“Agora sim, guerra civil!” é uma frase assustadora, mas nem sempre credível. Num país sólido e coeso, sem fraturas culturais, religiosas e étnicas que dividam o território em dois e que marquem a vida política nacional, apelar a uma guerra civil é tarefa de grupos marginais, sem expressão de importância na sociedade. Os seus gritos por um confronto armado são inconsequentes e, no limite, podem até ser considerados apenas uma piada de mau gosto.
Mas, depois, há a Bolívia. Governada durante quase 14 anos pelo indígena e populista de esquerda Evo Morales, a Bolívia divide-se entre 40,6% da população que diz pertencer a algum povo ou nação indígena e 58,2% que responde o contrário. Concentrados no Ocidente do país, nas zonas mais elevadas e ricas no cultivo da folha de coca, os indígenas pró-Morales fazem-se representar pela própria bandeira (a whipala) e têm os seus próprios ritos religiosos. Pelo contrário, no Oriente do país, a população é maioritariamente branca, oposicionista e cristã, jurando fidelidade à bandeira verde-amarela-vermelha.
É por isso que gritar “agora sim, guerra civil” na Bolívia — como aconteceu várias vezes nas ruas de La Paz, nas manifestações dos indígenas, nas últimas semanas — vai muito para lá de uma piada de mau gosto: é um prenúncio ao virar da esquina. E que, até bem pouco tempo, esteve mais perto do que nunca na vida deste país sul-americano.
Primeiro, houve eleições, a 20 de outubro. Nessa noite, Evo Morales, em busca do quarto mandato que tanto perseguiu, ia liderando a contagem, mas obrigado a disputar uma segunda volta. Quando estavam contados 83% dos votos, porém, a contagem oficial foi escondida do público e apenas partilhada no dia seguinte, já com Evo Morales e o seu MAS (Movimento Ao Socialismo) como vencedor imediato.
A partir daqui, tudo se precipitou. A oposição e os movimentos cívicos contra Morales saíram às ruas, com a polícia a renegar o homem que é Presidente desde 2006. Mais importante ainda, o general Williams Kaliman fez um comunicado, a 10 de novembro, onde deixava a “sugestão” a Evo Morales de que se afastasse — este ainda chegou a propor novas eleições, mas, ciente de que estava cercado, fugiu do país e apareceu no México, dois dias mais tarde, como refugiado político. Nesse mesmo dia, numa sessão parlamentar boicotada pelo partido de Morales e, por isso, sem o quorum legalmente necessário, os partidos da oposição no Senado fizeram uma leitura seletiva da Constituição para declarar Jeanine Áñez, segunda vice-presidente do Senado, presidente interina da Bolívia com o objetivo de convocar eleições.
Problema: Jeanine Áñez não assumiu o cargo com o espírito de um líder de transição. Em vez disso, assumiu a imensa fratura que divide a Bolívia entre indígenas (como Evo Morales) e os descendentes dos colonos europeus (como Jeanine Áñez), ao tocar no também fraturante tema da religião. “A Bíblia voltou ao Palácio”, proclamou a presidente interina, cujos ministros tomaram posse jurando “resistência pacífica à ditadura” e com o compromisso de “devolver Deus ao Palácio de Governo”.
Maior problema ainda: a divisão começou a fazer mortos. Foram pelo menos 34 as pessoas que morreram em confrontos armados, numa altura em que a polícia e o exército saíram às ruas contra apoiantes de Evo Morales (camponeses e cocaleros, alguns deles armados). Apoiados no decreto 4078, declarado por Jeanine Áñez, polícias e militares passaram a estar “isentos de responsabilidade penal quando, em cumprimento das suas funções constitucionais,” atuassem “em legítima defesa ou em estado de necessidade” — uma isenção que chegou a ser descrita como “licença para matar”, logo rejeitada pelo atual governo.
Com cada um dos lados armados, os confrontos começaram a assumir contornos de guerra. Concentrados na cidade maioritariamente indígena de El Alto, os cocaleros trataram de bloquear o abastecimento de combustível à capital, La Paz, mesmo ali ao lado e aos pés daquela cidade de grandes altitudes. Também conseguiram bloquear Cochabamba e, mais importante, Santa Cruz. Esta última cidade é, além de um claro bastião da oposição a Evo Morales, a mais populosa de todo o país.
A situação nas ruas da Bolívia tornou-se uma gigante bola de neve. Perante a ação da polícia e do exército, cada vez mais musculada (chegaram a dispersar com granadas de gás lacrimogéneo um funeral de cocaleros mortos), os setores afetos a Evo Morales passaram a entoar palavras de ordem que dificilmente se esquecem: “Agora sim, guerra civil!”.
“Ahora sí, guerra civil”, cantan los partidarios de Evo que empiezan a movilizarse desde El Alto”. pic.twitter.com/B8AL3uBrng
— Augusto Taglioni (@TaglioniAugusto) November 11, 2019
A situação parecia irreversível — até que deixou de parecê-lo. Enquanto as ruas passavam a imagem de um país entrincheirado e com vista apenas para um aumento da violência do número de mortos, o governo interino da Bolívia reuniu-se de forma secreta com o MAS.
Sentados à mesma mesa e com a mediação de três organizações internacionais (Conferência Episcopal, Nações Unidas e União Europeia), as duas partes chegaram a um acordo para convocar eleições antecipadas num prazo de cinco meses a contar de 22 de novembro. Apesar de ainda não ser conhecida a data em concreto das eleições, é já conhecido um detalhe de elevada importância: após concessão do MAS, nem Evo Morales nem o seu vice, Álvaro García Linera, irão concorrer às eleições.
Além disso, no fim-de-semana, perante o vislumbre de eleições dentro de um prazo máximo de cinco meses, os grupos de indígenas e cocaleros que bloqueavam cidades como La Paz, Cochabamba e Santa Cruz aceitaram levantar barricadas.
Gobierno acuerda con dirigentes del Distrito 8 de El Alto la pacificación.
Entre los puntos acordados está la no persecución de dirigentes y se respete la declaratoria de personas no gratas a algunos representantes cívicos como Luis Fernando Camacho. pic.twitter.com/yPWobrdqlw— RTP Bolivia (@rtp_bolivia) November 25, 2019
“Nos últimos dias, ambos os lados ficaram com um verdadeiro medo de que haja uma guerra civil”, diz ao Observador Fernando Mayorga, politólogo e diretor do Centro de Estudos Superiores Universitários da Universidad Mayor de San Simón, na Bolívia. “Em ambos os lados há grupos que querem evitar uma polarização que chegue ao ponto de extremar e maximizar ainda mais a fratura social da Bolívia”, acrescenta o politólogo. “Por isso, é possível uma saída política de tudo isto.”
Problema resolvido? Longe disso.
Entre Morales e Áñez, um país ressentido
Depois do dia 21 de fevereiro de 2016, o centro, enquanto espaço político na Bolívia, foi a enterrar.
Naquela data, os bolivianos foram chamados a votar em referendo se, na prática, permitiam a Evo Morales a possibilidade de concorrer a um quarto mandato presidencial. O resultado nas urnas foi renhido, mas ninguém o contestou: uma maioria de 51,3% de bolivianos votou “não”, indicando o fim da carreira política de Morales como Presidente da Bolívia.
Mas o homem que conta com aliados regionais, como o venezuelano Nicolás Maduro e o nicaráguo Daniel Ortega, insistiu em manter-se no poder e recorreu para o Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP), a mais alta instância da justiça boliviana. Este, referindo que a interdição de um quarto mandato ia contra os direitos políticos de Evo Morales e do seu vice, desautorizou o resultado do referendo e abriu o caminho para Morales concorrer a novas eleições, que acabaram por ser celebradas a 20 de outubro deste ano.
“O ponto de partida para a atual situação de perda de popularidade de Morales foi o referendo de 2016”, refere Fernando Mayorga. Foi aqui que o ex-Presidente indígena “perdeu a classe média”, fator-chave para ganhar e governar num país dividido como a Bolívia, sustenta o politólogo.
E é precisamente da classe média, tal como da classe média-alta, que nasce o que se viria a tornar o maior pesadelo de Evo Morales.
“Começa a partir daí um movimento da oposição, não só dos partidos, também de grupos sociais e, sobretudo, da classe média e associações profissionais das cidades, que se juntam em grupos nas redes sociais. Eles autointitulam-se ‘plataformas cidadãs’ ou ‘plataformas cívicas’ e, no fundo, formaram desde essa altura uma oposição extraparlamentar”, lembra Fernando Mayorga.
Se no lado esquerdo do compasso político boliviano qualquer aproximação ao centro se tornou numa miragem há já vários anos, o mesmo passou a acontecer com a direita nos últimos anos. A resposta social ao não-cumprimento do resultado do referendo de 2016 criou um movimento de protesto da sociedade civil não-indígena, marcadamente conservador e cristão, acirrando uma dinâmica que já Evo Morales explorara em proveito próprio: o Ocidente indígena contra o Oriente europeu.
Jeanine Áñez, presidente interina desde 12 de novembro, tornou-se a principal cara do Oriente europeu, conservador e cristão. A sua ascensão ao poder foi improvável — era a terceira pessoa na linha para assumir o poder na ausência de Evo Morales, depois do vice-Presidente (que também fugiu para o México) e da primeira vice-presidente do Senado, Adriana Salvatierra, partidária do MAS de Morales, que se demitiu a 10 de novembro.
“Ánez não era muito conhecida e a sua subida ao poder é uma casualidade, mas ainda assim representa de várias formas estes grupos extraparlamentares”, sublinha Fernando Mayorga. “Ela tornou-se a cara mais visível das posições muito conservadoras que caracterizam os movimentos cívicos: é pró-vida, é muito crítica da ideologia de género, está contra a educação sexual nas escolas, tem uma postura muito conservadora e católica”, continua o académico. Na economia, sublinha que há algumas “ambições neoliberais”, mas que, acima daquilo que defendem, estes grupos estão de acordo naquilo a que se opõem: o socialismo defendido por Evo Morales.
Aos 52 anos, Áñez conta com um currículo dividido em três pontos. Nascida em San Joaquín, vila da região de Beni, uma das mais pobres e isoladas da Bolívia, é a irmã mais nova de um total de nove filhos de uma família de classe média-baixa. Depois de ter estudado Direito em La Paz, regressou à região de Beni e tornou-se apresentadora (e mais tarde diretora) de uma televisão local, a Totalvisión. O cargo deu-lhe visibilidade, ao ponto de ter sido eleita para a Assembleia Constituinte de 2006.
Desde então, a sua intervenção política e cívica tem sido marcadamente a favor da afirmação de valores cristãos numa Bolívia onde, em simultâneo, os povos indígenas ganharam representação política, poder económico e ascensão social — feitos impossíveis até há umas décadas para estes povos que, só em 1956, tiveram direito a votar.
“Na minha região, não queremos ser como o Collasuyo [região indígena], não queremos uma bandeira como a whipala, queremos ser sempre a Bolívia, uma bandeira vermelha, amarela e verde, com a qual nascemos enquanto país”, disse como deputada em 2009.
Mais polémicos foram os tweets alegadamente escritos ao longo dos anos e descobertos pela AFP aquando da tomada de posse de Jeanine Áñez. “Nem ano novo aymara nem estrela manhã! Satânicos, ninguém substitui Deus”, escreveu, a 20 de junho de 2013, em alusão a festividades pagãs indígenas. Noutro caso, a 31 de dezembro de 2016, escreveu: “A todos aqueles que celebram o ano novo [aymara] em não sei que mês, não vos quero ver bêbedos amanhã a dizer ‘feliz ano novo’”. E, ainda recentemente, a 5 de outubro de 2019, Áñez terá publicado uma caricatura de Evo Morales, chamando-lhe um “pobre índio agarrado ao poder”.
Nas várias entrevistas que deu aos media internacionais — nos dias que se seguiram à “sugestão” de saída de Evo Morales e à tomada de posse de Jeanine Áñez, ambos disputaram afincadamente o espaço mediático —, a presidente interina na Bolívia negou ter escrito qualquer uma daquelas palavras. Apesar de estas terem sido recolhidas pela AFP da sua conta, antes de terem sido apagadas, Jeanine Áñez garantiu que aqueles posts foram obra de “guerreiros digitais” ao serviço de Evo Morales.
“Nunca fui racista, porque me considero comum e normal, não tenho nenhum privilégio que me permita discriminar. Venho de uma aldeia muito pequenina e de uma região com muitas necessidades. Evo Morales [é que] tem incentivado a divisão. Chamam-nos de neoliberais e oligarcas com o propósito de criar inimigos internos e de nos porem uns contra os outros”, disse Jeanine Áñez à BBC.
Umas eleições de extremos
Fernando Mayorga não ficou convencido com este tipo de respostas que Jeanine Áñez ensaiou no seu rol de entrevistas para além-fronteiras. “O que está em curso é um projeto de restauração oligárquica, porque as forças da oposição não têm um programa económico alternativo para a Bolívia. Não há uma elite económica que queira o liberalismo, como aconteceu com Macri na Argentina e acontece agora com Bolsonaro no Brasil”, diz. Em lugar de um modelo económico alternativo, identifica antes na nova direita boliviana, encabeçada pelos movimentos cívicos, “um desejo de vingança política”.
Por outro lado, Fernando Mayorga aponta três erros a Evo Morales que, no final de contas, ajudaram a acirrar ainda mais o conflito interno na Bolívia.
O primeiro terá sido “disputar as ruas e convocar os camponeses para cercaram as cidades, que se sentiram, a partir daí, em posição de se defenderem”.
O segundo erro foi dizer que os manifestantes, maioritariamente jovens, protestavam porque eram pagos e não por verdadeira convicção.
E o terceiro foi quando, ao defender-se da oposição, Morales colocou no mesmo saco Carlos Mesa (ex-Presidente da Bolívia, maior candidato da oposição, moderado de centro-direita) e rostos dos movimentos cívicos e políticos mais radicais, como Jeanine Áñez ou Luis Fernando Camacho, presidente do Comité Cívico de Santa Cruz.
“Ao atacá-los a todos ao mesmo tempo e na mesma frase, sem fazer distinções entre uns e outros, Evo Morales facilitou ainda mais a tarefa dos comités cívicos de subordinarem políticos da oposição mais moderados, como Carlos Mesa, à sua agenda mais radical”, explica Fernando Mayorga.
O resultado disso já está à vista através dos políticos que já comunicaram a sua intenção de se candidatarem às próximas eleições gerais bolivianas. Carlos Mesa, que era até agora o político em melhor posição para derrotar Evo Morales, perdeu, no último mês, protagonismo e apoio para a sua direita. O maior exemplo disso mesmo é do agora candidato Luis Fernando Camacho, a quem a imprensa internacional tem chamado de “o Bolsonaro da Bolívia” — mas que na Bolívia, onde são conhecidas as suas posições ultraconservadoras e também militaristas, é conhecido como “El Macho Camacho”. Em El Alto, a maior cidade indígena da Bolívia, é persona non grata.
Por isso, mesmo com a luz ao fundo do túnel e aparente acalmar de tensões produzido nos últimos dias, a política boliviana atravessa de qualquer modo o seu momento de maior crispação desde o início da era de Evo Morales. O foco está nos extremos — é para eles que falam, e por eles que puxam, os políticos em posição de governar um país que, como disse ao El País o historiador e especialista na Bolívia Pablo Stefanoni, vive “uma espécie de guerra civil de baixa intensidade”.