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Ali Abbasi, de 42 anos, quis fazer um filme político usando cinema de género – film noir, terror – e não olhou a meios para expressar a sua mensagem: “Holy Spider” é muito explícito, violento e sem qualquer misericórdia
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Ali Abbasi, de 42 anos, quis fazer um filme político usando cinema de género – film noir, terror – e não olhou a meios para expressar a sua mensagem: “Holy Spider” é muito explícito, violento e sem qualquer misericórdia

Ali Abbasi, de 42 anos, quis fazer um filme político usando cinema de género – film noir, terror – e não olhou a meios para expressar a sua mensagem: “Holy Spider” é muito explícito, violento e sem qualquer misericórdia

Ali Abbasi: “Criticavam-me por ter feito um filme violento. Depois viram o que o regime iraniano é capaz de fazer a miúdos de dez anos"

Em "Holy Spider", Ali Abbasi cruza a história real de um serial killer com uma detetive fictícia na verdade do Irão. Falámos com o realizador, que também fez dois episódios da série "The Last of Us".

Em 2018, Ali Abbasi ganhou em Cannes o prémio Un Certain Regard com “Na Fronteira”, filme que o levou aos Óscares por causa da maquilhagem usada para transformar os seus atores em trolls. “Na Fronteira” brincava com o espectador e a sua moral, enfiava uma história de amor num contexto moralmente questionável e criminoso. Acontecia manipulação desconfortável e provocava constantes questões. E fazer isto bem é uma arte que deve ser considerada. O realizador voltou a trabalhá-la em Holy Spider, filme de 2022 que agoa se estreia nas salas portuguesas.

Nasceu no Irão, mas desde o início do século que vive no norte da Europa, primeiro na Suécia e, agora, em Copenhaga. Em “Holy Spider”, Abbasi conta uma história de crime no seu país, o do assassinato de dezasseis prostitutas em Mexede, entre 2000 e 2001, por Saeed Hanaei (Mehdi Bajestani). A história segue duas perspetivas. Uma é a de Saeed, homem de família, que leva as prostitutas para casa quando está sozinho, estrangula-as e depois abandona os corpos em ermos. Os seus atos são percecionados pelo próprio como heroicos e é uma sensação que extravasa o próprio: a inação da polícia em procurá-lo é um manifesto disso. A outra perspetiva é de Arezoo Rahimi (Zar Amir Ebrahimi), personagem fictícia, uma jornalista que vem de Teerão para reportar e investigar o que se está a passar. Sentimo-la sempre em perigo, ameaçada, não só por se querer envolver no meio da prostituição para chegar a Saeed, mas também pela cidade, pelas leis e por uma sociedade misógina.

Ali Abbasi quis fazer um filme político usando cinema de género – film noir, terror – e não olhou a meios para expressar a sua mensagem: “Holy Spider” é muito explícito, violento e sem qualquer misericórdia. Falámos com o realizador há dias e aproveitámos, também, para falar do envolvimento em “The Last Of Us”, a série do momento transmitida na HBO Max. Abbasi foi convidado para o projeto logo no início mas, por causa de “Holy Spider”, acabou apenas por realizar os dois últimos episódios.

[o trailer de “Holy Spider”:]

Tal como noutros filmes seus, em “Holy Spider” convida o espectador a assumir a perspetiva das personagens. A aclamação dos crimes no último ato e a perceção do criminoso como um herói choca menos do que devia. Até que ponto esta exploração é intencional?
Não lhe chamaria intencional, é-me natural. Natural porque é assim que penso. Temos muita sorte em viver na Europa. Este filme foi difícil de fazer, mas nunca tive limitações à forma como me queria expressar, isso nunca foi um problema, e isso é muito difícil de conseguir fora da Europa. Quando tenho esse luxo, expresso o que é natural em mim, qual é o meu ponto de vista. É a forma como vejo o mundo. Por exemplo, quando sei de alguém que é uma boa pessoa, que doa para a caridade, que adotou seis crianças sírias, a primeira coisa que penso é: qual é a contrapartida aqui? É um pedófilo, um traficante ou tem dinheiro escondido no Panamá? E isso também funciona ao contrário. Por exemplo, o Putin deve ser um sacana do pior, mas talvez algo tenha acontecido, talvez alguém lhe tenha despedaçado o coração. Estou sempre à procura do outro lado para equilibrar as coisas.

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Não vive no Irão e não conseguiria fazer um filme como este no Irão. Há algo de libertador, enquanto iraniano, em fazê-lo?
O Irão é um sítio estranhíssimo, porque é um sítio incrível para fazer filmes, há muito talento, há ótimos técnicos… mas se politicamente não mudar, nunca será diferente. Se mudar, poderá haver uma explosão de produção cinematográfica. Tenho trabalhado no Canadá, na Suécia, na Jordânia, em vários sítios do mundo, e continuo a achar que o Irão é especial. Temos uma indústria muito particular. Mas eu percebo-os, sei bem como é difícil fazer filmes. Contudo, há uma escolha a ser feita: ser um realizador iraniano que trabalha no Irão ou fazer um filme sobre o Irão fora do país? A escolha depois resume-se a ser ou não ser livre. Sabemos que estamos na mão da censura e isso cria uma escolha fundamental. Ou escolhemos viver com isso ou não conseguimos e saímos. Eu saí do Irão e paguei o meu preço, mas estou numa posição confortável. Não posso julgar os meus colegas que ficaram lá, porque sei o quão difícil é. Mas também acho que não posso queixar-me da censura e fazer parte dela. Quem faz filmes onde mulheres estão cobertas com dez metros de pano e sempre deitadas numa cama, não pode vir dizer que foi o governo que os obrigou a fazê-los. Não os façam. Adorava ser uma pessoal melhor e não julgar isto, mas irrita-me. “Se é assim tão mau, vem-te embora. Não faças parte.”

"O 'Holy Spider' é a minha interpretação das coisas, é subjetivo. Mas sim, a realidade no Irão é dura, brutal, e o que fazem às mulheres é brutal", diz o realizador

Apesar disso, não tem medo de fazer um filme como “Holy Spider”? Nunca sente que pisou um risco?
Claro. É bastante injusto. No Irão, ao contrário de muitos outros sítios, fazer um filme é algo perigoso. Pode ser perigoso para a segurança pessoal, podemos ser presos, censurados. Isso é profundamente injusto. Mas fora do Irão, o risco será assim tão grande? A dado momento, em Cannes, estavam a traçar paralelos entre mim e o Salman Rushdie. Ouço aquilo e penso… não é uma coisa porreira de se ouvir. Especialmente depois do que lhe aconteceu. E fico a pensar, será que preciso de dois guarda-costas? Sinceramente, acho que não. Não tem de ser assim, poderia fazer filmes que não eram sobre o Irão e deixar-me-iam em paz. Mas é uma escolha. Mais uma vez, não estou a dizer que é justo, que deveria ser assim, não devia, só estou a tentar desdramatizar a situação um pouco, o possível.

Mas ser comparado ao Salman Rushdie, dessa forma, não é algo desejável.
O mais interessante nessa comparação é que surgiu numa altura em que eu estava a ler alguns artigos daquele preciso momento e percebi que nem o governo iraniano nem o [Ruhollah] Khomeini leram Os Versículos Satânicos. Lançaram a fatwa sem lerem o livro, porque são demasiado preguiçosos. O mesmo aconteceu com o meu filme, antes de ser mostrado em Cannes, só havia um clip de quarenta segundos disponível que, de alguma forma, chegou aos espiões do governo. Não viram o filme, era impossível, não estava em distribuição e as comparações e as ameaças surgiram baseadas num teaser de quarenta segundos. Obviamente que nunca viram o filme. É tudo absurdo, uma enorme comédia trágica

"O Irão é um sítio estranhíssimo, porque é um sítio incrível para fazer filmes, há muito talento, há ótimos técnicos… mas se politicamente não mudar, nunca será diferente. Se mudar, poderá haver uma explosão de produção cinematográfica. Contudo, há uma escolha a ser feita: ser um realizador iraniano que trabalha no Irão ou fazer um filme sobre o Irão fora do país?"

A história do filme é real, mas a personagem da jornalista é fictícia. É um bom contraponto, até porque está sempre a ser lembrada que é uma mulher. Porque é que a imaginou assim?
Conheço várias pessoas que são jornalistas criminais, mesmo fora do Irão, e é um espaço muito masculino. Do que sei, é preciso sere duro para sobreviver nesse ambiente, é um universo naturalmente misógino, neste caso é o sistema legal iraniano ou a polícia. Mas essa é a minha interpretação, isto é um film noir, esta não é a realidade para todas as mulheres jornalistas no Irão, claro que não é. Da mesma forma que nem toda a gente em Mexede estava a apoiar o Saeed. Claro que não, era uma minoria. Numa sessão sobre o filme, alguém que era de Mexede disse-me que vivia lá durante os crimes e que me poderia garantir que nem toda a gente o apoiava. E eu respondi: esses são os vinte e cinco minutos que tive de cortar do filme [risos], porque era muito longo.

É uma questão de perspectiva?
Quando estamos a fazer um filme que acontecem nestes sítios que para o mundo ocidental são locais “distantes”, como o Irão, essas pessoas assumem que a realidade é aquilo, que está toda a gente a ser violada e morta nas ruas. Claro que não é assim, mas cria-se este estado de espírito. O “Holy Spider” é a minha interpretação das coisas, é subjetivo. Mas sim, a realidade no Irão é dura, brutal, e o que fazem às mulheres é brutal. Antes do filme sair, criticavam-me muito por ter feito um filme assim, explícito e violento. E acho que essa ideia mudou quando as pessoas, nos últimos meses, viram o que o regime iraniano é capaz de fazer, a pessoas normais, a miúdos de dez anos, adolescentes. De certa forma, a realidade apanhou o meu filme. E isso mudou as coisas.

"Será que preciso de dois guarda-costas? Sinceramente, acho que não. Não tem de ser assim, poderia fazer filmes que não eram sobre o Irão e deixar-me-iam em paz. Mas é uma escolha"

Os crimes seriam vistos de forma diferente se tivessem acontecido noutra cidade?
Mexede é uma espécie de Vaticano a caminho de Las Vegas. É um sítio muito específico. É religioso, há muita peregrinação, há muito turismo, e no contexto do Islão, é a joia da coroa da república islâmica. É a cidade que é suposto ser a melhor, a cidade mais limpa, com as melhores ruas, com a relva mais verde, com os melhores hotéis, as melhores lojas. Eles querem a cidade mais apresentável possível e a última coisa que desejam é prostituição, crime, assassinatos. Em simultâneo, é a segunda maior cidade do Irão, com uma área metropolitana, uma zona industrial, com muitos trabalhadores imigrantes que operam nessas fábricas. E há muitos bairros pobres. Além disso, há muita droga, porque é estrategicamente localizada numa das maiores rotas de tráfico do mundo. Quanto juntamos isto tudo, não é surpreendente que haja crime. Se isto acontecesse noutra cidade, existiria o contexto de lei e ordem, mas quando acontece em Mexede, há todo um lado ideológico da república do Islão que vem ao de cima. É por isso que é um assunto tão sensível.

Neste filme, a cidade está sempre suja.
Porque é uma história que aconteceu há vinte anos. Tudo isto que disse aqui, desta cidade que se quer que seja a melhor, estava por acontecer. estavam a começar a construir a artéria principal que liga à rua onde se vê o Saeed a andar de mota e a apanhar as prostitutas. Aquela rua agora parece uma avenida de Las Vegas, com edifícios altos, hotéis, muitas lojas, tudo com um ar muito fino e elitista. No início dos 2000 foi quando começaram a comercializar esta ideia. Antes não era assim.

Para terminar, já vi os dois últimos episódios de “The Last Of Us”, que são realizados por si…
Mais do que eu vi!

Por isso tenho de perguntar: como foi trabalhar numa série de televisão como esta?
Foi uma coisa de loucos. Quando disse que sim, eles queriam que eu fizesse trabalho conceptual, que fizesse o episódio-piloto. Mas não conseguia por causa do “Holy Spider”. E esta foi a minha primeira experiência para televisão, nunca tinha feito nada assim. Em parte, foi frustrante, porque nunca tinha trabalhado para uma estrutura destas, há toda uma cadeia neste sistema, deste os executivos da HBO, o Craig Mazin ou o Neil Druckmann. Como realizador, fui apenas uma roda no sistema. Mas, por outro lado, foi libertador, porque aconteceu imediatamente ao “Holy Spider” e, por uma vez, foi ótimo não sentir responsabilidade por toda e qualquer coisa, não estar constantemente em pânico e em ansiedade. Uma coisa que me disseram — e provavelmente foi a primeira e única vez que alguma vez ouvirei isto, é que existiam todo o tipo de problemas, mas o dinheiro não era um deles [risos]. Isso é ótimo, porque no “Holy Spider” tive todo o tipo de problemas e o dinheiro foi um deles. Foi uma experiência interessante, gosto muito do jogo, é muito elegante. Dificilmente iremos fazer todos os fãs felizes. Estou um bocado abananado ainda, mas de uma forma positiva.

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