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Conta-se que um célebre maestro de mau génio, certa vez ao ouvir uma não menos célebre cantora de ópera num ensaio, se dirigiu a ela no fim e deixou o desabafo: “Deus deu-lhe um maravilhoso instrumento, esqueceu-se foi de lhe dar também as instruções.” O episódio verídico é recordado pelo pianista Nuno Vieira de Almeida, para explicar que uma voz não basta. A qualidade de um cantor está também na personalidade e na inteligência que transporta para a interpretação. No caso de Amália Rodrigues, toda a gente sabe que o instrumento estava lá – era a voz bela, poderosa e cheia de cores – e por cima disso “Deus deu-lhe todas as instruções”, observa Nuno Vieira de Almeida. “Ela sabia fazer tudo, trazia para a música subtilezas de iluminação ou de escurecimento que nenhum outro intérprete de música popular é capaz de fazer, dentro ou fora de Portugal. É um caso de transcendência.”
Agora que se assinalam duas décadas sobre a morte de Amália, o Observador pediu a Nuno Vieira de Almeida e a outros quatro especialistas em música – António Victorino de Almeida, Aldina Duarte, Frederico Santiago e Rui Vieira Nery – que explicassem a voz da fadista que mudou para sempre o fado. Para lá do mito e da personagem, o que havia (e há) de especial naquela voz?
Unânime é a ideia de que a inteligência interpretativa foi a pedra-de-toque. “Tinha dons vocais e um ouvido condicente, mas também a inteligência racional, emocional e intuitiva para saber cantar”, defende a fadista Aldina Duarte, acrescentando que estas qualidades “estão todas ao mesmo nível” em Amália, “o que é muito raro, porque se fosse só pela voz havia mil Amálias”. Como resume o maestro António Victorino de Almeida, “tão importante como ter voz é saber o que fazer com ela e a Amália sabia.”
Mas regressemos por instantes a 6 de outubro de 1999, dia em que Amália Rodrigues morreu na casa de Lisboa, número 193 da Rua de São Bento, com a notícia a comover o país assim que se soube – a meio da manhã, pela rádio e pela TV. Tinha 79 anos, foi “símbolo inapagável da vida e da alma portuguesa”, disse o então primeiro-ministro António Guterres. Milhares de anónimos acompanharam as cerimónias fúnebres, na Basílica da Estrela, em Lisboa. O Presidente da República Jorge Sampaio não faltou, nomes do fado e da cultura também marcou presença e a despedida tornou-se acontecimento social e mediático, marcando talvez o início de um reencontro dos portugueses com o fado, desde então com novos intérpretes e novos públicos. A 9 de outubro, Amália foi a enterrar no Cemitério dos Prazeres e um ano depois a Assembleia da República aprovou por unanimidade a trasladação para o Panteão Nacional, que veio a concretizar-se em julho de 2001.
A carreira profissional iniciada em 1939 nas casas de fado de Lisboa tinha chegado ao fim em 1994, com um último concerto no Coliseu dos Recreios. “Aquela rapariga nervosa como um vime, que não nasceu para o fado porque foi o fado que nasceu para ela”, assim escreveu em 1945 a revista “Vida Mundial”, tinha feito um percurso de mais de meio século como uma das maiores vozes de sempre da música popular.
Extensão, tessitura e adaptação
Mas, afinal, o que é que tornou esta voz única? Perante a pergunta, António Victorino de Almeida ironiza – “um otorrino explicará melhor que eu” – e destaca antes a “ligação completa entre a palavra e a frase musical”, pois a fadista “não cantava frases musicais em que os textos não encaixassem totalmente”. Insistimos na dúvida, agora junto do musicólogo Rui Vieira Nery, historiador do fado e investigador de etnomusicologia. Ele regista a evolução da voz de Amália, dizendo que “começa por ser muito ligeira e ágil no registo agudo”, o que se nota nas primeiras gravações, nos anos 40 e 50, “com capacidade de fazer ornamentos rápidos e um desenho melódico virtuoso”.
Gradualmente, passou a ter um registo mais grave. “Se quiséssemos empregar um termo da ópera, que não é adequado neste contexto, começou como soprano, a voz feminina mais aguda; a meio da carreira foi uma voz intermédia, de meio-soprano; e no fim da vida era quase uma voz de contralto”, descreve o especialista, para quem as gravações de meados da década de 60 são as que revelam a “fase de grande maturidade” da intérprete. É por isso que o álbum Fados 67 é o preferido de Rui Vieira Nery – disco aliás gravado com o conjunto de guitarras do seu pai, Raul Nery, e reeditado em 2017.
[“Maldição”, álbum “Fados 67”, de 1967:]
Aldina Duarte reforça que Amália tinha uma “tessitura imensa”, sendo “capaz de começar ‘Com Que Voz’ numa nota gravíssima, que a maior parte dos cantores não consegue dar com musicalidade, e depois ir até um agudo muito difícil, passando pela escala média, que é o registo onde a voz dela mais brilha.”
No dizer da fadista, a extensão “é o número de notas e de escalas que uma voz consegue fazer, ainda que alguns dos sons sejam produzidos em esforço”, enquanto a tessitura “é a extensão de uma voz com as notas a saírem naturalmente”. Para Aldina, fica a sensação de que “a música podia ir por onde fosse que a voz da Amália acompanhava sempre”.
Na fase final da carreira, Amália “soube adaptar a forma de cantar à voz que se tinha modificado”, pormenoriza Frederico Santiago. “Quando envelheceu, claro, a voz envelheceu com ela, só que a inteligência manteve-se, mesmo que os músculos já não respondessem com a mesma precisão”, afirma António Victorino de Almeida. “Nos concertos, Amália compensava essa fragilidade da última fase com uma entrega emocional extraordinária”, remata Rui Vieira Nery.
“Era, na realidade, uma perfeccionista”
Resolvida a questão puramente técnica, os entrevistados avançam até outro ponto. Já não a voz como instrumento, mas a capacidade que a fadista revelava na escolha e interpretação de poemas. “Era fora do normal a capacidade que tinha de utilizar a voz para exprimir o sentido dos poemas e o som das palavras”, recorda António Victorino de Almeida. “Recusava-se, aliás, a cantar certas palavras, e não estou a falar em palavrões, mas de palavras que ela achava feias. Lembro-me de a ouvir dizer: ‘Essa palavra nunca a cantarei’. A Amália sabia tudo o que podia fazer com os poemas, por isso é que cedo começou a atribuir muita importância à escolha dos autores. Ela recusaria 99% das coisas que por aí se cantam, e já então se cantavam, perfeitos disparates do mais foleiro que se possa imaginar. Era, na realidade, uma perfeccionista.”
Rui Vieira Nery sublinha eficácia amaliana na poesia: “Sabemos sempre se ela está a cantar um texto feliz, dramático, desesperado ou melancólico. Essa capacidade de construir, com a voz, climas emocionais muito ricos e contrastantes, dentro do mesmo fado, é uma característica muito especial.” Nuno Vieira de Almeida concorda: “Sabia fazer a inflexão direta para a mensagem do texto que estava a cantar e para cada palavra em si. Não significa que tivesse de interpretar bem um texto antes de o cantar, significa que sabia interpretá-lo muito bem enquanto estava a cantar.”
Também professor de canto na Escola Superior de Música e investigador na área da sociologia e estética musical, Nuno Vieira de Almeida conheceu pessoalmente Amália em 1994, quando escreveu a música do espetáculo “Amaramália”, que o coreógrafo Vasco Wellenkamp criou para o Ballet Gulbenkian. Ele e a fadista acabariam por ficar amigos até ao fim.
Prossegue: “Num fado cantado por ela, as linhas melódicas são enormes e, muitas vezes, vão muito para além da respiração. Ou seja, a frase melódica continua mesmo que ela respire. Há uma atenção determinante a cada palavra do texto, consegue dizê-las de forma a que se perceba bem o significado. É uma coisa muito rara, mesmo em cantores de música clássica, porque exige um trabalho muito aturado, muito difícil e muito longo.”
[“Estranha Forma de Vida”, com música de Alfredo Rodrigo Duarte e letra de Amália Rodrigues:]
Para Frederico Santiago, cantor lírico do coro do Teatro Nacional de São Carlos, “todos os cantores de fado são cantores ligeiros, mas no cuidado que a Amália tem na maneira de dizer o poema é quase de um ‘bel canto’ que se trata, porque temos uma acentuação quase erudita e uma capacidade, intuitiva ou não, de saber construir um clímax num fado”.
Responsável desde 2014 pela reedição da obra completa da artista – a partir da pesquisa e escuta intensiva de bobines nos arquivos da editora Valentim de Carvalho, em Paço de Arcos –, Frederico Santiago defende que Amália “foi a única cantora ligeira que andou sempre num mundo que também era erudito”, num tempo em que as fronteiras entre géneros musicais estavam muito separadas. “Atuava em sítios que só recebiam artistas eruditos, como o Lincoln Center ou o Festival de Edimburgo, sem nunca perder a raiz popular.”
É aqui que Nuno Vieira de Almeida vê como importante sublinhar que, sim, o fado é classificado como música ligeira, ou música popular, o que “não tem qualquer conotação depreciativa”. António Victorino de Almeida, que há pouco tempo publicou um livro precisamente sobre este assunto, intitulado “Ensaio Sobre a Surdez”, enfatiza: “Somos obrigados a dizer a palavra ‘ligeiro’ porque há pessoas que se recusam a ver o óbvio. É tão mau quanto dizer ‘música clássica’. Existem estilos diferentes e em todos se fazem coisas boas e coisas horrendas. A palavra ‘ligeiro’ não é um insulto e a palavra ‘clássico’ não é um elogio.”
Feito o esclarecimento, voltemos a Amália Rodrigues para entender de onde lhe vinham as qualidades destacadas e como é que ela aprendeu. “Tudo se aprende. Simplesmente, nem tudo se aprende numa escola”, responde o maestro. “Posso garantir que para se ser a Amália é preciso trabalhar muito, não é um trabalho comparável ao de quem vai para um Conservatório fazer vocalizos. Mas quem a conheceu até melhor do que eu dizia que ela trabalhava muito, ensaiava muito, pensava muito.”
Na mesma linha, Nuno Vieira de Almeida assegura que a fadista “trabalhou muito todos estes aspetos, provavelmente sem saber”. E novamente, deixa o elogio: “Não quero de maneira nenhuma minimizar os interpretes atuais, até porque os especialistas consideram que o fado está num período de grande pujança, mas Amália é Amália, elevou a música popular a um nível que nunca mais terá. Não é sequer comparável à Edith Piaf, uma grande intérprete, que também aprecio.”
António Victorino de Almeida volta a intervir: “A Piaf cantava sempre um nadinha desafinada, era uma característica dela inimitável. Não era um defeito, era um efeito. Amália estava sempre afinada, dominava completamente a voz”. Aldina Duarte também faz uma comparação: “Se a Beatriz da Conceição fosse a Billie Holliday, a Amália seria a Ella Fitzgerald.”
Perigo de apagar os outros
A fadista da casa Sr. Vinho, no bairro lisboeta da Lapa, começou a ouvir fado com atenção aos 21 anos, o que considera tarde, e só com 23 se estreou a cantar. Aponta Beatriz da Conceição (1939-2015) como “referência e mestra”, sublinhando que esta “tinha uma forma de estar no fado que não passava pela popularidade ou pela voz”. “Se a história da arte falasse só de génios, seria uma barbaridade, uma história empobrecida. Como a Amália é um génio e tem a universalidade que tem, tende a apagar tudo o que está à volta e isso é um perigo. Ela não tem culpa, é a nossa reação a ela.” Para se perceber melhor, Aldina Duarte cita Alfredo Marceneiro, “um génio ao contrário: tinha uma não-voz e uma inteligência interpretativa e musical tão grande, tão grande que podia cantar tudo”.
No mesmo sentido, o maestro nota que “tivemos a Maria Teresa de Noronha, uma fadista extraordinária, a Lucília do Carmo, a Argentina Santos, todas diferentes”. Simplesmente, “naquela extensão de voz que lhe era própria, Amália conseguiu criar um mundo sonoro extraordinário”. Para Victorino de Almeida, o melhor exemplo está em Amália no Olympia, gravado ao vivo na famosa casa de espetáculos parisiense e publicado em 1957. “É uma obra-prima da música, um obelisco, dentro de qualquer estilo de música. É muito difícil voltar-se a fazer uma coisa assim”, comenta.
[“Nem às Paredes Confesso” no Olympia em 1957:]
Igualmente relevante, para Frederico Santiago, é o álbum Com Que Voz, editado em 1970, a mesma escolha de Aldina Duarte, por ser “o auge, o disco que contém a essência”. E mesmo no auge, a intérprete soube sempre resistir ao que Frederico Santiago chama “fogo-de-artifício”. “Uma pessoa com aquela voz nunca cantou sem ser ao serviço da palavra, nunca procurou dar um grito só para mostrar que tinha voz, como fazem algumas cantoras. Na verdade, nunca se pôs acima do que estava a fazer, porque primeiro estava a música.”