mas, como escreveu o seu amigo Vinicius de Morais, “tinha uma sinceridade para cada momento”. Casou duas vezes. A primeira com Noémia Delgado, de quem tem um filho (Alexandre Delgado O’Neill, que morreu nos anos 90) e depois com Teresa Patrício Gouveia, ministra do Ambiente de Cavaco Silva e da Cultura com Durão Barroso), de quem teve outro filho, Afonso. Mas fidelidade, crianças, família, quotidiano não eram o seu forte. Acabou por trocar Noémia pela inglesa Pamela e depois Pamela pela finlandesa Anja, mas arranjando, ao mesmo tempo, um espaço para a irmã de Anja. Somou infidelidades, mas era extremamente ciumento e possessivo. Como conta a biografa, só Teresa Gouveia, muito mais nova, parece tê-lo feito pagar um pouco essa vida de marialva.

Volume que reúne a prosa dispersa. Assirio &Alvim, 2008

Volume que reúne a prosa dispersa. Assirio & Alvim, 2008

Sempre viveu como um aristocrata, desprezando altivamente as opiniões alheias, as regras dos vigilantes do bom gosto e dos bons modos. “Quotidiano não” escreveu num poema. A forma como toda a vida lidou com o dinheiro é outro exemplo da sua incapacidade de viver “a vidinha”, diz Maria Antónia Oliveira. “Quando ganhava pouco ou quando ganhava muito, gastava tudo como se não houvesse amanhã: copos, comezainas, livros”. Trocou dezenas de vezes de casa, de emprego, pedia constantemente dinheiro emprestado, revendia coisas que comprava, punha isto e aquilo no prego.

Adorava comer, dizia “sou magro mas tenho uma alma grande”, percorria com os amigos as tascas de Lisboa e arredores, os cafés, os bares. Gostava de bas-fonds onde pudesse conversar e ouvir as pessoas, comer cozido à portuguesa gorduroso, chupar cabeças de peixe. Nunca condescendente ou paternalista, como, de resto, a sua poética regista. O’Neill gostava, à semelhança de Teixeira de Pascoaes, de ouvir a alma popular, o linguajar das gentes, a forma como estas captavam ” as semelhanças misteriosas entre as coisas”, afinal aquilo que também O’Neill sempre tentou fazer.

Neste século XXI onde escritores e poetas se afogam em festivais, congressos, aparições públicas, muito teria O’Neill por onde rir. Ele que, em 1962, quando foi convidado para ir a Florença a um congresso internacional de escritores, integrado numa comitiva portuguesa, onde ia também o seu camarada José Cardoso Pires, aproveitou para fugir e ir conhecer Roma e Nápoles. A história, mais uma entre as muitas deliciosas que compõem a biografia escrita por Oliveira, conta-se assim: no congresso estava um jovem editor que tinha um Alfa Romeo que fascinou O’Neill e Pires. Travaram amizade com o editor e piraram-se com ele no Alfa Romeo só regressando a Florença no fim do congresso. A coisa terá caído mal entre os outros escritores.

Vá de metro Satanás, o poeta no mundo da publicidade

Apesar de ter sido um publicitário quase tão famoso quanto poeta, a verdade é que O’Neill chega esta profissão num daqueles acasos dos quais a sua vida está cheia, e quase com 40 anos. Mas parecia ter nascido para aquilo; a sua habilidade com as palavras, o seu conhecimento das múltiplas gavetas de sentidos e ligações que há em cada uma delas, a juntar ao se sentido de humor e malícia, faziam dele um copy de mão cheia. Apesar de, como contou o já falecido publicitário Rui de Brito, patrão de O’Neill, “ser impossível levá-lo a uma reunião com um cliente. Desmanchava tudo, troçava, ria à gargalhada batendo com os pés no chão”.

Por isso, muitos dos slogans que inventava não eram aceites para as campanhas, mas acabavam por tornar-se mais conhecidos e intemporais que elas. Como este “Vá de metro Satanás”, que a Metro de Lisboa recusou, “Com colchões Lusospuma você dá duas que parecem uma”, que a Lusospuma recusou, “Passe um verão desafogado” que também foi recusado e deu origem ao “Há mar e mar, há ir e voltar”. Embora conste que O’Neill gostava mais da versão que as ruas lhe fizeram do slogan: “Há bar e bar, há ir e voltar”. Ou ainda o “Bosh é brom” que ficou quase tão popular como o slogan oficial “Bosh é bom”, inventado por um colega seu.

Poema: Divertimento com sinais ortográficos, 1960

Poema: Divertimento com sinais ortográficos, 1960

O poeta lamentava que a publicidade lhe tinha prejudicado a poesia. Mas, na realidade, ambas estão ligadas à extrema habilidade com que O’Neill manejava a Língua Portuguesa. Por isso, como aponta Maria Antónia Oliveira, ” os trocadilhos, os jogos de palavras nunca lhe serviam para exibir erudição, nem para piscar o olho ao leitor como quem diz:’ olha lá como eu sou esperto'”.

Na poesia e na publicidade, Alexandre O’Neill não fazia das palavras um espelho que reflete o que está à sua frente, mas sim um ângulo morto: onde o real não se pode ver com os olhos, mas sim com uma interioridade, um conhecer, que permite transformar o ver em dizer.

Assim, a melhor definição da sua poesia deu-a ele numa entrevista à Capital, em 1968: “É uma poesia que pode provocar riso, mas sempre um riso incómodo (…) é uma poesia de ridículos sociais. Ou porque estou metido na coisa e quando rio, rio também de mim. Talvez seja isso. Aliás eu não escrevo para fazer rir. Não sei se é porque gosto. Escrevo para registar o que é fugaz. Para deter as coisas. Para registar certos factos. Parece-me que é isto. Escrevo para registar, para fixar, para demorar”.

O único prémio que recebeu, em 1983, veio da Associação Internacional de Críticos Literários. No discurso que fez na entrega do prémio citou Breton: “Não sou pelos adeptos”. E depois, no Jornal de Letras, haveria de fazer uma crónica com o título “Como não ganhar prémios literários”. Meses depois, Eanes quis dar-lhe a comenda da Ordem de Santiago e Espanha. Recusou. Um ano antes, tinha confessado a Fernando Assis Pacheco: “Sem pieguice digo-lhe que sempre sofri Portugal, tanto no sentido de não o suportar (como todos nós, aliás), como no sentido de o amar-sem-esperança…”

Nos anos 80, o corpo com o qual fez “uma alavanca sem pensar no futuro” começou a traí-lo. Com os problemas cardíacos a avolumarem-se, foi proibido de beber e de fumar. Naturalmente preferiu não obedecer. Continuou a escrever, a trabalhar a ter namoradas novas e bonitas, a ir às tascas. Em 1984 teve o primeiro AVC, que viria a repetir-se fatalmente em 86. Para si mesmo tinha já escrito o epitáfio:

“Aqui jaz Alexandre O’Neill

um homem que dormiu pouco

muito pouco

Bem merecia isto.”