No dia em que se assinalam os primeiros seis meses da aliança parlamentar das esquerdas, Catarina Martins parece querer mostrar ter assumido o guiador da “geringonça”. As jornadas parlamentares do partido, em Évora, refletiram isso mesmo: em cada intervenção, os bloquistas chamaram para si os louros da estabilidade parlamentar. Fizeram juras de fidelidade à atual maioria. Reconheceram vitórias e conquistas deste meio ano. Descansaram António Costa e asseguraram que não estão dispostos a desistir da maioria a favor da direita. “Traçar linhas vermelhas é algo que não queremos fazer”, diz Pedro Filipe Soares, líder parlamentar, ao Observador. “Não estamos num momento em que o Bloco ande a fazer ultimatos ao governo”. Mas, na verdade, o BE quer mais. Exige mais. E lamenta o que está por fazer. Os bloquistas não estão dispostos a dar um único passo em direção ao passado. E o futuro é já o próximo Orçamento do Estado para 2017. Quanto ao presente do partido, parece claro: Catarina Martins ganhou o Bloco depois do bom resultado que obteve no país.
Internamente, os machados de guerra foram enterrados. A oposição existe, mas é residual. Prova disso mesmo é que a comissão permanente, criada no último conclave bloquista para garantir a pacificação do partido, vai extinguir-se. Catarina Martins deixa para trás a liderança bicéfala e a coordenação a seis e prepara-se para ser formalmente e pela primeira vez desde a saída de Francisco Louçã a primeira coordenadora única do Bloco.
E vai sê-lo depois de ter quebrado um tabu no Bloco de Esquerda: o partido do protesto tomou o seu lugar no centro das decisões políticas. E aliou-se ao PS, o parceiro indesejado doutros tempos. Reforçada pelos resultados eleitorais (legislativas e presidenciais) e pelas primeiras conquistas ao leme da geringonça, o partido (ou grande parte do Bloco) cerrou fileiras em torno da atual liderança.
No Bloco, sabe o Observador, há um entendimento claro do papel que a porta-voz bloquista teve na assinatura do acordo com o PS. A linha dura do partido reconhece que Catarina Martins soube conduzir o processo de forma clara, sem ser subserviente ou ambígua com o. Ao contrário do que o PCP fez (pelo menos na perspetiva do BE), o Bloco colocou preto no branco as medidas que o partido queria ver concretizadas. E os resultados estão à vista.
Não é exagerado dizer-se que o partido vai enfrentar a próxima convenção, a 25 e 26 de junho, mais unido. Basta ver que 80% dos delegados eleitos na anterior convenção estão agora representados na moção conjunta patrocinada por Catarina Martins. A porta-voz bloquista escolheu um caminho e deu-se bem. Resta saber até onde pode ir a “geringonça”.
Bloco quer exigir mais da “geringonça”. Mas até onde?
“Cá estamos para a esticar a corda que mantém uma maioria que recupera rendimentos”. A frase de Catarina Martins, durante o jantar com militantes em Évora, fez ecoar a pergunta: o Bloco quer esticar a corda. Mas até onde? O Bloco vai navegando assim no fio da navalha, entre dois discursos quase contraditórios: o discurso ideal, sobre aquilo que sempre defenderam; e o pragmático, para justificar aquilo que sabem que é possível alcançar com o PS, deixando passar os aspetos de que discordam.
A moção apresentada por Catarina Martins foi interpretada como sendo um aviso claro a António Costa: “Sem nova estratégia não é possível sustentar compromisso em que assenta a maioria”. As duas prioridades estavam lá: reestruturação da dívida e controlo público da banca nacional. São duas premissas que o PS dificilmente aceitaria, pelo menos nestes termos. Logo se perguntou: a aliança sobrevive a isto?
Nas jornadas parlamentares do Bloco, a porta-voz bloquista retirou alguma pressão a António Costa. Assumiu a responsabilidade pela atual maioria e garantiu que não ia desistir dela. “A nossa exigência é o cimento da maioria” e nós “não cedemos, “nem desistimos desta maioria e desta recuperação de rendimentos”, sublinhou Catarina Martins.
Ainda assim, no Bloco ninguém acredita que o Governo socialista esteja sequer perto de repor tudo o que anterior Executivo cortou. Todos reconhecem que esta reposição minimal de rendimentos é insuficiente. E exigem mais. Bem mais. Mais emprego, aumento de pensões, melhores condições de trabalho e de salários, reforço da escola pública e do Serviço Nacional de Saúde e mais investimento na cultura e na ciência. Mas nesta equação entra um fator que os bloquistas não querem esquecer: enquanto país tiver de suportar os custos com a dívida pública portuguesa, dificilmente o Governo conseguirá dar resposta a todos os desafios.
A renegociação da dívida pública será uma bandeira dos bloquistas, que esperam ver, em breve, os resultados do grupo de trabalho criado com o PS para estudar a questão. Para já, a medida está fora do caderno de encargos exigido ao Governo de António Costa. Os bloquistas acreditam que essa renegociação é essencial e que representa o único caminho possível para garantir um futuro para o país. Mas estão longe de admitir que essa é uma condição sine qua non para a sobrevivência da aliança parlamentar — não será por aqui que a “geringonça” se desmonta. Pelo menos, enquanto António Costa continuar a garantir a recuperação de rendimentos e o desenvolvimento do país.
As vitórias e os “sapos” que o Bloco teve de engolir
Para trás ficam seis meses em que o balanço só pode ser positivo, vão reconhecendo os bloquistas. António Costa tem cumprido o acordo e o Bloco valoriza isso. “Temos que constatar que aquilo que tínhamos perspetivado tem sido cumprido até agora, e isso é uma constatação muito forte. Os acordos valeram a pena porque têm tido efeito positivo na vida das pessoas. O aumento de rendimento das pessoas foi interrompido, parámos o empobrecimento. Valorizamos muito isso”, diz ao Observador Pedro Filipe Soares, líder da bancada parlamentar do Bloco de Esquerda.
A “geringonça”, a tal “máquina complexa com muitos parafusos”, como definiu Catarina Martins no jantar com militantes em Évora, “funciona. E vai funcionado.” Em seis meses, o partido conseguiu o aumento do salário mínimo, a devolução dos cortes salariais e o fim da sobretaxa. Ainda conseguiram ver aprovada o fim das taxas moderadoras no aborto e o alargamento da procriação medicamente assistida. A 20 de novembro de 2015 chegava uma das vitórias mais marcantes para o Bloco de Esquerda: a aprovação da adoção plena de crianças por todos os casais foi conseguida com os votos da esquerda toda.
Mas nem tudo foram rosas no caminho do Bloco de Esquerda. Logo em dezembro, o partido coordenado por Catarina Martins votou contra o Orçamento retificativo apresentado pelo Governo socialista para dar resposta ao processo de resolução do Banif. Os bloquistas consideraram a resolução “inaceitável” e juntaram-se a PCP, PEV e CDS para chumbar o documento. A aliança de esquerda teria caído, não fosse a luz verde dada pelo PSD.
Esse foi o momento mais tenso entre os novos parceiros parlamentares. Mas a questão da banca e a sujeição de António Costa às “imposições de Bruxelas” — seriam sempre grãos de areia na engrenagem da “geringonça”. Foi assim com a discussão do Programa de Estabilidade, por exemplo. Ao contrário do que tem acontecido nos últimos anos, o Bloco preferiu não levar o documento a votos na Assembleia da República, mesmo assumindo a sua divergência frontal em relação ao documento e aos “programas de austeridade” impostos pela Europa. No dia em que foi ouvida por Marcelo Rebelo de Sousa em Belém, justificou a posição do Bloco assim: “Enquanto o Governo estiver a recuperar rendimentos do trabalho, a proteger o Estado social, aqui está o Bloco, como sempre”.
Esta parece ser a mensagem do partido para socialista ouvir: o Governo devia libertar-se dos constrangimentos europeus para conseguir acertar uma nova estratégia de desenvolvimento do país. Se optarem por outro caminho, devem fazê-lo, garantido sempre que o país consegue ultrapassar definitivamente a situação de declínio social em que se encontra.
Orçamento do Estado para 2017: sem “ultimatos”, o próximo grande desafio
Para já, e volvidos os primeiros seis meses de uma solução governativa que nunca existira em Portugal, o Bloco de Esquerda concentra agora todas as energias no próximo Orçamento do Estado para 2017. “Sem linhas vermelhas” ou “ultimatos”, garante Pedro Filipe Soares.
Traçar linhas vermelhas é algo que não queremos fazer. Não estamos num momento em que o Bloco ande a fazer ultimatos ao governo. Estamos disponíveis para fazer todo o aprofundamento das políticas que defendam os direitos das pessoas, dos seus rendimentos e da sua qualidade de vida. Não andamos num ultimato permanente, essa não é a nossa forma de estar“, explica o líder parlamentar do Bloco de Esquerda.
O líder parlamentar do Bloco de Esquerda prefere não falar em “cenários difíceis”. “O desafio é constante, não há momentos mais complicados do que outros. Há é momentos mais marcantes e o Orçamento é um momento marcante”, reconhece o dirigente bloquista, sem, no entanto, antecipar mais detalhes sobre a discussão.
“Já estamos a pensar com esse horizonte de trabalho [Orçamento de 2017] para chegarmos lá, por um lado, com o trabalho de casa feito e, por outro lado, tendo esse trabalho de casa feito, conseguindo ajudar o Governo a aprofundar essa recuperação de rendimentos que é necessária”, diz Pedro Filipe Soares,
Quanto ao futuro da aliança parlamentar de esquerda, ninguém entre os bloquistas quer pensar no fim da “geringonça” e em eventuais consequências do fim do acordo para Catarina Martins ou para o Bloco de Esquerda. Além disso, circula uma ideia que tranquiliza as hostes bloquistas: o PS não está em condições de conseguir uma maioria parlamentar sem o apoio do Bloco. Os partidos parecem, a médio e curto prazo, condenados a entender-se. E o Bloco espera conseguir mais vitórias com isso.