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As duas vidas de D. Maria II, uma rainha educadora em tempos de luta

Nasceu há 200 anos, no último ano pacífico antes de uma era de tumultos entre liberais e absolutistas. Carlos Maria Bobone recorda a monarca que amava as artes e que influenciou a política portuguesa.

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O reinado de D. Maria II é talvez dos mais estranhos de toda a História de Portugal. Era ainda criança quando o seu nome entrou no centro de uma disputa fratricida de que ela só ouvia falar à distância; casou três vezes mas só teve um verdadeiro marido; reinou sobre um país decaído, em aprendizagem experimental do liberalismo, à mercê de inimigos figadais em alianças absurdas, de políticos ambiciosos sem escrúpulos de travar governos por caprichos pessoais e com a impotência da bancarrota iminente a pesar sobre toda a vida política. Ainda assim, este reinado é importante, não só no contexto Europeu, mas também na formação da vida política portuguesa contemporânea.

A rainha que não o era

Maria da Glória nasceu no Rio de Janeiro a 4 de abril de 1819 – no palácio que ainda há pouco tempo ardeu – e só muito tarde, depois de (mal) resolvida a guerra civil pôs os pés no reino que durante tanto tempo reclamou. O ano do seu nascimento foi talvez o ano pacífico que anuncia a tormenta: logo em 1820, estala a Revolução no Porto; em 22, o seu pai proclama a Independência do Brasil, deixando assim a casa real entalada entre dois reinos. Se, pelo direito sucessório, a morte de D. João VI tornaria rei D. Pedro, pelo direito consuetudinário nenhum estrangeiro podia ser rei de Portugal. D. Pedro, feito Imperador do Brasil, tornava-se brasileiro, o que lhe vetava a coroa portuguesa.

A solução arquitectada poderia satisfazer o país em tempos mais pacatos: D. Pedro abdicava do trono em favor da sua filha Maria, esta casava com o seu tio Miguel e todos os preciosismos sucessórios eram dirimidos.

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Um retrato de D. Maria II por John Simpson

Acontece que, como explica Oliveira Martins no seu Portugal Contemporâneo, D. Pedro decidiu presentear Portugal com uma Carta constitucional que Portugal não queria. Abdicava, sim, mas desde que D. Miguel jurasse a Carta Constitucional. D. Miguel jurou-a, veio de Viena, onde estava exilado, e foi, quase de imediato, aclamado rei. D. Pedro, do Brasil, pouco podia fazer para conter o entusiasmo crescente em redor de D. Miguel. O povo absolutista ia crescendo, em número e entusiasmo, a ponto de D. Miguel ser, pouco depois da sua chegada, aclamado como Rei Absoluto. Em pouco tempo, a relação de forças alterara-se: D. Miguel passara de consorte e, no máximo, regente balizado pela Carta, a Rei de facto de uma nação que o suportava e que expulsava os liberais. De facto, quando D. Maria sai do Brasil para vir, diplomaticamente, defender a sua causa, esta parece perdida.

Os liberais portugueses resumem-se a uns quantos resistentes na Terceira e a uns exilados em Plymouth; a diplomacia liberal é pouco mais do que uma voz de falsete, quando comparada com o interesse de Metternich e da Santa Aliança em garantir mais um estado legitimista na Europa; o Miguelismo, por muito que, durante anos, a historiografia tenha feito crer que não tinha apoio internacional, estava bem instalado. No equilíbrio europeu, depois da vaga de revoluções dos anos 20, era o liberalismo que estava em desvantagem.

Metternich conseguira convencer os Estados tradicionalistas de que o liberalismo era uma ameaça maior do que os costumeiros problemas geopolíticos, pelo que as Monarquias absolutas tinham um peso forte e conjunto na Europa; as monarquias moderadas eram ainda frágeis, como a de Luís Filipe de Orleães, pelo que não podiam arriscar indispor-se contra a Santa Aliança; e mesmo a Inglaterra não tinha interesse em comprar uma guerra por uma causa estrangeira, duvidosa e imprevisível; o grande apoio de D. Maria consistiu, na sua primeira estadia europeia, em ser recebida como rainha; teve bailes em Windsor, recepções reais e todas as honras protocolares, mas pouco mais.

D. Maria, enquanto as suas tropas estavam cercadas no Porto, fazia em França a sua aprendizagem de rainha, absorta em aulas particulares, meninices e vida de corte. Palmela, pelo seu lado, pagou do seu bolso a pequena frota que sairia do Porto e desembarcaria no Algarve, galgando por Portugal acima até à famosa conquista de Lisboa, a 24 de Julho de 1833.

O movimento agonizou durante vários anos, insignificantemente acantonado na terceira, a braços com problemas financeiros e uma progressiva insignificância diplomática, até que três acontecimentos mudam o curso da História. No Brasil, um levantamento força D. Pedro a abdicar; o Imperador, que da morte do pai herdara dois reinos, via-se em poucos anos sem nenhum; em França, Luís Filipe dependia cada vez mais dos liberais, pelo que a causa de D. Maria se lhe tornava mais e mais simpática; além disso, um enérgico Marquês de Palmela, rico mas de tal maneira comprometido com o liberalismo que, se vencesse D. Miguel, nem poderia sonhar em recuperar os bens portugueses, decidiu tentar um desses golpes audazes que por vezes caem nas boas graças da fortuna.

D. Pedro, sem reino, decidiu investir pessoalmente na causa da filha. Deixou o Brasil e comandou o exército liberal no levantamento do Porto. As coisas, infelizmente, não lhe correram como ele esperava, de tal modo que, cercado no Porto, estava às tantas disposto até a renunciar à Carta, contente com substituir o seu irmão pela sua filha no trono português.

A rainha por John Zephaniah Bell

D. Maria, enquanto as suas tropas estavam cercadas no Porto, fazia em França a sua aprendizagem de rainha, absorta em aulas particulares, meninices e vida de corte. Palmela, pelo seu lado, pagou do seu bolso a pequena frota que sairia do Porto e desembarcaria no Algarve, galgando por Portugal acima até à famosa conquista de Lisboa, a 24 de Julho de 1833. O pequeno movimento, que há tão pouco tempo parecia perdido, conquistava, quase sem apoio popular, quase sem apoio financeiro, diplomático ou militar, um país para a rainha que nunca o visitara.

O Reino em convulsão

Só passados uns meses D. Maria chegou a Portugal. Era nova, e os trabalhos de uma rainha devem ter chocado a pequena, até aí habituada apenas ao lado brilhante da realeza, aos bailes e às recepções que tinha encontrado por Inglaterra e por França. De facto, pouco depois da guerra morreu D. Pedro, e D. Maria ficou apeanhada no trono mais instável de que pode haver memória. Mesmo que esqueçamos os legitimistas derrotados, o próprio liberalismo tinha no seu seio as mais contraditórias e inimigas visões que nenhuma rainha, para mais inexperiente, conseguiria conciliar.

Os amigos de D. Pedro, as figuras mais palacianas, a cúpula da facção liberal durante a guerra, eram apenas uma minoria num mundo político que via no novo reinado uma porta de entrada para as suas ideias. Entre os vintistas, revolucionários e a esquerda mais moderada, entre chamorros e devoristas, entre Passos, Rodrigo da Fonseca ou o Duque de Palmela, as diferenças eram abissais e os conflitos constantes; no entanto, a situação política tornava-se tão confusa que o método de formação de governos passava habitualmente pela tentativa de conciliar figuras de visões antagónicas, de modo a agradar todas as facções políticas que lutavam pelo país.

Aquilo que nos mostram os primeiros anos do reinado de D. Maria II é uma insatisfação constante e a prova cabal de que a ideia de síntese, em política, não satisfaz ninguém. No fundo, o que se escolhe são nacos de cada facção, para que todos juntos produzam uma nova facção que na verdade não satisfaz ninguém.

Os primórdios do liberalismo são interessantes pelo que representam do ponto de vista doutrinário. É certo que temos, aqui, o embrião para a vida política como a conhecemos; no entanto, o princípio do liberalismo ainda olha para a democracia de uma forma muito mais próxima da forma clássica do que aquela que nós temos. Ou seja, para os teóricos do liberalismo a escolha é quase um pormenor insignificante da vida liberal; isso vê-se, aliás, nas constantes fraudes eleitorais, e na forma como todos os governos aproveitavam as eleições para aumentar as suas redes clientelares. Não há memória de nenhum governo ter perdido eleições – os governos caíam por golpes palacianos ou por sublevações populares ou militares; no entanto, nem as queixas dos lesados sentiam a fraude como um ataque ao centro do sistema.

O liberalismo, como a doutrina democrática clássica, acredita na separação de poderes no seu sentido mais radical e na dialética como a forma suprema de governo. O governo liberal, no seu início, é um governo de conciliação, que acredita na junção de forças antagónicas para chegar a soluções comuns, ou para satisfazer os interesses mais díspares. As eleições não são um momento fundamental porque a questão não passa por escolher um, que sobressai de um combate entre minorias; a questão passa por juntar estes grupos de tal forma que se possa ir agradando os vários grupos.

Vencedores, vencidos e uma morte prematura

Ora, este modelo mostra o lado mais paralisador e defeituoso da democracia; aquilo que nos mostram os primeiros anos do reinado de D. Maria II é uma insatisfação constante e a prova cabal de que a ideia de síntese, em política, não satisfaz ninguém. No fundo, o que se escolhe são nacos de cada facção, para que todos juntos produzam uma nova facção que na verdade não satisfaz ninguém. A dificuldade que os políticos do governo têm em agradar as suas redes tradicionais de apoio são uma prova disso mesmo.

O cortejo fúnbere de D. Maria II em São Vicente de Fora, em 1853

Passos, durante tanto tempo o paladino da esquerda, depressa se vê ultrapassado pelos radicais; Saldanha, herói dos militares, depressa se converte em seu inimigo; a fórmula política do liberalismo cria, no governo, uma classe que só se representa a si própria e que está constantemente à procura de satisfazer interesses contraditórios. Não é estranha, por isso, a convulsão dos primeiros anos do liberalismo e a estabilização, já com Costa Cabral, de um modelo muito mais pragmático e muito menos democrático: o modelo dos vencedores e dos vencidos, que é hoje a forma habitual do partidarismo.

D. Maria II morreu nova, aos 34 anos, no parto do seu 11.º filho. Ao que parece, amava muito o marido e pouco o liberalismo. D. Fernando era um consorte simpático, amante das artes, amor esse que transmitiu aos seus filhos, também eles mais amantes da literatura ou da arte do que propriamente da política. D. Pedro V e D. Luís já herdaram o constitucionalismo mais sedimentado, mas conservaram na memória as cicatrizes dos anos ferozes e revoltosos em que D. Maria reinou. Para a Monarquia, são talvez uns anos tristes, em que se vai assistindo ao degradar da importância do monarca; mas para o país, são sem dúvida uns anos interessantes, em que se assiste ao desenvolvimento do modelo político da vida moderna.

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