Todos juntos, fariam um senhor de 79 anos.
No segundo dia da convenção do Partido Democrata houve vários oradores. Mas, no que toca a nomes de peso, houve cinco políticos convidados a falar a solo, num segmento próprio: o líder dos democratas no Senado, Chuck Schumer, os ex-Presidentes Jimmy Carter e Bill Clinton, o ex-candidato presidencial e último secretário de Estado de Barack Obama, John Kerry, e também o antigo secretário de Estado do primeiro mandato de George W. Bush, Colin Powell. Balizados entre os 69 anos de Chuck Schumer e os 95 de Jimmy Carter, estes quatro homens têm uma média de idades de 79 anos. À beira dos 78 anos, Joe Biden é velho — mas nem ele é tão velho quanto isso.
Não consta que Joe Biden tenha como slogan de campanha “Make America Great Again” (“Tornar a América Grande de Novo”) como Donald Trump fez em 2016, num apelo por outros dias mais distantes e pedindo emprestado um dos slogans de campanha do republicano Ronald Reagan em 1980. Não, esse não é de todo o lema da campanha do candidato democrata. Porém, no segundo dia da convenção do Partido Democrata, ficou a latejar a ideia de que Joe Biden parece decidido a puxar a fita para trás da História até chegar a uma qualquer zona de conforto.
Antes de qualquer conforto, cabe a uma convenção de um partido que não está no poder sublinhar o desconforto vigente. E foi isso que fizeram aquelas cinco eminências pardas do Partido Democrata. Jimmy Carter, de quem só se ouviu a voz e se viram fotografias, falou destes “tempos incertos”. Bill Clinton olhou para a Sala Oval, por onde ele próprio já passou, e disse que esta “devia ser um centro de comando, mas, em vez disso, é um centro de tempestades” e um “caos”. Chuck Schumer fez por olhar os norte-americanos nos olhos para dizer-lhes: “América, Donald Trump desistiu de vocês”. John Kerry queixou-se de o atual Presidente “romper com os nossos aliados e escrever cartas de amor a ditadores”. E Colin Powell, homem de quem se julgou poder ser o futuro do Partido Republicano, mas que vota no candidato democrata desde 2008, falou de um “país dividido” e de “um Presidente que faz tudo o que está ao seu alcance para fazer com que seja e se mantenha assim”.
E que zona de conforto sobra depois disto tudo? Aqui, já se sabe, todos os caminhos apontados nesta convenção vão dar a Joe Biden. John Kerry garantiu que aquele é um homem com uma “bússola moral” e com a noção de que nenhum problema global pode ser resolvido “sem unir as nações”. Colin Powell apoia essa ideia, mas também garantiu que Joe Biden saberá mostrar os dentes quando necessário aos adversários dos EUA: “Eles vão saber que ele fala a sério”. Jimmy Carter, por seu turno, preferiu enaltecer a “experiência, o caráter e a decência” de Joe Biden. Chuck Schumer antecipou o que um Presidente Joe Biden poderia conseguir com uma maioria democrata no Senado (ambas realidades por concretizar), indo da “saúde ao alcance de todos” a um “Supremo Tribunal que olha pelo povo e não pela empresas”. E Bill Clinton sublinhou, numa série de adjetivos separados por hífenes, que Joe Biden será um “Presidente mãos-à-obra”, até porque é um “tipo terra-a-terra, um tipo vamos-lá-fazer-isto”.
Não será, pelo menos em tese, uma má medida a de apelar a um eleitorado que se revê naquelas figuras de outras eras (à exceção do rookie do grupo, Chuck Schumer, ainda em atividade). De acordo com a última sondagem do Wall Street Journal e da NBC News antes da convenção, Joe Biden é já o mais popular dos dois candidatos entre os eleitores mais velhos — uma tendência criada pela pandemia.
Biden holds advantages of 80 points among Black voters, 26 points among Hispanic voters and 7 points among those 65 or older, while Trump has a lead of 51 points among white, evangelical voters and 24 points among white voters without a college degree:https://t.co/aZYFfLlCO8 pic.twitter.com/uLrKpGVWDn
— John McCormick (@McCormickJohn) August 16, 2020
Ao tom solene daqueles discursos juntou-se Jill Biden. Visualmente, havia ali muitas diferenças para os oradores anteriores. Quando chegou a vez da mulher de Joe Biden discursar, em lugar das salas de estar com decorações antigas ou dos monumentos lá ao fundo no escuro da noite, via-se a sala de aula de uma escola secundária pública no Delaware.
O tom podia ser positivo. Mas, no início, foi duro e pesado. Tudo com uma ideia: o silêncio das escolas. “As salas de aula estão escuras e as caras brilhantes dos nossos jovens que deviam estar a iluminá-las estão agora confinadas a caixas num ecrã de computador”, disse. E dali foi para fora das salas de aula. “Eu oiço tudo isto em vocês”, disse. “A preocupação de qualquer pessoa que trabalha sem proteções. O desespero nas filas que se alongam à porta dos bancos alimentares. E a tristeza indescritível que se segue ao último e solitário suspiro quando os ventiladores se desligam.”
De seguida, falou de como conheceu Joe Biden quando este tinha dois filhos e estava viúvo, na sequência de um acidente de carro onde morreu a mulher e também a filha. E como, mais tarde, Joe Biden enterrou outro filho, Beau, vítima de um tumor cerebral. “Quatro dias depois do funeral do Beau, vi como o Joe fez a barba e vestiu o fato. Reparei que ele olhou fixamente para o espelho, inspirou, endireitou os ombros e, depois, entrou num mundo já sem o nosso filho”, recordou. “Ele voltou ao trabalho. Ele é assim.”
Foi nesta nota de esperança que Jill Biden terminou o seu discurso — procurando convencer os norte-americanos de que o seu marido será capaz de levar os EUA a saírem de casa com a barba feita e os ombros direitos. “Se ouvirem com atenção, dá para ouvir as faíscas da mudança no ar”, disse. “Só precisamos de uma liderança digna desta nação.”
Uma tour pelos EUA e a desmancha-prazeres Alexandria Ocasio-Cortez
Convém dizer ao extra-terrestres que tenham aterrado esta semana no planeta Terra e que estejam a seguir a convenção do Partido Democrata que isto nem sempre foi assim. Por “assim”, entenda-se o conceito de convenção virtual. Organizada como um programa de televisão, uma parte considerável dos discursos desta convenção são vídeos previamente gravados — longe dos apartes do momento, habitualmente causados por um público que ora apupa ora ovaciona. Agora bem pode fazê-lo, mas só a vizinhança dará conta.
Este não é o formato ideal de uma convenção partidária — um facto reconhecido amiúde pelos oradores e internautas. No primeiro dia da convenção, abundaram tanto os vídeos gravados em casa dos oradores que a humorista Maura Quint propôs o seguinte exercício: “Se virem a convenção sem som podem fingir que é o início de um episódio do [programa de televisão de imobiliário] Love It Or List It”.
if you watch the convention on mute you can just pretend it's the beginning of an episode of Love It Or List It pic.twitter.com/LYHR0mLAr1
— maura quint (@behindyourback) August 18, 2020
Mas, justiça seja feita, esta terça-feira as câmaras saíram das quatro paredes, mostrando caras de todo o lado dos EUA, numa verdadeira tour do país. E isso resultou quando chegou a altura de cumprir uma formalidade da convenção: nomear Joe Biden como candidato do Partido Democrata às eleições presidenciais de 3 de novembro de 2020. Os representantes de cada um dos 57 estados e territórios dos EUA anunciaram o que já se sabia a partir de cada um dos seus cantos do país: quantos delegados votavam para o vencido Bernie Sanders e quantos davam a vitória a Joe Biden.
Em convenções normais, este anúncio é feito na plateia da convenção, numa sucessão de anúncios que embala quem assiste. Nesta, nem por isso. O único fator de previsibilidade era a ordem alfabética: Alabama, Alaska, American Samoa… Mas um exercício que, até aqui, se sabia enfadonho tornou-se imprevisível.
Foi das proclamações que começavam em línguas nativas ao sotaque cerrado do Sul; das vestes tradicionais das Ilhas Marianas à roupa do agricultor do Kansas; da dureza do discurso (abafado pela máscara) da trabalhadora de uma fábrica de embalamento de carne no Nebraska à leveza do delegado de Rhode Island, que antes de anunciar o voto fez ele próprio um anúncio aos calamares do seu estado; das caras anónimas até às mais conhecidas, como Khizr Khan, o pai do veterano de guerra muçulmano morto em combate e que criticou duramente Donald Trump na convenção democrata de 2016.
Esta não foi, porém, uma festa feita sem percalços — e logo ao início do anúncio das votações dos delegados a congressista Alexandria Ocasio-Cortez assumiu o papel de desmancha-prazeres.
Apesar de ter sido anunciada pela organizção da convenção como uma das oradoras desta segunda noite, a congressista do Bronx só tinha 60 segundos para falar — e não num discurso normal, mas sim na condição de superdelegada da convenção.
Rep. Ocasio-Cortez nominates Sen. Sanders over Joe Biden at the #DemConvention: “In a time when millions of people in the United States are looking for deep systemic solutions to our crises … I hereby second the nomination of Senator Bernard Sanders of Vermont for president." pic.twitter.com/CKc28FLzTq
— MSNBC (@MSNBC) August 19, 2020
Na hora de anunciar o seu voto, Alexandria Ocasio-Cortez não fez qualquer concessão a Joe Biden. Em lugar disso, utilizou os 60 segundos que lhe couberam (e esticou a corda para lá deles, ultrapassando a marca em mais 37 segundos) para enunciar os vários princípios que levaram ao seu voto. Por um “movimento popular de massas”, a favor de “garantias de saúde, ensino superior, salários dignos e direitos dos trabalhadores”, contra a “injustiça racial, colonização, misoginia e homofobia” e atenta à “insustentável brutalidade de uma economia que premeia desigualdades explosivas a favor de uns e à custa da estabilidade a longo prazo de muitos”.
Já se percebia onde é que tudo aquilo ia dar. E só quando lá chegou é que Alexandria Ocasio-Cortez tirou velocidade ao discurso a falou com mais gravitas: “Venho por este meio apoiar a nomeação do senador Bernard Sanders para Presidente dos Estados Unidos da América”.
Mas não foi para aí que os números apontaram. No final de contas, Bernie Sanders somou 1.151 delegados e Joe Biden 3.558. É, pois, aos 77 anos e à terceira tentativa (concorreu em 1988 e em 2008, sem sucesso), formalmente o candidato do Partido Democrata às eleições presidenciais de 3 de novembro de 2020. Aqui já ganhou. O resto, logo se vê.