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Avançamos já para a conclusão: é pouco provável que seja o melhor disco do ano, que seja melhor do que os anteriores Burn Your Fire For No Witness e My Woman (mas caramba, era mesmo difícil), mas não há nada de errado com o novo disco de Angel Olsen. Podem os cínicos tirar o cavalinho da chuva. Em All Mirrors, alguma coisa errada? Nada.

A voz é a que já lhe conhecemos, capaz de subir aos céus, de soar blaisé como se estas lições aprendidas de sonhos e perdas não fossem nada com ela (se calhar até não são, o ouvinte sabe lá), de parecer segura e desafiante num segundo e logo a seguir parecer que se está a despedaçar, por um fio, falta só um bocadinho para isto desmoronar tudo e cairmos todos num pranto. Como dizia o outro, “vocês sabem do que estou a falar”.

Não se trata só de cantar bem, isso tanta gente canta. Angel Olsen não é cantora com exibicionismo Factor-X. O que tem é mais raro, é o killer instinct que permite adivinhar quando é que deve amaciar e quando é que deve amassar o ouvinte, é capacidade de perceber quando é que deve fazer as duas coisas ao mesmo tempo, com cautela para não abusar. Ponham os músicos que quiserem à volta dela, génios do jazz ou da música clássica, vai ser sempre aquela voz a comandar tudo. Damos a palavra a Will Oldham, que a ouviu e a recrutou sem pestanejar há uns bons anos, ainda Angel Olsen não tinha carreira a solo:

“Tenho padrões altos. Quando a ouvi cantar, foi tão bom quanto precisava que fosse. O que é como quem diz: foi excelente”.

Sobre a voz, estamos conversados. Vamos então à escrita, que é a do costume e isso também não é dizer minudências: aqui temos novamente Angel Olsen a escrever sobre amores e desamores com a lucidez de quem sabe da poda. Não é poesia críptica, a linguagem não obriga a ir ao dicionário, são apontamentos de diário que têm pozinhos de tudo: tragédia, drama, pena, resistência, desagrado, auto-confiança na auto-suficiência, desprendimento. Tudo isto a brotar de reflexões sobre aquele grande tema que ocupa a humanidade há eras, o amor — ou as simulações de amor, porque (outra vez) sabe lá um tipo… — e a ausência dele.

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Há tempos, um cantor português, para o caso nem sequer interessa quem, dizia que só sabia escrever canções de amor. Se calhar Angel Olsen poderia dizer o mesmo. Factualmente, talvez não estivesse inteiramente certa, há sempre espaço para uns pequenos desvios e estamos convencidos que se quisesse até era mais misteriosa e metafísica. Mas é a arte de contar como viu e se calhar como viveu (sabemos lá se viveu ou não…) o encontro e o desencontro com “o outro” que lhe ocupa mais o cancioneiro. Até podia ser repetitivo, mas mais alguém canta isto assim? Como se isto fosse, e é mesmo, coisa séria, que não se presta a desleixos nem a perfeições técnicas, que pede que se cante com tudo, coração, cabeça, sangue, corpo todo?

Desta vez veio acompanhada por violinos, violoncelos, violas de arco, a orquestra toda. Há-de lançar um disco com estas canções mais despidas de instrumentos, só melodia, guitarra/piano ou coisa que o valha. Antes vamos lá ouvir este canção a canção.

“Lark”

Começa como quem não quer a coisa, a criar suspense, parece que ainda se está tudo a afinar, que a maquinaria de estúdio ainda está a engrenar, os músicos vão começando a medo e Angel Olsen ainda está a beber aquele gole de água de quem vai começar uma empreitada. Só ali à chegada dos 20 segundos é que chega a voz e começa logo com versos mortíferos, como manda o manual das boas canções (mandamento um: se não entras a matar, perdes logo uns ouvintes).

Em My Woman, o disco anterior, arrancava com uma dúvida perigosa: “Talvez saibas que já foi há demasiado tempo…”. Em Burn Your Fire For No Witness, o primeiro álbum a dar-lhe verdadeiramente projeção mundial no indie (depois de uma interessante estreia, a que — por culpa da pouca promoção, não da falta de méritos do disco — quase ninguém ligou pevide, com Halfway Home), declarava: “Desisti do que sonhava no momento em que te encontrei / Comecei a dançar só para estar perto de ti”. Aqui, não faz a coisa por menos: “Esquecer-te é mentir / ainda há tanto por recuperar / se simplesmente pudéssemos começar de novo fingindo que não nos conhecemos…”

Começamos a ouvir violinos, violoncelos, uma orquestra de instrumentos de corda com fartura. Basta um minuto e pouco para começarmos a desconfiar que isto não vai ser mais do mesmo, que se o disco anterior de Angel Olsen já preteria algum recato pela força, por um tom épico que também lhe fica bem, aqui é capaz de ir ainda mais longe. “Diz que o teu coração é meu / E os tempos antigos? Não podes apagá-los”, grita-nos bem alto. O melhor é correspondermos. Mas só por receio de retaliações. As cordas voltam a fazer-se ouvir entre silêncios de voz, isto parece uma epopeia grega, há-de acabar com desencontro, “disse-me que era a mulher que ele estaria sempre a perder, com que estaria sempre a sonhar. Dizes que amas todas as partes, mas e os meus sonhos, e o meu coração? Problemática desde o início, problemática com o coração”. Aguenta coração.

“All Mirrors”

Ora cá está, a canção que dá nome ao disco. Logo por isto suspeitamos que é importante. Descobrimos que esta é menos palavrosa. E é um bocadinho menos escarrapachada e um bocadinho menos interessante. Mérito para os arranjos instrumentais que, como em todo o disco, sim senhor, cordas e sintetizadores de mão dada, orquestra a dar tom de opulência a isto, Angel Olsen está crescida e a guitarra já não lhe basta. Mas bom, só ali no crescendo à beira dos três minutos é que a canção dá palpitações, o que sempre é mais do que muitos escritores conseguem.

Vale sobretudo pelas aliterações, pelo esquema de rima, daí citarmos na versão original:

“I’ve been watching all of my past repeating
there’s no ending
and when I stop pretending
see you standing 
a million moments landing
on your smile (…)”

Não é canção single, ao contrário da anterior — e como, esperamos, o serão umas quantas mais ali para a frente —, mas cumpre.

“Too Easy”

Angel Olsen está mais feliz aqui do que quando cantava “Everything is tragic / it all just falls apart”. Não acreditam? Então oiçam-na cantar aqui que “acredita em tudo” o que outro lhe disser, que “faria tudo por ti”, que o melhor é “cancelar todos estes planos porque estou a sonhar / a viver por uma coisa que é real”, já não é uma ficção de almofada, o outro entrou e “agora sinto que não estou sozinha, não estou”.

Nesta canção já se ouve menos orquestra, menos cordas. O que se ouve mais é o sintetizador brilhante, Angel Olsen a encarnar em Charlotte Gainsbourg, synth-pop lânguida que serve sobretudo de pequeno escape no disco. É a canção mais curta de todo o álbum e de facto não era preciso durar mais, está bom assim. Já são duas seguidas que não arrebatam mas também não comprometem. Para o padrão Angel Olsen, está q.b.

“New Love Cassette”

Ora, é aqui que isto volta a animar, depois de uma entrada a pés juntos com “Lark”. Voltam os violinos, violoncelos e as violas de arco, mas o arranque é mérito exclusivo das nuances vocais de Angel Olsen quando canta “quero mostrar-te o meu amor a toda a hora / quero segurar-te perto de mim e deixar-te mentir”. Tau.

A batida instrumental não vai variando muito, vai criando uma toada que já nos faz mexer os ombros, não chega a dança mas quase, se passasse numa pista seria ao fim da noite. Palmas para o baterista Joshua Jaeger, que aqui se porta mesmo bem. Há um barulho esquizóide à beira dos dois minutos, há tensão clássica dos instrumentos de cordas e há Angel Olsen a declarar-se apaixonadamente:

“Quando estiveres fora de alcance a não souberes como
vou dar-te as minhas mãos, mostrar-te agora
vou mostrar-te todo o meu amor a toda a hora
vou ser o teu fôlego quando estiveres sem vida”

Se fosse futebol era o 1-1, o início da recuperação depois de uns minutos de toada morna.

“Spring”

Pronto, está a recuperação feita. Está mesmo. Como é que se canta com doçura aquele aviso inicial, “não tomes a coisa por garantida / ama-a quando a tens”, o melhor é aproveitar porque não tarda “podes estar a olhar por cima de um ombro solitário”?

Angel Olsen gostava que “isto fosse verdadeiro amor”, que ela e alguém se estivessem “a beijar”, mas enfim, vissicitudes da vida, atire a primeira pedra quem nunca teve um desgosto. Há dois versos assassinos que são capazes de fazer pelo menos 45 ou 46 ouvintes (estatística fundada em excelsos estudos de opinião) repensarem relações amorosas, “começo a pensar se alguma coisa é real / acho que estamos simplesmente à mercê da maneira como nos sentimos”.

A canção é bonita, como quase todas de Angel Olsen, e a produção é exímia, acabando com interessante momento instrumental. Imediatamente antes, ouvimo-la primeiro trágica — “viva com um passado que mais ninguém pode partilhar / sozinha com uma coração que mais ninguém pode suportar” —, depois apaziguada. Bom, se é assim, ao menos que haja felicidade por um bocadinho, isto também não dura para sempre, a pedir que se peça só “algum céu só por um bocadinho / torna isto eterno, aí no teu sorriso”.

“What It Is”

A percussão vai marcando o ritmo, sempre constante. É uma espécie de galope a cavalo musical, os instrumentos de cordas a espreitar e intrometer-se intermitentemente no flirt entre a voz de Angel Olsen e a percussão.

Talvez não seja por acaso que isto cresce e ganha tom mais épico-desafiante quando, sem piedade nenhuma, a mulher fatal que é (pelo menos a personagem de) Angel nas canções dispara:

“Nunca é fácil admitir
que talvez só tenhas desejado aquilo
apenas para sentires algo novamente
Só querias esquecer
que o teu coração estava cheio de m****
só querias esquecer
só querias esquecer”

Mérito aqui para o responsável pelos arranjos de cordas, Jherek Bischoff, que soube — talvez mais até do que outros que trabalharam em outros temas do disco — potenciar a voz e a composição de Angel Olsen.

“Impasse”

Começa em tom de film noir, um mistério com suspense que se vai adensando. A quantidade de instrumentos que aqui se ouvem é imensa, dos violoncelos, violas de arco, violinos, bateria, guitarras, baixos e sintetizadores ao vibrafone. O som é cheio, grandioso, com Angel Olsen a cantar sobre uma grande massa de som.

A opção por mudar e inovar é compreensível e bem-vinda. E é especialmente notória neste tema, que soaria estranhíssimo inserido em qualquer um dos álbuns anteriores de Angel Olsen, mais ancorados na folk elétrica e no indie-rock. Também não é uma canção que fica na cabeça, não é um tema que arrebatará corações (sobretudo dos que preferiam Olsen em tom íntimo e vulnerável), mas a sonoridade é coerente com a letra: vai lá e diz aos teus amigos que estava errada, culpa-me por tudo, toda a gente vai acreditar, dispara ela, magnânima. Soa menos a lamento do que a tiro no porta-voz do lema “bros before hoes”.

“Tonight”

E eis que Angel Olsen desacelera, de repente parece a colega (nisto do cançonetismo) Weyes Blood, mas em modo apaixonado. Se a música romântica e as baladas fossem sempre assim teriam melhor fama, embora a fama de parente pobre das canções também seja imerecida.

Se as canções da autora de “Shut Up Kiss Me” versavam em tempos, e aqui e ali ainda versam, sobre a dor do desencontro, aqui está tudo bem:

“Gosto do ar que respiro
gosto dos pensamentos que tenho
gosto da vida que levo
sem ti”

Está tudo a clarear, canta ela sobre uns bonitos arranjos orquestrais, com a erudição do violino bem notória. E não é porque “não ame”, simplesmente não tem “tempo para explicar todas as coisas que achas que já conseguiste perceber”. Esta doeu.

“Summer”

Decretamo-la já aqui como a melhor canção de All Mirrors — ok, ali a par com a “Lark” — e uma das melhores canções do ano. Pronto, está escrito, não há volta a dar. A orquestra fica encostada a um canto, a guitarra, o baixo, os sintetizadores e a bateria tomam controlo e fazem isto parecer uma espécie de viagem a cavalo pelo deserto, filme Western com uma grande cavaleira-cantora.

O tema fala de “um inferno” que a protagonista viveu, de “ter perdido a luz”, de ter “perdido a alma” e de não lhe ter restado “mais nada a perder”. Caramba. Acaba depois com os belíssimos versos “e todos aqueles dias de verão foram como um sonho / acordaram-me de um sono desassossegado / tornaram-me silenciosa, enfranqueceram-me / e todo o peso de todo o mundo veio a correr”. Talvez Angel Olsen se refira a uma súbita depressão que teve depois do lançamento do seu álbum anterior, My Woman, durante uma digressão de apresentação ao vivo do disco. À revista Fader, falou assim desse período, que descreveu como de “divórcio”, embora não se tenha nunca casado: “Estava a perder peso, a beber muito. As pessoas viram-me tornar-me alguém que estava perdida”. Parece que agora já está tudo melhor.

“Endgame”

Começa assim: “I needed more”. Eu precisava de mais. Quase soprado, praticamente a capella, um bonito sussurro de nossa senhora Angel Olsen. O início é sóbrio, parece desencantado. Há-de cantar que “fizemos isso tudo, fizemos a dança, passámos por este inferno e saímos”. Também não é possível single, é uma canção de tom épico-sofrido, cordas a soar por todo o lado, Olsen a arrastar ligeiramente a voz, o tempo a desacelerar, uma canção combate contra a pressa do dia-a-dia.

Angel Olsen há-de cantar ainda que se afasta “de todo o barulho”, que está “por sua conta”, que já não sabe “como falar” com o interlocutor desta “Endgame” (suspeitamos que não somos nós) e que prefere “estar sozinha” — só que “sempre que o estou pergunto-me: porquê tanto tempo?”. Pois é, agora passem uma semana a pensar nisto, meçam prós e contras, se tiverem talento para isso façam como a Angel Olsen e reflitam no assunto enquanto o cantam. Se não, não vale a pena.

“Chance”

Depois da acalmia anterior, eis que a toada muda ligeiramente, continuamos melancólicos mas a voz é mais alta, a instrumentação arranca mais simples (o piano em grande plano), importante é que se oiça bem e sem efeitos de voz Angel Olsen a cantar “Já tive o suficiente / não quero tudo isto”. Embrulhem, ela já teve “um amor”, agora “o pior sentimento que já tive foi-se” mas não temos cá ilusões, a sra. sabe bem “como tudo isto volta”.

A voz levanta pêlos dos braços, quase emociona. E aquele crescendo vocal inesperado que de repente nos faz levantar da cadeira, “Vou partir mais uma vez / fazer os meus próprios planos”? E a conclusão disto tudo, de todo este All Mirrors, esta que nos diz que Angel Olsen está-se nas tintas para a eternidade, isso é pretensão de pirralho que sabe lá que “a vida é sempre a perder” como cantavam os Xutos (com alguns, desejavelmente muitos, ganhos pelo meio, ali a intercalar)? Angel Olsen não está “à procura da resposta / ou de alguma coisa que dure”, só quer “ver alguma beleza, tentar e perceber se nos chegámos a conhecer um ao outro / quão raro é isso?” Não fôssemos nós uns incorrigíveis empedernidos e isto era mesmo coisa para emocionar, um bonito final com Angel Olsen a subir e descer o tom da voz, as cordas aqui e ali a atirarem a canção para os céus, o recato a trazê-la para as chatices, os encantos e os desencantos quotidianos.

Angel Olsen apresenta “All Mirros” ao vivo em Lisboa, a 22 e 23 de janeiro (Capitólio) e no Porto, a 24 do mesmo mês (Hard Club)