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As raízes do Partido Socialista

As divergências na origem do PS, o medo que Zenha tinha que ser partido tornasse o PS numa marionete dos comunistas e a aliança que Soares tentou com o PCP. Um ensaio de David Castaño

A antepassada direta do Partido Socialista, a Ação Socialista Portuguesa (ASP), foi fundada em Genebra por três amigos em abril de 1964. Era um pequeno grupo da oposição ao Estado Novo onde se destacavam os profissionais liberais, das classes médias urbanas. Vários dos seus elementos vinham de outra organização criada na década anterior, a Resistência Republicana, e o seu principal objetivo era distinguirem-se tanto da tradicional oposição republicana como do Partido Comunista Português (PCP). Tratava-se, essencialmente, de uma tentativa de resposta ao surgimento de uma nova geração de oposicionistas, forjada nas contestações académicas de 1962, que considerava o grupo onde pontificava Mário Soares demasiado moderado e social-democrata.

A aposta no socialismo — cuja tradição em Portugal, reconheceria Mário Soares, não era grande, “nem particularmente brilhante” — está assim relacionada com um fenómeno de radicalização da oposição impulsionado pelo alastrar da guerra e pela expansão da oposição católica que, na opinião do líder socialista, para contrariar a tradicional proximidade da hierarquia da Igreja com o regime, proclamava um esquerdismo mais radical. Neste novo contexto já não bastava ser-se contra o regime: “O mero signo do antifascismo não era mais suficiente”, escreveria Soares, que regista que é a partir desta altura que se desenvolve “uma persistente campanha contra a chamada social-democracia” que passa a ser conotada com a oposição moderada e liberal. Ora, era precisamente dessa oposição tradicional e do PCP que Mário Soares e o seu grupo se pretendiam demarcar.

Soares acreditava que existia um “largo espaço político a ocupar por um partido socialista” que soubesse “situar-se deliberadamente à esquerda”, diferenciando-se tanto do Partido Comunista como das formações “republicano-liberais e demo-cristãs” e constituir-se como uma força de diálogo em relação ao PCP através da afirmação do socialismo democrático.

"Na declaração da ASP divulgada em novembro de 1964, este conceito de socialismo democrático era vasto e incluía tanto “os sociais-democratas” como os “socialistas-marxistas não partidariamente comunistas”. 

De acordo com a declaração da ASP divulgada em novembro de 1964, este conceito de socialismo democrático era vasto e incluía tanto “os sociais-democratas” como os “socialistas-marxistas não partidariamente comunistas”. O mesmo documento repudiava as “querelas ideológicas, inoportunas e estranhas ao meio português” que noutros contextos tinham “dividido e enfraquecido a grande família do socialismo democrático”. A ASP apresentava-se como uma “organização dirigida para a ação” que tinha como principal objetivo “a luta contra o regime fascista” e o restabelecimento da “legalidade democrática”. Defendia o fim da guerra colonial e o respeito pelo princípio da autodeterminação, incluindo a independência. A nível económico preconizava a planificação da economia nacional, a nacionalização dos bancos emissores e das indústrias de base e uma reforma agrária.

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Cerca de dois meses depois da tomada de posse, os socialistas responderam ao repto lançado por Marcello Caetano para uma maior participação na vida pública tendo em vista a criação de “um clima político sem ódios” e escreveram uma carta aberta ao novo chefe de governo.

Apesar destes esforços de afirmação do “socialismo democrático”, com a chegada de Marcello Caetano ao poder voltaram a ouvir-se críticas contra a moderação da ASP que, num primeiro momento, deu crédito à política de abertura do regime e não fechou as portas ao diálogo. Cerca de dois meses depois da tomada de posse, os socialistas responderam ao repto lançado por Marcello Caetano para uma maior participação na vida pública tendo em vista a criação de “um clima político sem ódios” e escreveram uma carta aberta ao novo chefe de governo.

Os subscritores manifestavam concordância com a ideia, defendida por Marcello Caetano, que “um clima de liberdade” exigia “responsabilidade” e apresentam um caderno de encargos para o restabelecimento do “diálogo político” que, entre outros aspetos, passava pelo fim do regime de partido único, pela consagração da liberdade de imprensa e por uma amnistia política. Além destas exigências, e de se definirem como “defensores do pluripartidarismo”, os socialistas sentiram a necessidade de se demarcam claramente do “socialismo totalitário”.

Num comício evocativo da revolta republicana de 31 de Janeiro de 1891, realizado em 1968, o líder da ASP foi apelidado de “oportunista” e de “colaboracionista”.

Este posicionamento não foi bem visto pelos sectores da oposição que consideravam que o totalitarismo era privativo da direita. Os membros da ASP começaram então a ser acusados de pretenderem uma legalidade preferencial e uma relação privilegiada com o regime. Num comício evocativo da revolta republicana de 31 de Janeiro de 1891, realizado em 1968, o líder da ASP foi apelidado de “oportunista” e de “colaboracionista”. De facto, após o regresso de S. Tomé, Mário Soares reuniu-se com o presidente da Comissão Executiva da União Nacional, manteve contactos com elementos da ala liberal do regime e existiram conversas tendo em vista o envolvimento da ASP na política de abertura de Marcello Caetano.

No entanto, esses contactos não deram frutos. Os socialistas tinham perfeita consciência de que uma entrada isolada no sistema daria argumentos aos comunistas e aos católicos oposicionistas para se apresentarem como os únicos resistentes.

Perante a ausência de provas concretas da abertura política anunciada, a ASP endureceu o discurso. Em maio de 1969, divulgou um novo manifesto que denunciava a inexistência de qualquer efetiva mudança a nível político, referia a perpetuação de um “salazarismo sem Salazar” e apelava à formação de uma “plataforma comum a todos os democratas”, desde que as várias tendências pudessem ser identificadas como tal e não ficassem completamente diluídas nas listas. Goradas as esperanças na liberalização do regime, os socialistas viam virtualidades numa aproximação entre as forças de esquerda, mas pretendiam salvaguardar as diferenças.

Os esforços empreendidos a favor de um entendimento entre as forças da oposição não foram completamente bem-sucedidos. Em Lisboa, Porto e Braga constituíram-se duas listas oposicionistas: a Comissão Democrática Eleitoral (CDE), liderada pelo PCP e a Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD), liderada pelos socialistas. Os resultados das eleições de 1969 foram desanimadores. Se, por um lado, esta divisão foi vista como uma fraqueza da oposição, incapaz de se unir em torno de um grande objetivo comum, por outro, revelava que nos meios oposicionistas havia quem procurasse combater as históricas pretensões hegemónicas dos comunistas.

Esta não era, contudo, uma tarefa fácil. Em primeiro lugar, porque inicialmente os socialistas não pretendiam criar um partido clandestino a funcionar paralelamente ao PCP, depois, porque a classe operária permaneceu, como o próprio Mário Soares reconheceria, uma coutada do PCP.

A afirmação do socialismo democrático e transformação da ASP numa força de diálogo em relação ao PCP não foi alcançada. No entanto, um objetivo mais modesto, que passava por dar visibilidade internacional à existência em Portugal de uma oposição de esquerda não comunista, foi sendo atingido.

Em junho de 1969 uma delegação de socialistas portugueses tinha assistido, com o estatuto de observador, ao 11º Congresso da Internacional Socialista (IS), realizado em Eastbourne. Nesse mesmo verão, o secretário-geral da IS, Hans Janitschek, deslocara-se a Lisboa e elaborara um relatório e um plano de ação de apoio a Soares e aos socialistas portugueses. Foi neste contexto que a IS enviou uma comissão eleitoral para acompanhar as eleições legislativas que acabaria por ser expulsa do país, acusada de intromissão nos assuntos internos portugueses.

O fortalecimento dos laços internacionais permitiu manter este pequeno grupo com fraca implantação no terreno, sem qualquer capacidade de influência no operariado, disperso por alguns núcleos no exílio e com fraca capacidade de atração de outra nova geração que, influenciada pelo Maio de 1968, advogava soluções mais radicais.

É neste contexto que em 1970 a ASP atualiza a sua declaração de princípios. O título do documento, “uma democracia socialista para Portugal”, é bem revelador das diferenças em relação à declaração de 1964. O texto remete para uma “inspiração profunda” no pensamento marxista e aponta para edificação de “uma sociedade sem classes” que só poderá ser atingida “pela socialização dos meios de produção e de troca”, numa economia planeada.

A ASP [atualiza a sua declaração de princípios em 1964] e considera “a revolução socialista soviética como um marco fundamental na história da humanidade” (...) Apesar deste aggiornamento, no início dos anos 70, a ASP continuava a ser vista pelas gerações mais novas como uma organização “neo-marcelista” e “social-democrata”, persistindo as dúvidas quanto ao seu empenho em lutar pela implantação de um “verdadeiro” socialismo democrático.

Nesse sentido, a ASP considera “a revolução socialista soviética como um marco fundamental na história da humanidade”, bem como as revoluções sociais ocorridas na China, na Jugoslávia e em Cuba, embora lamentasse os “modelos burocratizados e concentracionários” adotados em vários países. Do mesmo modo, “a ASP repudia o caminho daqueles movimentos que, dizendo-se embora socialistas ou social-democratas, acabam por servir, deliberadamente ou de facto, os interesses do capitalismo internacional e do imperialismo”. O objetivo dos socialistas portugueses passava então por “encontrar no debate das ideias e na experiência dos movimentos sociais-políticos a forma viva do socialismo em liberdade e da democracia real”.

Apesar deste aggiornamento, no início dos anos 70, a ASP continuava a ser vista pelas gerações mais novas como uma organização “neo-marcelista” e “social-democrata”, persistindo as dúvidas quanto ao seu empenho em lutar pela implantação de um “verdadeiro” socialismo democrático. Era necessário transformar o pequeno grupo de amigos com afinidades políticas numa estrutura maior e com capacidade de atração de outras sensibilidades à sua esquerda.

No Congresso da Internacional Socialista de 1972, Mário Soares referiu-se à confusão existente entre socialismo e social-democracia e definiu claramente o seu posicionamento, rejeitando vir a ser um “leal gestor do capitalismo” num contexto reformista.

Em junho de 1972, no XII Congresso da IS, realizado em Viena, a ASP torna-se membro de pleno direito da organização. No horizonte perspetivava-se a transformação em partido político. Esse passo seria dado 10 meses depois, em abril de 1973. Fundado com o apoio da social-democracia europeia, em particular da alemã que cedeu as instalações para a realização da reunião dos socialistas portugueses, o novo partido adotou, no entanto, um discurso muito crítico relativamente às práticas políticas dos seus parceiros internacionais.

No início do encontro, Mário Soares referiu-se à confusão existente entre socialismo e social-democracia e definiu claramente o seu posicionamento, rejeitando vir a ser um “leal gestor do capitalismo” num contexto reformista. Nesse sentido, repudiou a social-democracia e defendeu “uma verdadeira revolução” transformadora das estruturas tradicionais do país.

Este posicionamento deve-se ao facto de um dos principais motivos para a transformação em partido visar garantir a adesão e o alargamento a várias sensibilidades da esquerda (dissidentes do PCP, meios católicos oposicionistas, estudantis e sindicais). A prioridade era travar a criação de uma nova formação política e acolher estas sensibilidades, “por mais à esquerda que se considerem” no PS. Para tal era necessário que o Partido Socialista possuísse “estruturas de acolhimento dúcteis” que permitissem que estas tendências se sentissem “no seu lugar próprio”. Para isso também era fundamental que o novo partido se assumisse como uma força “verdadeiramente de esquerda – e não como a variante portuguesa de uma certa social-democracia europeia”.

Vários membros da ASP, entre os quais se destacava Salgado Zenha, consideravam que dadas as fragilidades organizativas dos socialistas, a passagem a partido era prematura.

A decisão de dar este passo não foi unânime. Vários membros da ASP, entre os quais se destacava Salgado Zenha, consideravam que dadas as fragilidades organizativas dos socialistas, a passagem a partido era prematura. Essencialmente, temiam que, em vez de constituir um reforço de autonomia em relação ao PCP, a transformação em partido viesse, a prazo, a conduzir a uma política frentista subserviente aos interesses dos comunistas.

Os receios de Zenha não eram infundados. No final de 1974, Mário Soares reconheceria que após a queda do Estado Novo tinha defendido uma coligação entre socialistas e comunistas, assente num programa comum semelhante ao francês, mas que “o PCP nunca lhe pretendeu dar qualquer seguimento”.

Os receios de Zenha não eram infundados. No final de 1974, Mário Soares reconheceria que após a queda do Estado Novo tinha defendido uma coligação entre socialistas e comunistas, assente num programa comum semelhante ao francês, mas que “o PCP nunca lhe pretendeu dar qualquer seguimento”. Pragmáticos, os comunistas definiram como prioridade o aprofundamento dos laços com quem detinha o poder, o MFA, e ignoraram os socialistas. Se a resposta do PCP tivesse sido outra, dificilmente o PS teria tido a oportunidade e a capacidade de se afirmar como a principal força política contra a via revolucionária que os seus documentos programáticos preconizavam e a história dos 50 anos que agora se comemoram seria, provavelmente, bastante diferente.

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