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Costuma dizer-se, e com razão, que é um dos compositores mais influentes da nova geração de cantautores portugueses. Liga-se o rádio e há um tom fachadiano em várias das canções, na construção, nas letras e até na maneira da cantar. Começou a editar em 2007 (um EP, Até Toboso) e há três anos lançou Rapazes e Raposas, disco de ambiente telúrico, travo tradicional-experimental que, liricamente, oscila entre o verbo crítico, a ode doméstica e o prognóstico cósmico. Voltou por estes dias à estrada, sobretudo com o fito de apresentar o último gesto.
Há poucos dias esgotou duas noites no Musicbox, em Lisboa, e sexta e sábado, 3 e 4 de março, toca no Plano B, no Porto. Depois, segue para o Salão Brazil, em Coimbra, a 23 e 24 do mesmo mês. Nesta entrevista-conversa percorre o trilho até aos palcos do início, em que era um bardo desconhecido, à procura do confronto, até hoje, altura de maior valorização da música. O espírito, esse, continua do contra, influenciado (também) por Alberto Pimenta, o autor do sempre celebrado “Discurso sobre o Filho-da-Puta”. Entrevistador e entrevistado tratam-se por tu, até porque B Fachada acha que isto da separação entre Portugal e Espanha é um disparate histórico.
[ouça o mais recente álbum de B Fachada, “Rapazes e Raposas”, através do Spotify:]
No teu primeiro álbum, Fim-de-semana no Pónei Dourado, editado em 2009, trouxeste uma série de canções com uma lírica inventiva, satírica, amorosa e bem sacada literariamente. Vens da música ou da literatura?
Nessa altura vinha definitivamente mais da literatura. A minha proporção de músico tem vindo sempre a crescer. Hoje sinto-me mais músico do que nessa altura. Toco mais instrumentos, sei mais de música, preocupo-me mais com essa parte. Cuido também mais do lado musical da voz. Nessa altura, a música estava lá como ferramenta de dominar o timing. Era o que permitia fazer esse exercício literário, com muitas aspas, sem me ver obrigado a fazer poesia erudita. Sem estar a experimentar ser poeta. Eu não era poeta. Era um trabalho à bruta, artesanal, punk, mas estava à vontade para usar as ferramentas que tinha aprendido com quem fazia literatura a sério. E essas ferramentas abriam-me muitas portas. Nessa altura, o Pimenta não estava contente…
O Alberto Pimenta [poeta, narrador, ensaísta, performer, académico] era teu professor, não era?
Sim, sim.
Antes de te tornares aluno, já tinhas lido os livros?
Sim. Li muito. Comecei a lê-lo cedo. Provavelmente, aos catorze anos. No nono ou no décimo ano.
Foste para o curso de Estudos Portugueses, na Universidade Nova de Lisboa, por causa dele?
Fui, fui atrás dele. Era de Ciências e tinha ido para o Técnico para tirar Engenharia Física. Quando saí, decidi que tinha mesmo de fazer o exame de português e mudar para Literatura. Não fazia distinção entre ir para a Faculdade de Letras e ir para a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. A única distinção era saber onde é que estava o Pimenta e se ainda ia conseguir apanhar algumas cadeiras com ele. Apanhei os últimos três anos em que deu aulas.
Chegaste a partilhar a tua música com ele?
Partilhei. Precisamente nessa altura. Era um trabalho muito rústico e superficial para o termómetro dele, ainda para mais no seguimento das nossas conversas. Deixa tantos descendentes, sem que nenhum deles seja poeta. Eu é que ia ser o poeta, o descendente poeta do Pimenta, com vinte anos e sem saber ler e escrever. Literalmente. Estudei música desde pequenino, tinha alguma facilidade em fazer essa parte e as coisas juntaram-se num sítio que me era conveniente.
Mas, além de uma importante influência do Alberto Pimenta, também se topam na tua música cantigas de amigo e canções de intervenção. Existe também um interesse pela tradição como ponto de partida. Por exemplo, transformaste a viola braguesa noutra coisa. Numa das tuas letras dizes que “nesta história da canção tradicional/ É bonito ouvi-la vir de alheia mão/ Mas mais bonito é vir do próprio coração”.
Sim, porque, no dia-a-dia de fazer música, não pode haver hierarquias musicais na minha cabeça. Para mim, a música tem de estar toda ao mesmo nível. Aproprio-me dos avós dos outros, e, nesse aspeto, não posso fazer distinção entre apropriar-me dos avós transmontanos, dos avós americanos, dos avós africanos, dos avós caribenhos ou dos avós brasileiros. Quando, no dia-a-dia, estou a praticar a minha música, essa apropriação tem de ser honesta e musical para poder certificar-me de que resulta. Não pode vir de uma intenção intelectual. Tem de vir do esvaziamento dos preconceitos antes de começar a trabalhar.
Não foste nem és, propriamente, um neto bem-comportado.
Sempre parti do princípio de que cultura é transformação e de que o nosso papel é transformar. Uma característica muito evidente na música que se faz nos sítios em que esta tem um valor social e comunitário muito forte. Em algumas zonas de África, no Brasil, em algumas zonas da América do Sul e do Norte. E naquela Europa onde a música tradicional não ficou estagnada no tempo. Mas também na Ásia, na Índia, em vários sítios onde não interessa se estamos perante música erudita ou popular. Existe sempre uma carga transformadora que se nota. Faz parte da natureza da própria música estar em constante transformação.
Tens um avô estranho e inclassificável chamado Frank Zappa.
[Risos] Sim, é. Se calhar faz parte da aplicação da ideia de independência, como aconteceu com o Alberto Pimenta, que também sempre foi um poeta independente, com muitas edições de autor. O Zappa tinha essa postura em relação à indústria, cultivando a ideia de que os discos podem ser todos muito diferentes. É uma referência muito importante em muitos níveis. No que se quer, no que se pode fazer, em que é que se deve ser firme nos princípios. Era também um nerd da gravação. Das máquinas e da tecnologia aplicadas ao dia-a-dia dele.
O título do primeiro álbum remete para um fim-de-semana que passaste num pequeno estúdio, em ambiente de intimidade, com pessoas cúmplices.
Foi uma proposta de início de carreira, entre aspas. Falei com o Dudu [Eduardo Vinhas], do Golden Pony Studio, e tentei convencê-lo a facilitar-me um fim-de-semana de estúdio com a promessa de que isso poderia ser o início de uma longa carreira de colaboração entre nós. Disse-lhe que nunca iria gravar discos com mais ninguém. E cumpri. Até hoje só gravei com ele. Fomos aprendendo a colaborar um com o outro de uma maneira muito próxima. Tudo o que aprendi sobre gravação, na parte técnica, aprendi com ele.
A sátira social e o privado amoroso, marcas do teu trilho, já figuravam nesse disco. Entre a crítica ao Zé, um cultor da bazófia, que chegou a pé e passou a ter um Cadillac, e o amor, o ciúme e a vergonha. Assumias-te já com habitante desses dois territórios — um público e um privado.
Procuro temas que me permitem construir o trabalho à minha maneira e nos quais vejo um buraco para mim. Que me permitem ver paradoxos que depois exploro. As canções não precisam de cair para um lado ou para o outro e consigo criar canções assim, capazes de carregar estranheza e novidade. Na altura em que comecei, esses temas eram os que me eram mais evidentes. Eram também os temas em que havia mais expectativas por parte dos ouvintes. Interessa-me também virar ao contrário o jogo das expectativas. Nessa altura, achava muita piada, por exemplo, jogar com a expectativa de género nas canções românticas. Algo que estava à espera de ser feito. O tema da sátira política e social gerava muitas expectativas porque era o tipo de cançonetismo que havia e era aceite. Ao mesmo tempo, considerava ser um cançonetismo transformado em cultura moralista e didática. Cada vez que virava o didático do avesso, criava uma ligação muito forte com quem estava a ouvir porque estava a jogar com as expectativas. As canções têm o timing na mão, mais do que as piadas na comédia. Um gajo que está a cantar uma canção que escreveu tem a oportunidade de dominar o tempo e o timing com a mesma mão. É isso que faz todo o truque de magia de tirar o coelho da cartola.
Falaste do do paradoxo. O que remete para uma frase que disseste no documentário do Tiago Pereira, “B Fachada Tradição Oral Contemporânea”. A certa altura, afirmas que o paradoxo, fundamental para contar a natureza humana, normalmente não está fixado nas canções. Manténs a opinião?
Sim, sim. Mantenho. Continuo sempre atrás disso. Aliás, acho que tem que haver uma parte de antítese na metáfora. Se a metáfora é evidente, se os elementos da metáfora já estão ligados, não é uma metáfora. Tem que haver um lado paradoxal para se entrar num discurso verdadeiramente metafórico. Mesmo que não se esteja a construir um um poema. Que se trate de um discurso de tipo poético que faz uso das ferramentas do discurso poético. A ferramenta é sempre a metáfora. É sempre uma viagem lateral, não linear, de significado. Um tecido de significado, não uma linha de discurso. Qualquer paradoxo no nosso dia-a-dia – e existem paradoxos diários às centenas e aos milhares — serve para fazer um milhão de canções. Basta mudar de tonalidade para mudar de narrador e o segundo narrador pode ter uma opinião oposta à do primeiro. Uma canção dá para fazer tudo. Dá para encaixar a maior contradição existente porque não se consegue voltar atrás e apagar o que se disse no primeiro verso. Os versos estão sempre a multiplicar-se. Não se trata de uma soma, mas sim de uma multiplicação.
Na canção “Anti-Fado”, do último disco, fazes isso. Afirmas, com assertividade, que és anti-tudo, ou quase tudo, e, a certa altura, comentas: “Tás estúpido ou quê?/ O teu cinismo nunca foi tão demodê”.
Sim, faço o contraditório.
Estás a falar contigo?
Aproveito a oportunidade, não tendo que explicar que isso está a acontecer. Tudo o que se consegue dizer economizando o meio, sem usar as palavras, é uma força que a canção ganha. E chegar a um refrão e ter a oportunidade de contradizer “a pessoa” que está para trás, sem ter de explicar como ou porquê, dá muita margem de interpretação. Quando canto, nunca chego ao refrão com a mesma intenção. Não leio o refrão sempre da mesma maneira. No caso dessa canção, consigo fazer uma leve correção de atitude à estrofe. Preparo cada vez mais a queda porque o segundo verso é descendente. O eu dessa canção, depois de se afirmar anti (“anti- crime e anti-leis” ou “anti-vida e anti-cura”), acaba a constatar, só, no fim da linha: “Eu não acredito em mentiras/Eu nunca vi maravilhas.” A canção é uma matrioska de antíteses.
“Como é possível não haver um contraditório antinacionalista?”
Falemos sobre o teu engajamento político.
Ou desengajamento.
Tens nas letras referências a patrões que “comem colhões alheios” mas, ao mesmo tempo, nesse engajamento há, à semelhança do que acontece com Alberto Pimenta, uma pulsão anarquista contra todos os poderes. Inclusivamente contra os poderes políticos progressistas e seus vícios, mais propriamente.
Sim. Hoje, isso já se está a transformar numa pulsão antipolítica. A política enquanto carreira está podre. É difícil não querer estar de fora. Existe uma necessidade de ser do contra. De estar completamente fora do sistema partidário. Assim que o assunto fica sério, estou de fora. Era uma lição muito clara do Pimenta. Disse-o diretamente várias vezes. O trabalho não é substituir as convenções por outras. O trabalho é expor as convenções ao ridículo, de forma a destruir as convenções. Nunca entrar no jogo dos filósofos de substituir certas convenções por outras. Fazê-lo não é um jogo poético mas sim um jogo didático. Estraga completamente o trabalho.
Dá para um autor que se quer didático. Não para ti.
Eu, na música, podia considerar uma música mais didática para crianças. Mas para ser praticada, não para ser ouvida. Ter um ouvinte passivo a levar com uma lição já é de mais. Teatro político e didático, sim. Para os amadores praticarem, não para os profissionais praticarem e as pessoas irem ver. O ouvinte passivo é uma carga muito negativa na nossa existência musical, na forma como experienciamos a música hoje. E sabemos que a música está tão mais saudável quanto mais amadores musicais existem. Seja nos anos 60, por influência hippie, seja agora, por causa das redes sociais.
Entremos no capítulo Portugal.
[Grande gargalhada]
Tens procurado desmontar equívocos de interpretação relativamente ao teu interesse pela música nacional.
O meu interesse por música é sempre um interesse musical. Com uma música com a qual sinto uma empatia direta e da qual mais facilmente me posso apropriar. Se tenho mais facilidade em apropriar-me da métrica da música africana do que da métrica do rock, não faço distinção. Aproprio-me da música de que me sinto próximo. É a música que tenho para fazer. Não se trata do que gostava de fazer em abstrato. O que gostava de fazer em abstrato eram outras coisas, não era só música.
Não és meigo para o país. No EP Deus, Pátria e Família, de 2011, isso torna-se particularmente assumido. Escreveste “Portugal está para acabar/ É deixar o cabrão morrer” e não tiveste nenhum processo por traição à pátria.
Estranho que esse disco não tenha sido usado para uma campanha eleitoral recente [risos]. Só para mim é que não pinga. Isso faria o meu disco conceptual ter tido um boom nos serviços de streaming [risos]. Sobre o processo judicial, de facto não tive. Se calhar, se fosse editado hoje, tinha. Um problema não judicial, mas digital. É um exemplo muito sencillo, como diriam os nossos colegas, de uma canção que estava ali à espera de ser feita. Quando compus, fiquei boquiaberto, a pensar sobre como é que era eu que estava a fazer aquela canção. Aconteceu-me várias vezes na vida sentir que a canção que estava a compor tinha 50 ou 100 anos de atraso. Como é possível não haver um contraditório antinacionalista? Na altura, em que se cantava pouco em português, o pensamento-tipo era: “Um gajo, que está cantar em português, tem de contribuir para a cultura nacional!” [risos]. Nesse EP certifico-me de que me estou a cagar para a cultura nacional. É um exercício fundamental para se começar uma conversa séria. A moral é: Deus mais Pátria mais família igual a família. Portanto corta o Deus e corta o Pátria. Há um final ternurento.
No caminho vais distribuindo mimos: “Eu não sei português/E que se foda Portugal/Eu canto em fachadês/ A minha língua paternal”.
É importante dizer que o que canto não tem nada a ver com o meu país. Não vamos estar a fingir que a ideia de Nação ajuda em alguma coisa porque na verdade não ajuda em nada. Só desajuda. Ainda ouvimos líderes de esquerda em França a falar do grande país que é a França, da grande cultura que é a França, da grande língua que é a francesa, do exemplo que é a política francesa. Políticos de esquerda, de direita e de centro. Políticos de centro não nacionalistas que falam da grandeza do seu país, da sua língua, da sua História, dos seus feitos, dos seus museus. É a conversa do “devolve-se as coisas dos museus, mas é importante não esquecer a grandeza do castelhano, da História de Espanha, da História das regiões”. Felizmente esse é um discurso inadmissível em Portugal para uma pessoa que não seja um tonto. Estamos curados da cegueira do nacionalismo, mas sofremos muitos problemas crónicos associados à falta de consciência histórica, fruto de nos terem ensinado a História ao contrário. Ainda se lê o Camões como se lia no tempo do Estado Novo. Ainda não se começou a ensinar às crianças que Camões estava a gozar com a malta. Tem que se começar as pôr as coisas como elas são.
Gostavas de ir, pelas escolas, fazer essa campanha de alfabetização?
Por mim éramos espanhóis. Faz algum sentido a Península Ibérica estar dividida? Quando o Dom Quixote foi escrito, Portugal era Espanha. O “Quixote” é o nosso livro nacional, como o é para os espanhóis. Atenção que não se trata de ignorar a História. É perceber que a História não é a História dos Reis, por exemplo.
Nomeias, com sarcasmo, alguns reis numa canção”: “Palmas ao Marquês e à Inquisição/ Palmas D. Inês pelo nosso garanhão/ Palmas aos fascistas e à emigração”.
É uma canção que vem da leitura do livro de Aquilino Ribeiro, Príncipes de Portugal: Suas Grandezas e Misérias. Que devia ser suficiente para arrumar o assunto da monarquia no Ensino Público. Arrumava-se o assunto da monarquia e podia-se dedicar o resto das aulas a outra coisa. O livro consegue terraplanar todos os ícones da monarquia [risos]. A escola ensinou-nos a História na perspetiva dos reis. Que os reis eram vítimas do seu tempo. O Aquilino explica que as pessoas são vítimas dos reis e que o rei é só um idiota. Quatro idiotas são 200 anos de miséria para todas as outras pessoas. E quatro idiotas de seguida, no caso dos reis, é muito fácil porque são todos filhos uns dos outros [risos]. O livro foi encomendado pela Casa de Bragança e nunca foi editado. Tudo começa com quem quis fundar um país à bruta, batendo na mãe. É começar com o pé esquerdo. Todos esses mitos…
“Os meus filhos ouvem canções para adultos. E sabem que as canções são um espaço em que se pode dizer tudo”
Voltemos ao final de “Deus, Pátria e Família” que é editado quando começaste a ser pai. Revelas o gosto maior pela paternidade ao escrever: “Eu estou sossegado/ Ninguém quer mais que ser um pai babado”. Em “Estar à Espera ou Procurar”, de outro disco, também é referido: “Eu vou poder até que enfim,/ Ser pai a vida inteira/ Ter horta e capoeira”.
Os elementos biológicos são os elementos estáveis na condição humana. De vez em quando servem de alicerce às minhas canções, no meio do caos do desmanche filosófico que é, normalmente, o objetivo do resto da lírica.
Nunca te ocorreu contrariar a ideia de biologia? Amar os filhos dos outros, numa perspetiva progressista, se quisermos. Dos vizinhos, por exemplo.
Isso é um lado do ser humano em que não acredito. A maneira como nós vivemos em sociedade já é muito retorcida. Acredito numa organização natural do ser humano. Sou um naturalista nesse aspeto. Não acredito numa organização sindical do ser humano. Não é questão de ser contra os sindicatos na sociedade em que vivemos. É ser contra o corporativismo numa existência idílica humana em que as pessoas estão ligadas aos filhos dos vizinhos. Mas é dos vizinhos. Não é de uma manada de 500 mil pessoas. É uma família de 50. Assim está bem.
Precisas do concreto.
Não tenho soluções para controlar 500 mil. Faço o meu papel, que é fazer intervenção musical. Faço música, não faço política.
Gravaste o “B Fachada é Pra Meninos” antes de seres pai. Que tem versos como estes: “Se a mãe te vem chamar pá cozinha pa jantar/ Deixa-te estar, Tó-zé deixa-te estar/ Se é hora de acordar pra ir pra escola batalhar/ Não queiras ir Tó-Zé, deixa-te dormir”. Já meteste os teus filhos a ouvir o disco?
O disco é inocente. Mas não é didático de uma maneira lógica. Tem um tipo de ensinamento que só pode existir naquele formato. O meu trabalho é, acima de tudo, formalista.
O lado do contra está lá de forma clara.
Tem que ser. Os meus filhos ouvem canções para adultos. E sabem que as canções são um espaço em que se pode dizer tudo. Não é obrigatório dizer algo em que acreditamos. Muitas vezes é importante dizer o contrário do que se acredita. Por êxtase musical. E de ritual. O que se está a dizer faz parte de um ritual e não é para ser levado à letra. E é um tipo de discurso que não é para ser usado fora do seu contexto.
Essa sofisticação na maneira de interpretar não virá da educação que se dá a um filho?
Duvido que uma música possa ter um efeito nocivo num ouvinte. Tenho a opinião que tinha o Zappa. Acho que é tudo censura, pôr avisos parentais ou dizer que as canções estragam o cérebro.
O início de Rapazes e Raposas remete para o início de Deus, Pátria, Família. Quer num quer noutro há sons campestres.
Em Deus, Pátria, Família os barulhos da Natureza são 100 por cento artificiais e em Rapazes e Raposas são 100 por cento reais.
Consideras uma espécie de evolução?
Há uma satisfação que não é intencional. Gosto muito das componente de vida no campo e de fábula do Rapazes e Raposas. O “Natureza Radical” tem rãs que são mesmo rãs. Fui mesmo à meio da noite gravar as rãs no charco. Gravámos várias vezes. Escolhi um bocado de rãs [risos]. Pensei que, para ficar mesmo assustador, só mesmo com rãs.
A canção “Regabofe d’Abertura” parece-me ter – e regressamos sempre a ele — um condimento formal de homenagem a Alberto Pimenta.
Várias músicas deste disco trazem esse elemento. E têm mais literatura como influência. Como a tradução recente, feita por Hugo Maia, das 1001 Noites, uma edição da E-Primatur, que li recentemente. O tradutor foi buscar correspondentes linguísticos na literatura tradicional portuguesa da época para o coloquialismo do texto em árabe. No disco, esses coloquialismos, na minha cabeça, têm essa cor. Não é exatamente esta palavra que ele usou mas, para mim, têm aquela cor de literatura antiga. O “Regabofe d’Abertura” apresenta uma lógica de rima e de métrica que vai estar presente no disco todo. Parece que rima mas depois não rima. Ou melhor: finge que vai rimar mas depois não rima. É uma canção que não é bem uma canção. É claramente uma introdução. Tem as vozes separadas. E tem um arranjo mais segmentado, de forma a apresentar o tom do disco e a ideia do disco. A de que vai haver regabofe bom, regabofe mau, regabofe trágico e regabofe tântrico.
O ambiente natural unifica todos os regabofes?
Sim. É um disco dedicado à viola braguesa. Quinze anos depois de começar, não tinha havido um disco de estúdio dedicado à braguesa. Nem o Viola Braguesa era um disco à braguesa. Tem três músicas à braguesa e duas músicas de órgão com uma braguesa por cima. Não eram músicas compostas à braguesa.
Foste lá ter por afinidade, por gostares desse registo, por um link conceptual ao início? Por achares que fazia falta, como estavas agora a dizer?
Existem dois lados. Há outra vez esse lado de “onde está a temática?”, de “onde é vou fazer as coisas à minha maneira?” As fábulas abrem-me essa porta. Mesmo em canções musicalmente simples, como “A Mula e a Raposa”, em que coloco a fábula numa perspetiva muito pessoal. O animal é, digamos, completamente animal, mas depois há ali um pormenor da neura em que ele é humano. O que é suficiente para se tornar numa fábula. Ao mesmo tempo, o disco foi parar a Mértola por casualidade. Há duas ou três canções terminadas lá que são completamente contagiadas pela natureza radical dos animais.
Gravaste os sons da Natureza porque não tinhas wireless para chegar aos bancos de som?
[Risos] Não tínhamos. A faixa instrumental do disco funciona para mim como um pequeno retrato do quartinho onde gravámos o disco. A meio ouve-se uma rola. Nós comentávamos “lá está a puta da rola” porque cantava nos melhores takes. No disco, a rola está multiplicada por 100.
“Ainda vai ter de haver muito mais maldade e desgraça até isto se esgotar”
Em “Aritmética”, a certa altura, falas de tecnologia. Tu também és um homem das máquinas?
Sim, adoro. Sou nerd.
Cresceste com computadores?
Gosto de computadores, de programar. Não tivesse eu andado no Técnico. Passei à cadeira de Java com distinção. O que tenho com a tecnologia é um pouco a relação oposta à que tenho com a cultura. Desconfio da novidade, em vez de a procurar. Não acho nada que vem aí uma inteligência artificial para nos dominar a todos.
Neste caso és otimista.
Sim, neste caso sou otimista, sim. Noutras coisas, pessimista.
Em “Prognósticos” és especialmente pessimista. “Mil anos de destruição,/ mil anos de egoísmo e esquecimento”
É uma canção que estava à espera de ser escrita. Como não? Numa altura em que o futuro parece uma cortina de ferro, por muito sofisticado que tenham ficado o conhecimento e a ciência, nós não conseguimos, de maneira nenhuma, olhar para o futuro a uma distância maior do que dez anos. É evidente que não somos os últimos idiotas deste mundo. Ainda vai ter de haver muito mais maldade e desgraça até isto se esgotar.
A já citada “Memórias do Paco Forcado 2” trata-se de um remake de uma crítica.
É uma continuação. O personagem evoluiu. Já não é um jovem artista. Está em vias de fundar um partido. Um partido liberal [risos]. O mais importante dessa canção é o final. É o coro do fim, que diz: “Chega milho e palha que o vinho não é verde/ Enche de vermelho a quem se armar ao pingarelho”. Fica o verde e o vermelho infinito até ao fim (risos). Isso é que é o principal dessa música. E o início: “Sem a graça do Camilo, nem a coragem do Antero” somos todos suicidas.
De certo modo, é uma espécie de maximização tenebrosa do “Zé”.
Sim. Para explorar novamente o ponto do antinacionalismo. O antinacionalismo sem ser uma coisa meramente transgressiva não é transgressão. É opinião.
E em termos artísticos qual é o teu prognóstico? Interessa-te o que ainda se pode fazer?
Não me interessa aquilo que se faz. Interessa-me o que se podia fazer. No sentido mais velho e careta do termo. Do género “se fosse eu a fazer”. “Se fosse eu a fazer, não havia novelas de fraca qualidade”, “se fosse eu a fazer, as músicas eram todas boas”. Gosto de entreter o meu cérebro a imaginar o que é que se podia fazer. É o meu comportamento nerd a entrar. Não se aplica só à música. Aplica-se a tudo. Jogos de computador, restaurantes…
És um tipo crítico.
Se alguém me disser que está a fazer uma coisa de uma determinada maneira, o meu primeiro instinto é o de fazer quatro ou cinco comentários no sentido de se produzir um resultado melhor.
Esse é o teu lado produtor também.
Sim. Muitas vezes até de uma maneira deseducada, sem perceber que ainda não falei do que está bem. Começo logo por falar no que está mal. Às vezes de assuntos de que entendo pouco. O meu trabalho foi sempre solitário e sempre tive que lidar com as críticas da maneira mais cruel e mais frontal possível. O trabalho não pode ser autista. Quer dizer, pode. Mas uma pessoa depois não se pode queixar de não ter uma profissão sustentável.
No início eras mais punk e ripostavas mais?
Fazia uma música de confronto porque era necessário. Porque não havia público. O público foi aparecendo aos poucos. Era preciso fazer as pessoas perceber que, se prestassem atenção, iriam receber algo em troca. As pessoas não estavam caladas a ouvir um concerto. Nem na ZDB. Nem no Maxime. Em lado nenhum. As pessoas não me conheciam de lado nenhum.
O que te sugerem estes versos de “Mudar de Método”: “Eu não sou daqui/Venho a passar/Para a matiné”?
Essa é uma canção que acaba por ser a outra face da moeda do “Prognósticos”. Uma canção de reconciliação com o momento presente. É outra vez a ideia de que o futuro é mais extenso do que o passado. Porque o nosso passado é muito curto. A nossa consciência histórica é muito curtinha. Entende-se relativamente bem o ser humano de há 70, 80 anos. O dos nossos avós. Tudo que vem antes consideramos que é um ser que não compreendemos. Obviamente que para o futuro não vão existir 70 anos. Nem sete mil ou setenta mil.
A palavra matiné é leve.
A matiné é uma festa que ainda não é uma festa. Os defensores do Apocalipse são pessoas que têm dificuldade em conceber que chegaram cedo demais. Não há razão nenhuma para a festa ser esta.