Bonga e B Fachada atuam juntos na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, esta sexta-feira, dia 27. A sala espera-se esgotada e antes dessa noite única, o Observador falou com ambos, José Adelino Barceló de Carvalho, o mítico nome da música angolana e mundial, e Bernardo Fachada, a figura de proa da nova canção nacional. Pouco antes, os dois tinham-se conhecido pessoalmente pela primeira vez. Apostamos que não ficam sem se falar durante muito tempo.
Bonga, já tinha ouvido falar do B Fachada?
Bonga: Só de nome… e um pouco da música.
Calculo que para ti seja diferente, Fachada. Há uma fotografia tua com discos dele.
B Fachada: Sim, foram comprados como pesquisa mesmo para o Há Festa na Moradia.
Fazes sempre isso, comprar discos para fazer pesquisa para um novo álbum?
BF: Quase sempre. Há quase sempre uma fase em que começo a ouvir mais música antes de começar a compor, depois paro.
E o que é que foste buscar ao Bonga?
BF: O bom gosto. E há um lado daqueles discos do Bonga que acho que consegui passar, tem a ver com a maneira como se organiza a métrica. A maneira como se organizam as sílabas, o comprimento das frases melódicas, a maneira como se consegue pôr um coro a responder a uma voz. Claro que depois tem que haver uma parte grande de intuição, para termos confiança no que estamos a fazer. Sempre me preocupei muito com a métrica, e a música em Portugal geralmente tinha sempre uma métrica muito quadrada, uma língua muito artificial, enquanto na música africana parece sempre que o cantor tem mais um truque na manga.
B: Tenho o hábito de cantar em contratempo, também. O ritmo está ali, é aquele que não desfaz, é sempre igual, mas a gente pode estar a passear. E adoro passear na música. Não me peças para dizer que discos eu escuto, mas quando vou fazer um disco às vezes estou a ouvir um tango, por exemplo, do Carlos Gardel, mas vou fazer semba de Angola. Ou estou a ouvir um rhythm and blues, aqueles temas do antigamente, um Ray Charles, por exemplo. Ou um bom samba brasileiro, do morro, não é? Ou então uma música cubana, um merengue ou assim. No entanto, não vou fazer aquela música, estou a fazer a música angolana, uma rebita, sei lá. Isso dá-me ânimo para compor outras coisas da minha terra de origem.
[Tonokenu, do novo álbum de Bonga, “Recados de Fora”:]
O Bonga estava a acenar com a cabeça quando o B estava a dizer que a música portuguesa tem uma métrica muito quadrada. Estava a concordar?
B: Evidentemente. Por ele ser ousado e dizer essas coisas. Há muita gente que não diz e tem as pretensões de não-sei-quê, não-sei-quantos, é complicado. E ele está ali a dizer uma grande verdade.
BF: É uma música muito pobre em muitos aspectos, principalmente quando comparamos com a música que tem um propósito, em que a música junta as pessoas, em que a música serve no dia-a-dia. Aqui a música não nos serve para nada, mas é uma barreira que tem vindo a ser quebrada aos poucos.
B: Ele é sincero na execução da sua obra. E sobretudo no ir buscar aqui ou ali. Não digo métrica, porque a métrica já me complica, mas é a tónica que ele procura para as composições, é muito mais agradável. É muito mais ouvido. O africano tem essa coisa… não quero dizer vantagem, mas é um jogo incrível.
Como vai funcionar o concerto? O B Fachada faz a primeira parte e o Bonga a segunda?
B: Isso é segredo. Não estamos aqui para abrir esse jogo. Se um chama o outro, nós estamos dispostos e disponíveis. Temos o palco e sobretudo vai ser um espectáculo de festa. A partir daí também tem a ver com o público, que também tem de se movimentar nesse sentido.
BF: O público está sempre em maioria.
B: Sempre. É por isso que às vezes o público diz “canta a Mariquinha, canta a Fruta não-sei-quê” e eu estou feito ao bife.
O Bonga atuou há pouco tempo no Tivoli.
B: Com lotação esgotada.
E agora atua numa sala muito mais pequena.
B: Não tem nada a ver. Embora o Tivoli tenha tido mil e tal pessoas, foi muitíssimo bom ver todas as gerações representadas e até angolanos que, morando aqui, já não se encontram uns com os outros, e aquilo serviu para se encontrarem. Aqui é outra coisa, é outra festa que a gente vai fazer, com outra realidade.
Que pontos em comum é que já encontraram?
B: A música. A música tem tudo. Tem a cultura de cada um, sobretudo a minha cultura, que ele consegue viver. E é o melhor que sabemos fazer, para depois dar isso a outras pessoas.
BF: Pela empatia vai-se aprendendo.
B: E de que maneira.
O Bonga sempre teve um gosto especial pela música com mensagem, certo, que assuma algum tipo de intervenção?
B: Quando não é assim, afasto-me um bocadinho. Às vezes o som é muito rico, mais rico do que aquilo que se diz, como uma certa juventude africana, que fala da mulher, que fala do sexo, isso chateia-me. Se eles ficam por aí, não sei…
Como é que vê a música do B Fachada à luz disso?
B: Na verdade, tenho pouca escuta da música dele. Mas do que ele diz e do que já conheço, só posso acreditar que é assim também.
Reconheces isto na obra do Bonga?
BF: A canção é a canção, não é? É preciso ter algum tipo de fragilidade e não ser um moralista numa lógica de certo e errado que deixe o ouvinte, a terceira pessoa, de fora. Tu és o primeiro, a canção é a segunda. A música de intervenção interessa-me quando está para cá dessa fronteira em que a intervenção passa a vir antes da música, passa a ser intervenção musical em vez de ser música de intervenção. Na nossa música essa fronteira foi passada muitas vezes, a música de intervenção transformou-se numa coisa muito intelectualizada muitas vezes, não no caso do Zeca, mas depois no caso de quem se segue.
Enquanto em Angola existem outras questões que estão associadas, em que a música trata, como sempre tratou, da vida das pessoas e das questões das pessoas, e existe uma questão fundamental de liberdade física, concreta, fundamental que tem de ser tratada e logo a seguir existe um país para fundar que é uma coisa concreta, fundamental, não é exatamente uma cachimba intelectual em Coimbra. Não é exatamente nisso que se transforma numa canção para ensinar a malta, não é bem disso que se trata, trata-se de tentar contribuir para a experiência coletiva de fundar um país logo a seguir à fase eurocética.
[“Afroxula”, do álbum “Criôlo”, de B Fachada]
B: No outro dia estava a ver uma entrevista, estava chateado com aquela coisa dos assimilados, que regurgitam tudo o que aprenderam no tempo colonial, que até condenam os seus próprios africanos, por isso é que há uma distanciação tremenda, a burguesia africana que está cheia de dinheiro, rios de dinheiro, e que usam e abusam do seu próprio povo. No outro dia vi o Rafael Marques que dizia “neo-colonização não existe, porque estamos a ser colonizados pelos pretos iguais”. E eu fartei-me de rir.
BF: É uma auto-colonização.
B: Agora com os meus “Recados de Fora”, o meu novo disco, continuo a dar recados. Mas não estou a tentar moralizar ninguém. Só deixo avisos, é preciso ter alguma atenção no degenerar das coisas e a gente faz isso cantando, que é a melhor maneira. Depois tenho os meus seguidores, é uma chatice, agora com a internet, facebooks e não sei quê. As pessoas manifestam-se mesmo. Mas, por exemplo, o “Angola 72” é essencialmente um disco de intervenção.
Mas não se esqueceu da parte da música.
B: Não, nem podia ser, porque já estava comigo.
BF: Essa é que é a génese.
B: Eu aprendi com aqueles kotas do antigamente, que cantavam 24 sobre 24 horas. Os velhos cantavam, as mamãs cantavam, as avós estavam sempre a cantar, mesmo quando contavam as suas histórias. O grande berço da informação e da educação tem que ver com esses kotas que nos ensinavam. E não eram forçosamente da nossa família. Em África, todo o mundo dança. Tenham paciência. Nas ruas, enfim. E eu sou um privilegiado porque fui educado também na rua pelos passantes. O indivíduo com mais idade do que eu educava-nos na rua e dizia-nos como é que eram as coisas. Eu aprendo o kimbundu na rua, eu aprendo os provérbios na rua, aprendi a tocar a instrumentação tradicional de Angola com os velhos que estavam a tocar em frente à porta. E quando tocava mal, o gajo dava um cascudo e puxava a orelha. Eu sou desse tempo, isso é um privilégio. E o povo seguiu-me.
Aí surgiu a intervenção, mas vem sobretudo esta maturidade, vai ganhando consistência ao longo da carreira, tornar-me verdadeiramente profissional, e respondendo à chamada. Cada vez que tenho um contrato, em países que nunca pensei, é sobretudo para insistir nesta música, neste semba tradicional, e falar dessa história, dos meus velhinhos, mas sem qualquer complexo. A juventude da minha terra, por exemplo, é muito snob, fica naquela de querer muito inglês falado, a querer imitar outras esferas. Quanto mais eles se esforçam para apresentar outra personagem que não tem nada a ver connosco, culturalmente, mais se afastam da realidade. E a nossa realidade é uma coisa muito mais simples, muito mais profunda, muito mais informativa. Por essa razão é preciso intervir de facto para dizer que não é nada disso.
BF: A intervenção vem na voz em si, a voz é que depois acrescenta aquele significado humano à música, a voz tem a palavra, o significado e a ideia de som.
B: E por incrível que pareça, é esta voz rouca que eu tenho. Falo normalmente, mas começo a cantar e estou lixado. Esta voz vem assim. E foi daí que tudo começou. Foi a voz que suscitou o interesse disto tudo, da Europa, da América, os convites que tive. E se comecei a cantar contra o colono português naquele tempo, vieram os meus patrícios que não me facilitaram a vida. Fui vendo e achando que devia continuar a intervir. Porque, de facto, as coisas não melhoraram. Tivemos a independência, tivemos não-sei-quê, mas isso não basta. É preciso é a prática da liberdade, da emancipação. E continuo a cantar e a dizer coisas, principalmente nas entrevistas em que vocês fazem o favor de me ouvir. Depois tenho amigos, como este grande amigo que eu venho fazer hoje, neste encontro maravilhoso que estamos aqui a ter, e digo “este gajo tem que vir a minha casa várias vezes”, para fazer parte da família.
BF: E tenho de levar os meus filhos.
B: Tem que comer ali umas moambas, uns feijões de palma com uns mufetes, umas guitarradas e cada um dá o seu parecer, o seu parecer cantando. Isto é que é bonito. Continuo a ser privilegiado, sou do tempo do Zeca Afonso, que foi meu amigo, do Padre Fanhais, do Adriano Correia de Oliveira. No 25 de Abril estava em Paris, vim a correr mas cheguei aqui e desiludi-me rapidamente. MFAs e não sei quantos, pensei: “Espera aí, não está fácil, recua para melhor avançares”, e foi o que fiz. Lá fui eu outra vez para Paris, e só voltei depois. Continuei a fazer discos e a mandar recados, como sempre.
B, a tua formação musical — e não só — deve ter sido um pouco diferente?
BF: Sim, tenho a experiência do subúrbio. Para mim, essa ideia da música pertencer à comunidade é o trabalho que eu tive de imaginar mais tarde, para poder pôr as canções em movimento. Tenho uma educação pelos discos, de ouvir os discos, e no subúrbio tens sempre algum acesso a outras culturas, a uma mistura cultural, a um pote cultural onde há gente que vive a cultura doutra maneira, sejam pessoas que vêm de África ou de outras partes da Europa, do Brasil… Como vivi sempre fechado em subúrbios, também estive sempre no meio desses potes culturais, onde se tu tiveres alguma sensibilidade de empatia consegues ir absorvendo algumas coisas, não exactamente aprender a tocar instrumentos tradicionais, mas consegues ir percebendo de que maneira é que a música pode fazer parte da vida das pessoas.
Hoje que já tenho os meus filhos é sobre eles que ponho toda essa pressão e é sobre eles que tento trabalhar essa ideia de que a música pode fazer parte, pode guardar conhecimento da família, pode guardar mensagens que depois eles vão descodificando ao longo da vida, podem ficar codificadas mensagens num refrão que se vai desvendando com os anos, eles podem aprender a tocar, aprender a cantar, aprender a ter uma espécie de bebedeira natural. Para uma criança, a música é um acesso a um estado de consciência alterado, que é natural e positiva.
B: E que as impede de fazer outras coisas. Eu fiz isso com os meus filhos. Quatro nasceram em Paris. Qualquer um deles tem ouvido musical, toca um instrumento, cantam algumas coisas. Quando a gente se encontra, é música, é harmonia. É fantástico, e junta as pessoas umas com as outras. “Ça va de soi”, como diz o franciú.
Concerto esta sexta feira, dia 27, na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, às 22h.