Arnaldo Trindade (que morreu aos 89 anos, como comunicou a família esta segunda-feira, 8 de janeiro) foi um homem de contrastes. O arrojo visionário e intelectual do fundador da Orfeu, que editou os melhores poetas de Portugal, esteve em perfeita sintonia com a manha de comerciante de eletrodomésticos. Esta comunhão invulgar de arte com negócio, ainda mais em Portugal, tornou a editora Orfeu na protagonista da revolução na canção portuguesa na década de sessenta e setenta, com a edição de singles e álbuns emblemáticos de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Sérgio Godinho ou Fausto — ao mesmo tempo que lançou, sem quaisquer pruridos, ranchos ou canções brejeiras.
Os contrastes chocaram de frente com a sociedade conservadora do Estado Novo, mas também com os seus próprios parceiros. José Afonso tanto o descrevia como um “comerciante” como um “homem de vistas largas”. Arnaldo Trindade era um comerciante: herdou do pai a loja representante da Philco em Portugal, no centro do Porto, e aos seus olhos, a loja e a editora eram uma mesma empresa — a título de exemplo, Jorge Palma recebeu uma máquina de lavar a loiça como pagamento pelo seu primeiro single. E o fundador da Orfeu era certamente um homem de vistas largas: contratou José Afonso como assalariado, garantindo a criação de um dos cânones mais valiosos da música portuguesa, organizou convenções de discos, incluindo o pagamento de mil contos para um único disco — o resultado, entre outras gravações, foi Grândola, Vila Morena.
Há 50 anos, ao contrário da maioria das editoras concorrentes, recusou-se a editar canções panfletárias. Nunca se comprometeu politicamente, nem antes, nem depois da Revolução dos Cravos, o que lhe valeu algumas querelas públicas com os músicos que publicou, incluindo José Afonso. A história deu-lhe razão: hoje, o PROJETO ORFEU, da Universidade Nova de Lisboa, recolhe e estuda as décadas de trabalho de Arnaldo Trindade, o comerciante de vistas largas, com uma programação de edições e exposições para breve.
Esta conversa foi feita em 2021, ao telefone. Vários excertos integraram textos publicados pelo Observador numa série sobre a música portuguesa em 1971, um ano de transição criativa e editorial. Agora, publicamo-la na íntegra, pela primeira vez. Uma conversa sobre música, história e memórias discográficas, de José Afonso a Adriano Correia de Oliveira, do Porto a Paris, de negócios de sucesso a contas de má memórias, sobre “música fantástica”, como disse o próprio Arnaldo Trindade: “Por isso é que ainda estamos a falar disso”.
Antes de mais, está a falar-nos de onde?
Estou em minha casa, no topo da Foz, no Porto, a ver o mar. Está um dia lindíssimo. Sentei-me num jardim para falar consigo.
Liguei-lhe para conservarmos sobre a Orfeu.
Atenção que a Orfeu não era uma pessoa, era um conjunto de pessoas, esse foi exatamente o valor da Orfeu. Eu acreditava nas pessoas que estavam à frente das secções, dava-lhes uma autonomia enorme. Haviam reuniões mensais do grupo nas quais fazíamos a discussão dos projetos e para dar o aval na parte financeira. Ou seja, tudo que foi feito na Orfeu foi feito com o meu consentimento, mas há coisas que me ultrapassam. As pessoas eram profundamente autónomas, eu acreditava na parte criativa de cada um.
Entre essas pessoas, o José Niza e o Carlos Cruz.
O José Niza era o Product Manager, o Carlos Cruz tratava da promoção, na vontade de melhorar a música dita ligeira, sobretudo dedicada ao Festival da RTP da Canção, com melhores arranjos e gravações. E claro, o José Afonso e Adriano Correia de Oliveira também eram assalariados da Orfeu. Na altura não tinham oportunidade de ter outro emprego, por causa da situação política. O José Afonso foi impedido de dar aulas e o Adriano foi boicotado na faculdade, não conseguiu terminar o curso de direito. Achei que para eles poderem ter uma produção tinham que ter uma certa segurança económica. Pagava-lhes oito contos por mês.
Esse tipo de contrato para um músico era muito incomum em Portugal.
Não havia um contrato assim em parte nenhuma. A Orfeu é um estudo de caso. Há mais exemplos. Começámos com a micro gravação que não existia, os nossos concorrentes estavam cheios de [discos de] 78 rotações que se partiam facilmente e não estavam nada interessados em apostar nos LPs [de 33 rotações]. A modernidade e a qualidade foram a nossa arma, inclusive a qualidade das capas, usámos a boa escola de Belas Artes do Porto, como o Armando Alves, o José Rodrigues, o Júlio Resende, foram quem fizeram as primeiras capas da Orfeu, juntamente com a fotografia do mestre Fernando Aroso. Para conseguir divulgar o LP, coisa que ninguém estava interessado em fazer, fizemos uma compra maciça em França, de gira discos, e a quem comprasse dez LPs nós oferecíamos o gira discos.
Isto quando?
Em 1969. Foi apresentado na convenção Internacional do disco, em Ofir. Fretámos um avião para trazer pessoas de Lisboa e de fora, como o [músico, bluesman] Long John Baldry que era número um na Inglaterra, e os The Foundations. E o José Afonso cantou no Rádio Clube Português, em direto. E muito fado de Coimbra, sempre tivemos um bom reportório de fado de Coimbra. Mas a nossa grande especialidade era a poesia, foi o começo da Orfeu. A Orfeu começou a editar discos de poemas ditos pelos próprios poetas, o primeiro disco da Orfeu foi o do Miguel Torga.
Poetas que conheceu pessoalmente?
Conheci por causa das gravações. O meu mentor foi o Óscar Lopes, o meu professor de português no liceu, uma pessoa excecional, cunhado do Jorge de Sena. E o Alberto Uva era outro, professor de inglês e alemão. Estes professores mostraram-nos os poemas da Geração d’Orpheu, em vez de aprender Os Lusíadas, líamos poemas que nem estavam à venda nas livrarias. O fim do curso foi uma visita ao Teixeira de Pascoaes, em Gatão. Este foi o meu percurso.
E antes da Orfeu não tinha qualquer experiência de edição discográfica?
Não. Eu tinha vinte anos, meu amigo, estava na faculdade para estudar Engenharia, no Porto não havia Letras nem Direito, não havia nada… O mais importante era o ambiente do Porto que se deu nesta época. Não podíamos comprar os livros que queríamos, nem sequer podíamos estar três pessoas a falar na rua que podíamos ser interpelados. Portanto, houve uma revolta das camadas jovens que liam coisas lá de fora, como o Camus, Brecht, Aragon, que conseguiam esses livros, e criou-se uma contra-corrente intelectual, baseado no Teatro Experimental do Porto, do António Pedro. Eu também fui fundador do Teatro Experimental do Porto e usei os atores para gravar os poetas mortos, como Fernando Pessoa e Sá Carneiro. E também havia o cineclube, o único da Península Ibérica, aos domingos de manhã no Batalha. Foi uma quantidade de coisas, além das tertúlias em cafés, como no Majestic, em frente à minha loja, na Rua Santa Catarina. Estava lá o Torga, o Régio, os “presencistas”, o Daniel Filipe, que ainda é tão pouco conhecido, que tem o melhor poema de amor em português, A invenção do amor.
A loja de eletrodomésticos era sua família?
Era, tinha seis andares, começava no passeio, onde vendíamos frigoríficos. Éramos os representantes da Philco, uma marca americana, éramos os segundos maiores importadores de eletrodomésticos em Portugal. Foi esta parte financeira que aguentou a Orfeu.
E o seu tempo dividia-se entre a loja e a Orfeu?
Quando começa a Orfeu, ainda era estudante universitário, mas inicialmente a Orfeu era apenas na loja, era uma espécie de tertúlia. Os primeiros discos da Orfeu foram gravados na loja, depois das duas da manhã, por causa do barulho dos elétricos, era pioneirismo puro. Isto porque tinha comprado uma máquina Ampex quatro pistas que nem a RTP tinha, comprei nos EUA — eu ia muito aos EUA com o meu pai, que ia às convenções da Philco, e ainda tinha um tio a morar em New Jersey. Imagine um miúdo de 16 anos em Nova Iorque, onde havia jazz e os filmes que não passavam aqui. A minha escola foi essa e a poesia entrou por osmose.”
Essas viagens foram fundamentais para criar e manter a Orfeu?
Nos EUA eu via o que seria o mundo em Portugal trinta ou quarenta anos depois. Quando voltava das férias do liceu, fazíamos reuniões na escadaria para contar as maravilhas que eu tinha visto, a televisão a cores, quarenta canais, os automóveis automáticos e as esferográficas. Eu vi um mundo diferente e adaptei-o à nossa realidade.”
E como é que a Orfeu dá o salto de pequena editora de poetas para uma editora expressiva no mercado?
Porque tínhamos ideias diferentes. Veja a promoção: as minha concorrentes não davam discos às rádios e às televisões, se os jornalistas queriam, pois que os comprassem — uns fonas, como se diz no Norte. O nosso gabinete de promoção, no Porto e em Lisboa, dava todos os discos quando saíam. E tínhamos ideias comerciais completamente diferentes. Vendíamos discos a prestações, para quem quisesse fazer uma discoteca base, e começámos a contactar outras empresas do género no estrangeiro, como a Pye em Londres, e a Motown nos EUA, uma música negra que introduzimos em Portugal. Portanto, tínhamos uma grande influência na televisão, rádios e jornais, sobretudo com as convenções.
Além da convenção de Ofir, que já mencionou, tinha a Can-Can, que apresentava as novidades do ano.
Foi o Carlos Cruz que lhe deu o nome, um homem com umas ideias comerciais fantásticas.
O Carlos Cruz foi fundador da editora Zip-Zip e o Arnaldo roubou-o para a Orfeu.
Sim, ele foi da Zip para a Orfeu, mas eu já era amigo dele há muitos anos. Eles não tinham experiência comercial, foi um grande programa de televisão, mas os discos Zip-Zip do Solnado e do Fialho não se vendiam. Também fui buscar o Francisco Fanhais ao Zip-Zip.
A Can-Can era na FIL e o próprio Adriano trabalhava na FIL como assessor de imprensa.
Foi ele que arranjou o espaço. Juntavam-se esforços. Não éramos uma empresa política, éramos uma empresa comercial e intelectual. A única censura que fiz é que não queria discos ofensivos ou muito políticos. Era pela beleza, como os versos fabulosos com que eles driblaram a censura com uma linguagem diferente, que se lia entrelinhas, foi por isso que conseguimos editar os discos sem problemas. E depois o Zé Niza era muito amigo do Feytor Pinto [Diretor da Secretaria de Estado da Informação e Turismo], eram colegas de Coimbra; almoçaram os dois para ver as letras para cortar. Os poemas mais violentamente políticos eram aprovados, como A Morte Saiu À Rua.
A contratação do José Niza suponho que tenha sido uma sugestão do Adriano.
Foi, exatamente. Ele também era muito amigo do José Afonso.
É verdade que o Adriano Correia de Oliveira recusou-se a entregar letras ao Exame Prévio?
Ele começou a dizer que não ia entregar. Eu disse-lhe que essa atitude era muito bonita, mas queria meter os discos cá fora: “Deixe-nos tratar disso que é uma questão comercial”. Bastava mostrar alguma coisa à censura para eles cortarem e ficarem satisfeitos.
Mas o Adriano não editou nada entre 1971 e o 25 de abril.
Porque era preguiçoso! [ri-se] Aliás, ele tinha a obrigação de gravar um disco por ano, foi a cenoura que arranjei para o José Afonso e o Adriano terem uma grande obra fonográfica. No caso de José Afonso, era a pessoa mais profissional que conheci neste mundo da música, um perfecionista e terrível a gravar, chegava a insultar colegas se faziam algum acorde que não estava como ele queria. Era de um profissionalismo tremendo. O Adriano não, era um tranquilão. E o Adriano não escrevia poesia nem música, estava sujeito ao que os outros faziam, como o José Niza e o Manuel Alegre.
Conhece o Adriano Correia de Oliveira através do António Portugal?
Foi, apareceu-me com 18 anos na minha casa, para gravar uma canção de Coimbra, só depois é que ele descobriu as trovas com o Manuel Alegre.
E como era o Adriano como pessoa?
Era excecional, um amigo e parceiro. Sabe que aquilo era uma família, porque não tínhamos grandes interesses comerciais, só não queríamos perder dinheiro, para fazer mais coisas. Por incrível que pareça, até se ganhou muito dinheiro com esses discos, como é o caso do Cantigas do Maio [Álbum de José Afonso de 1971]. Foi o disco mais caro que pagámos, mil contos, gravámos em Paris, no Château d’Hérouville, organizado pelo Zé Mário Branco. Foi caríssimo, um milhão de escudos, mas valeu a pena, deu-nos a Grândola, um sucesso mundial. O sucesso protege os audazes.
Nesse caso tinha que trabalhar à base da confiança, não sabia o que se estava a passar em Paris.
No caso do José Afonso, nós éramos muito pragmáticos: eu sabia que tudo que ele gravava era bom, por isso confiava nele. Ele era um génio musical e poético, nunca lhe diria um “não”, só lhe disse que não queria coisas panfletárias. Uma vez veio com um disco panfletário e eu disse-lhe “você grava isso onde quiser, mas eu não gravo”. E gravou com a LUAR [o EP Viva o Poder Popular, editado em 1974]. E o Adriano também, queria cantar sobre uma greve em Amarante, eu disse-lhe que a nossa função não era essa.
Uma outra editora que apareceu com força na década de setenta foi a Sassetti, com artistas com uma linguagem próxima de José Afonso. Eram uma ameaça à Orfeu?
Não, a Sassetti era uma coisa muito pequenina. Eles foram buscar o José Mário, que eu ia gravar. Estive com o José Mário antes de morrer, estivemos em Cascais, no Museu da Música, com o Viriato Teles, o Fanhais, entre outros, um dia inteiro a falar sobre José Afonso. Nunca tinha estado cara a cara com o José Mário Branco.
O José Mário contava que a Orfeu não lhe tinha feito o pagamento prontamente pelo trabalho em Cantigas do Maio.
Exato, e falámos sobre isso, ele dizia que tinha ficado no estúdio à espera de receber o pagamento. Mas nós pagámos, o Banco de Portugal é que na altura não tinha cambiais. Tive que arranjar dólares e enviei uma pessoa para pagar o estúdio. O Banco de Portugal não tinha cambiais na altura, aquilo demorava muito tempo. Comprei uns dólares por aí, normalmente arranjavam-se das reformas dos portugueses que viviam na América, e foi um empregado meu levar ao estúdio em Paris para não criar mais problemas. O José Mário disse-me que não foi para a Orfeu naquela altura porque ele precisava de um emprego e a Sassetti ofereceu um emprego, o de preparar o papel das músicas. Foi importante ter esclarecido isso antes da morte dele.
Mas a Sassetti parecia querer ser uma espécie de Orfeu.
Parecia… [ri-se] Eles não tinham pessoal. A Orfeu foi grande porque tinha possibilidades financeiras que as outras editoras não tinham, através dos eletrodomésticos.
E por isso conseguiram fazer discos como o Gente de Aqui e de Agora, de Adriano Correia de Oliveira e José Niza.
É uma maravilha, para mim é o melhor álbum do Adriano. Uma capa fantástica. Foi nessa altura que apostámos muito no design, arranjámos os melhores designers, como o Santa Bárbara, e começámos a ter grandes intérpretes, como o Fausto, o Sérgio Godinho, o Vitorino. E os outros músicos estavam sujeitos aos estúdios velhotes das próprias editoras, íamos aos melhores estúdios que havia. As edições recentes de José Afonso têm excelente som porque a qualidade era ótima.
Infelizmente, grande parte do catálogo da Orfeu não está disponível nas plataformas de streaming.
Não sei, admito que estou completamente fora. Em 1983 deixei os discos. A minha relação com a Rádio Triunfo era boa, tinha combinado a compra da fábrica e do grupo a um preço, mas havia problemas entre os sócios, acabei a comprar a Rádio Triunfo pelo dobro, e tive que arranjar um sócio. O sócio era a Movieplay, que realmente não tinha nada a ver com a Orfeu. Então eu disse que me ia embora. E acabou [a Orfeu e a editora Movieplay compraram a Rádio Triunfo, até as duas editoras serem expulsas do Grupo Português de Produtores e Fonogramas e Videogramas por práticas indevidas].
Antes do 25 de Abril, os editores como o Arnaldo tinham uma responsabilidade que não é muito conhecida: aos olhos da PIDE, a responsabilidade pela edição de qualquer conteúdo subversivo era sempre do editor.
É verdade, nós é que andávamos sempre com o problema às costas. Uma vez foram lá buscar o Je t’aime… moi non plus [canção de 1967 de Serge Gainsbourg e Jane Birkin]. Negociei com o indivíduo que foi lá fazer a apreensão dos discos, “leve dez discos para si e eu escondo os outros”, um negócio feito à portuguesa. Uma das minhas histórias favoritas de censura é com o Adriano. Estávamos no Majestic e vimos um tipo a ler o jornal, o Adriano meteu conversa com ele e descobriu que era o responsável pela censura na rádio. “É o homem que nos interessa!”, pensámos. Mas o censor era mouco, um coronel mouco, imagine [ri-se]. O Adriano com aquele jeito coimbrão conseguiu convencer o homem a fazer um direto na rádio com o José Afonso, que era proibidíssimo na altura. Liguei ao Rui Pato e fomos para a Emissora Nacional gravar o direto. O José Afonso cantou uns fados, enquanto o Adriano se meteu à conversa com o coronel. A certa altura o José canta uma letra sobre pombas [As Pombas] e o mouco ouve “bombas” e pára com a transmissão toda [ri-se]. Não é anedota, é autêntico.
O Arnaldo nunca sofreu pressões?
Não, nós éramos uma firma muito considerada na praça e eu nunca me meti em política. A verdade é que fiz mais como outros. Olhe, como o Marques de Almeida.
Marques de Almeida da Sassetti.
Sim. No segundo contrato que assinei com o José Afonso, ele disse-me que queria gravar com uma editora que fosse mais alinhada com ele politicamente. Eu disse-lhe que, primeiro, ele tinha era que receber o dinheiro ao fim do mês, que tinha filhos e família para sustentar, e o resto era muito bonito, mas que me mandasse o advogado. O advogado era o Mário Brochado Coelho. E o advogado convenceu o José Afonso a assinar o contrato. O Fausto disse-me que o José Afonso gostava muito de mim.
A sua relação com o José Afonso também era de amizade?
Era ótima a relação, ele era encantador, só não podíamos falar de política. De resto, dávamo-nos bem. Houve uma altura em que ele foi preso e veio a Zélia mais as crianças, a pedir-me ajuda, que ele matava-se, que ele era muito nervoso — e era mesmo uma pessoa com muitos nervos, uma pessoa especial. No dia seguinte, fui à PIDE, não conhecia ninguém, nunca lá tinha ido. Dei o meu cartão e fui logo recebido pelo diretor. Disse que estava lá por causa de um cantor nosso, um dos melhores cantores portugueses, que estava preso, que podia matar-se e depois iria ter uma bandeira de mártir às costas. Convenci-o e no dia seguinte o José Afonso estava cá fora. O diretor da PIDE era o Rosa Casaco. O José Afonso não era político, era muito mais do que isso, era da utopia, ele queria um mundo melhor sem governos, sem dinheiro.
Nessa perspetiva, Adriano era diferente.
Sim, o Adriano era comunista, mas teve muitos problemas com o partido, como deve saber. Eu gostava de andar de avião com ele, era uma boa companhia, mas quando íamos andar de avião, ele estava sempre à espera que a PIDE o fosse buscar e apareciam quase sempre. Ele dizia: “Então vemo-nos depois no bar do hotel”. E ele aparecia mesmo no hotel, dizia que era sobrinho do Correia de Oliveira, ministro de Salazar, e conseguia entrar no avião [ri-se]. É pena que não tenhamos os discos do Adriano e da Orfeu para ouvir, mas isso já não é meu problema. Foi uma época muito linda, fizemos coisas fantásticas, por isso é que ainda estamos a falar disso.