Graças a João Gonzalez e ao seu “Ice Merchants”, este ano todos vamos estar mais atentos às “pequenas” categorias dos Óscares. E essa é uma boa notícia porque, ano após ano, se confirma que é lá, entre os nomeados para Melhor Curta de Animação, Melhor Documentário, Melhor Filme Internacional, et cetera, que param, frequentemente, as obras mais originais da temporada. E algumas, imagine, até estão já em sua casa, enfiadas lá para os confins da plataforma de streaming, escondidas atrás daquelas categorias muito objetivas com que os distribuidores agora nos organizam a cinefilia: “Rir é o melhor remédio”, “Filmes negros vencedores de prémios”, “Para ver casualmente” e quejandos (“quejandos”, qualquer dia, também dá categoria).
A descoberta é agradável, porque, antes, sem dimensão que justificasse a compra para os cinemas, nada disto, ou quase, nos chegava. Este ano, por exemplo, pode descobrir entre os escaparates da Netflix dois dos nomeados para melhor documentário de curta-metragem: o singelo “The Elephant Whisperers”, de Kartiki Gonsalves (sim, ainda queremos saber mais acerca deste nome) e “The Martha Mitchell Effect”.
Nunca tinha ouvido falar de Martha Mitchell? Nós também não. E, no entanto, é o próprio Richard Nixon que diz, na célebre série de entrevistas a David Frost e já ligeiramente depois da morte dela, num trecho recuperado logo aos primeiros minutos de “The Martha Mitchell Effect”: “Se não fosse ela, provavelmente não teria havido Watergate.” E Watergate, assunto acerca do qual já se fizeram mais filmes, documentários e reportagens do que Fernando Mendes episódios do “Preço Certo”, é tema do qual pensávamos que já sabíamos tudo.
[o trailer de “The Martha Mitchell Effect:]
Afinal, quem é a Martha?
É curioso porque Martha Mitchell não foi, exatamente, uma personagem discreta, que não apreciasse os holofotes. Casada em segundas núpcias com John Newton Mitchell, procurador-geral dos Estados Unidos durante a regência Nixon e diretor das campanhas presidenciais republicanas de 1968 e 1972, adquiriu um protagonismo invulgar para alguém que era, apenas e para todos os efeitos, cônjuge de um titular de um cargo público. Hoje, descrevê-la-iam como “vocal” ou “sem filtros”. Por não se coibir de dizer o que pensava acerca de qualquer tema político (em geral, apoiando as mesmas cores conservadoras do marido), ficou conhecida como “a voz do Sul”. Chegou a figurar na capa da Time como uma das mulheres mais influentes de Washington. E, em 1970, uma sondagem da Gallup apontava-lhe uma insólita margem de reconhecimento: 76% dos americanos sabiam quem era Martha Mitchell. Daí até ao anonimato foi uma queda abrupta – perversamente intercalada pelo acontecimento que a deveria ter tornado ainda mais célebre.
Mas como se cruzou Martha Mitchell, afinal, com o histórico caso de espionagem à campanha democrata, que garantiria um lugar na história aos jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein, ao mítico Garganta Funda, a um banal condomínio de apartamentos, à nomenclatura na pornografia e até à de todo e qualquer escândalo político posterior, não necessariamente em língua inglesa? A sorte, ou, como também é conhecida pela malta do outro lado do campo, um azar do caraças.
Martha tinha acabado de se separar do caixeiro-viajante Clyde Jennings quando conheceu o bem-sucedido advogado John Mitchell, que descrevia, com um brilho no olhar, como “um dos homens mais inteligentes da América, senão mesmo do mundo”. Mas Martha, que, na universidade, até saíra como Sonny Capone, filho-vocês-estão-a-imaginar-de-quem, não imaginava que, um dia, se meteria numa casa de família ainda mais complicada… Chamado pelo amigo Nixon a liderar o Ministério Público norte-americano, John trocou Nova Iorque por Washington; Martha, claro, foi com ele; e para onde foram viver? Para um belo apartamento no luxuoso complexo Watergate.
Quem tramou Richard Nixon?
Naqueles dias de 1972 que, depois, ficariam para a História, nem se encontravam lá – estavam na Califórnia, numa ação de recolha de fundos para a campanha – mas foi a insistência do marido em retê-la lá e atrasar o regresso a casa, que a fez suspeitar, corretamente, que algo de errado se passava. Seguiu-se o rebentar do escândalo, a conferência de imprensa de John negando qualquer envolvimento da campanha republicana e Martha a reconhecer o segurança e motorista da filha como um dos detidos pela invasão da sede da campanha democrata.
Depois, vieram as perguntas, o desconforto entre o casal, os telefonemas para a imprensa – e, finalmente, o sequestro e agressões por um grupo de desconhecidos, que envolveram a injeção de tranquilizantes, o divórcio de John Mitchell e a campanha que a tentaria desacreditar como sendo alcoólica e padecendo de doença mental. Afinal, a personagem secundária que, até ali, Nixon deixara circular livremente como uma tia que conta aos convidados do casamento as nossas vergonhas de criança, mas que não pode causar mais dano do que um rubor na face e que até consentia que lhe telefonasse diretamente quando lhe apetecia, para partilhar as suas opiniões sobre os destinos da nação, tinha-se tornado, subitamente, letal. A peça solta na engrenagem que se preparar para fazer cair toda a máquina.
“The Martha Mitchell Effect”, talvez constrangido pela sua duração (aproximadamente, 40 minutos) concentra-se inteiramente nos anos de Watergate, mas é interessante perceber, entre os momentos que seleciona e a investigação que o espectador se sinta convidado, depois, a fazer, como Martha Mitchell se tratou de uma figura de algum modo pioneira numa certa lógica do star system político, humanizando a figura do marido e a própria administração Nixon, trazendo a vida privada para o jogo do plano público e surpreendentemente consciente do poder das câmaras (fascinante ver como, num momento de vulnerabilidade, ela não foge dos jornalistas; corre para eles. Chama-lhes “os meus namorados” e diz, com todas as letras – como de costume –, que são basicamente eles quem está entre ela e um tiro que a cale de uma vez por todas).
“Na política, há muita falta de memória”, já dizia Jorge Coelho
Em jovem, aspirante a atriz e, de resto, filha de uma professora de teatro do Arkansas, Martha Mitchell encontrou o seu palco na subida do marido a Washington, onde se tornaria símbolo do braço duro da “lei e ordem”, em época de manifestações anti-Vietname. Foi presença constante em programas de televisão da manhã e da tarde, que é como quem diz, de entretenimento, não dos “sérios”, o que talvez ajude a explicar a posterior queda abrupta no esquecimento. Afinal, ao contrário do “Garganta Funda”, ela não foi fonte principal do Washington Post, ainda que, recentemente, Woodward e Bernstein tenham confirmado que os contactou, já na primavera de 74, oferecendo-se para lhes facultar acesso aos documentos do então já ex-marido que tinham ficado em sua posse.
Não sendo arrebatador nem um “All the President’s Women” (Martha era só uma, mas parece ter contado por muitas), o documentário das pouco mais do que estreantes Anne Alvergue e Debra McClutchy — que também já obtivera uma nomeação no Festival de Sundance (de Robert “Bob Woodward” Redford) — tem os méritos de recordar uma outsider que ajudou a derrubar um Golias e de unir os pontos para nos contar uma velha história de um novo ângulo – e, sendo evidente a apetência contemporânea por histórias no feminino, um ângulo nada gratuito nem oportunista, mas de pura e simples justiça histórica e narrativa.
“The Martha Mitchell Effect”, nome que foi buscar à psiquiatria que, desde os anos 80, passou a denominar assim o efeito de descrédito que tinham histórias verdadeiras contadas por pessoas que não levamos a sério, recorta e cola as imagens dos média de então para acentuar o paradoxo de esses mesmos média a terem deixado, depois, de fora da narrativa oficial.
Suportado também nas gravações secretas que Nixon manteve das suas conversas na Casa Branca entre 71 e 73 (e em que refere o nome de Martha Mitchell mais de cem vezes), lembra-nos como é fraca a política, a misoginia e a memória dos homens. De resto, já anda por aí uma série na TV cabo americana (“Gaslit”, na Starz), em que a protagonista é Martha e Julia Roberts a actriz escolhida para a interpretar. Afinal, não há fome que não dê em fartura nem amnésia coletiva que não possa ser retocada com um pouco de exagero na reparação.