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Brasil independente: uma cantiga com 40 anos

Rincon Sapiência atua em Lisboa no dia 6. É um dos nomes que faz a atualidade da música indie no Brasil, um movimento de 40 anos que começou com Antonio Adolfo. Traçamos um roteiro em cinco regiões.

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Desesperado, o compositor Antonio Adolfo arriscou a cartada final. Vendeu o carro e o querido órgão Hammond para apostar numa ousadia inaudita, após as editoras brasileiras rejeitarem as composições do estimado pianista da Bossa Nova. Pagou as sessões de estúdio, a produção do vinil e carimbou na mão os envelopes de cartolina com o título Feito em Casa, concebendo na aflição o considerado primeiro disco independente da história do país, em 1977. “O Brasil não é para principiantes”, já dizia Tom Jobim, e o esforço de Antonio Adolfo acabou num entusiasmo relativo apenas para alguns instrumentistas atentos. Para colher os frutos deste projeto embrionário temos de saltar 40 anos em frente, onde a terra vive finalmente o momento fértil de produção independente, ao lado de uma crise económica, política, social e identitária.

[“Feito em Casa”, de Antonio Adolfo:]

Se começar agora a ver a novela, ou a ouvir qualquer rádio brasileira, vai se convencer de imediato que não deve existir nenhuma nota musical além do pagode, funk pop, e o gigante sertanejo, que domina o Brasil com a mesma eficácia inescapável de um refrão Michel Teló. Porém, debaixo da superfície do “ai se eu te pego” que move as noites mais quentes, uma aquarela de música independente explode pelas ruas numa paleta de tons e géneros, acompanhando a mutação social das cidades, que gritam palavras de ordem e exigem espaço para ser. “Eu milito no underground da música nacional desde o comecinho dos anos 90”, explica em manifesto o jornalista Lúcio Ribeiro, da Popload, “vivemos na cena independente um singular momento do AGORA”. E é neste agora, em homenagem aos 40 anos de Feito em Casa, que Portugal deve esquecer por momentos a novela e embarcar na descoberta de outro “Novo Mundo”, dividido por cinco distintas regiões: Sudeste, Sul, Nordeste, Norte e Centro-Oeste. (e com direito a playlist:)

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Sudeste

“A perdição, a salvação, a rua me serve, tipo mordomo”, canta em “Ponta de Lança” o melhor avançado do hip hop brasileiro, Rincon Sapiência, homem golo de Galanga Livre, o principal candidato a álbum do ano, que estreia em Portugal neste dia 6 de Setembro, no Musicbox. Rincon é o novo artilheiro umbabarauma, como cantou Jorge Ben no Africa Brasil, que:

“Pula pula, cai, levanta/
Sobe desce/
Corre, chuta, abre espaço/
Vibra e agradece”

A criar jogadas de versos livres na luta eterna de igualdade social dos negros dentro do Brasil, começando pelas ruas de São Paulo, onde nove mil sem-abrigo vivem hoje na miséria. “O berço do hip hop é SP, a cidade mais urbana do Brasil”, explica o rapper ao Observador, “o rap tem ganhado força por todo país que por sua vez tem uma dimensão continental e temos conseguido impor nossos valores estéticos e culturais, isso é ótimo pra que não sejamos meras cópias gringas”. O álbum mais esperado no cenário independente, lançado pela editora Boia Fria, chegou na mesma altura que Criolo abraçou o samba em Espiral de Ilusão, e Emicida criou o projeto intercontinental Língua Franca (com Rael, Capicua e Valete), deixando Rincon para liderar sozinho o pedestal de MC ativista.

[“Ponta de Lança”, de Rincon Sapiência:]

Um passo de dança é a única reacção possível quando começa “Ponta de Lança”, talvez até arriscar o famoso “quadradinho”, e se a febre não chegou a Portugal, fique a saber que isto de abanar a bunda tem muita coisa que lhe diga. “Quadradinho” é mais um passo funk, ritmo que bate entre os versos de Rincon, provando como este som está muito longe do clássico paulista Sobrevivendo no Inferno dos Racionais MCs, outro álbum influenciado por Jorge Ben. “Toda estética instrumental do atual funk vem de SP, os MCs de maior expressão também”, defende o rapper.

No Sudeste, o funk deixou de ser o principal exportador carioca, e o género vive agora seu momento de estrelato, evoluindo dos controversos e subversivos “Proibidões” para sucessos pop na voz ingénua de Anitta. Um exemplo paradigmático está em “Rabetão”, com o jingle irresistível “vai rabetão, tão, tão, tão, tão, tão no chão”, gravado de forma totalmente independente por MC Lan, o maior sucesso funk de 2017 (já vai em 133 milhões de visualizações no Youtube). Alguns meses após o MC lançar essa “serenata”, que ele confessa que é apenas para “te ver dançar pelada”, a Warner Music contratou o músico e agora é gerido nos mesmos escritórios de Anitta.

[“Rabetão”, de MC Lan:]

Quase demovido de funk, a cena independente carioca vive sua fase existential, com o rock ainda órfão de Los Hermanos, produzindo novas bandas que enfrentam plateias vazias e desinteressadas. Apesar de nunca faltar oxigênio na MPB, desde o experimentalismo tropicalista de Ava Rocha à pista de dança de Mahmundi, o momento é mesmo de incerteza, refém de recorrentes visitas a São Paulo para sobrevivência.

Entre a batalha de egos Rio/São Paulo — no bom estilo Lisboa/Porto — está a bucólica Minas Gerais, o alentejo brasileiro, a calmaria ao lado da tempestade. No estado que viu nascer o Clube da Esquina segue firme a tradição de cantautores, que se desdobram em movimentos e manifestos, como o coletivo Geração Perdida, os rappers Djonga e Rashid, e cantoras folk a transmitir o sossego que reina nessa gente, com destaque para Sara Não Tem Nome, Luiza Brina e Juliana Perdigão.

BayanaSystem

cartaxocria

“Artistas de diversos lugares do Brasil vem pra SP para poder alcançar maiores voos”, confirma Rincon, “por aqui temos bandas quentes que passam pelo rock, afrobeat, rap, funk, jazz, então sem dúvidas é a casa da música independente”. Nomear bandas paulistas implicaria muitas linhas, o melhor é garantir que são muitas e boas, desde Terno aos Terno Rei, a uma panóplia infindável de nomes extraordinários, como Garotas Suecas, Aeromoças e Tenistas Russas e Gorduratrans. “O acesso às grandes rádios ainda não é tão acessível, mas o alcance da música independente tem se tornado cada vez maior e sustentável”. Sites paulistas como o Popload, MonkeyBuzz, Noisey, Miojoindie e Tenhomaisdiscosqueamigos são a melhor forma de acompanhar a extensa produção, em contrapartida a uma televisão e rádio surdas a qualquer novidade sonora.

No Brasil politizado de hoje, é quase impossível assistir um concerto sem alguém, por vezes o próprio vocalista, puxar o grito de guerra: “Fora Temer!”. Após o impeachment de Dilma Rousseff, os artistas se juntaram em repúdio ao governo de Michel Temer, e transformaram as novas composições em resistência ao presidente, e à onda conservadora que domina o Sudeste desde 2016.

Algumas marcas astutas perceberam esta lacuna e investiram na narrativa do novo país independente, como a Natura, marca de cosméticos, que tem agora uma importante editora (Natura Musical) e um palco (Casa Natura Musical). “Marcas precisam de boas ações de mercado, e os artistas tem o talento e a criatividade”, sugere Rincon. No cenário carioca, as marcas começam a testar o terreno, e uma forma excelente de entender as diferentes ramificações de viver de canções em 2017, é seguir a banda Mohandas, de BEL e Micael Amarante. Enquanto a compositora BEL lançou o envolvente Quando Brinca, Micael foi pela via institucional, e tem agora uma banda chamada Flor de Sal, exclusiva para a loja de roupa Farm, o mesmo estabelecimento que pede para as clientes “farmetes” seguirem “inspiralooks” e terem bom “Farmaastral”. Já estão a imaginar como seria a banda da Bershka?

Apesar da boa vontade, existe sempre um fator tóxico que afasta outras marcas e instituições de abraçar a produção massiva de música independente, e esse fator são as posições políticas demarcadas pela maior parte dos músicos. No Brasil politizado de hoje, é quase impossível assistir um concerto sem alguém, por vezes o próprio vocalista, puxar o grito de guerra: “Fora Temer!”. Após o impeachment de Dilma Rousseff, os artistas se juntaram em repúdio ao governo de Michel Temer, e transformaram as novas composições em resistência ao presidente, e à onda conservadora que domina o Sudeste desde 2016, pelas mão de João Dória (Prefeito de São Paulo) e o Bispo Marcelo Crivella (Prefeito do Rio de Janeiro). Porém, num fabuloso troque de magia, a banda sonora que ilustra novelas e horas parado no trânsito, parece ter sobrevivido incólume a todas as convulsões sociais. “As pessoas de forma errónea não associam o discurso engajado ao entretenimento, no meu ponto de vista só o fato de ser música já se trata de algo recreativo, mesmo com críticas sociais” defende Rincon, “sou otimista nesse sentido, imagino que é questão de tempo essa mudança”.

[“Fica Fácil Assim”, de BEL:]

O optimismo do rapper de Galanga Livre faz sentido para quem vive dentro da imersão efervescente da música indie, onde uma MPB moderna recria as regras do ritmo brasileiro (Céu, Luísa Maita, Curumin, Iara Rennó, Tulipa Ruiz) e floresce um movimento rico de expressão LGBT (Rico Dalasam, Liniker e os Caramelows, As Bahias e a Cozinha Mineira). Quem esteve no Porto durante o último Primavera Sound viu a força da nova música paulista, na apresentação de A Mulher do Fim do Mundo, na voz de Elza Soares. O álbum é agora um protótipo para o que deve ser a música brasileira hoje, um conjunto de canções de resistência, com base na reinvenção sonora, e bancado por marcas (gravado nos estúdios Red Bull Station e lançado pela Natura Musical). A sambista veterana conseguiu fazer convergir o samba sujo de Douglas Germano com a proposta avant-garde de Metá Metá, sempre dançando aos metais delirantes de Bixiga 70. Elza mergulhou de cabeça num reduto musical de São Paulo, e podia ter feito o mesmo em tantos outros refúgios que fazem a produção brasileira viver seu melhor momento, conseguindo a proeza de fazer um álbum fundamental e ainda emocionar nossos ouvidos de colonizadores portugueses. Este é o caminho.

Sul

“Eu preciso encontrar um lugar legal pra mim” suplicava Júpiter Maçã nos anos 90, “Tem que ter um som legal/ Tem que ter gente legal/ E ter cerveja barata”, e claro, que esse pessoal “LSD queira tomar/ E curta Syd Barrett e os Beatles”. Se Júpiter Maçã, alter ego de Flávio Basso, ainda fosse vivo, não precisava de procurar muito longe e cantar o hino “Um Lugar Do Caralho”, bastava visitar sua terra natal de Rio Grande do Sul, hoje anfitriã da editora Honey Bomb Records, porto refúgio para som legal de gente legal, ao bom gosto Syd Barrett.

[“Um Lugar do Caralho”, de Júpiter Maçã:]

https://www.youtube.com/watch?v=JXpSnv-VtTk

“Desde 2014 frequentamos festivais, organizamos eventos pelo Brasil, lançamos bandas daqui e de outras regiões do país, e vamos fomentando tudo isso do jeito que sentimos ser o mais verdadeiro”, nos garante Jonas Bender Bustince, líder da editora gaúcha, sendo que “gaúcho” não implica que sejam primos de Ronaldinho, somente que nasceram em Rio Grande do Sul, principal estado da menor região brasileira.

“Eu mesmo sou músico, produtor, assessor de imprensa, roadie e o que mais precisar fazer”, explica Jonas sobre os homens de sete instrumentos que compõem a trendy Honey Bomb Records, casa da banda psicadélica Catavento, a gente legal que faz músicas de reverb, lo-fi e até a imprescindível atitude blasé e bonés coloridos à la Mac DeMarco. “Aqui no selo somos todos músicos e também gestores da nossa própria criação, trabalhamos com agregadores na parte de distribuição e também comunicação”, diz. “É uma utopia que batalhamos para manter todos os dias firme”. Entre Rio Grande Sul e o São Paulo é quase a mesma distância que Lisboa e Paris, agora façam as contas de quanto estes gaúchos têm de galgar para tocar em grandes palcos, onde já fizeram parcerias com a editora paulista Balaclava Records, a mesma que lançou aqui os vila-condenses Sensible Soccers.

Para a geração anterior, a cara da região é o “rock gaúcho”, que dominou a exportação musical nos anos 80 e 90, por ilustres como Engenheiros do Hawaii, Garotos da Rua, Wander Wildner, Júpiter Maçã e culminando em Cachorro Grande. Mas isso eram tempo de rock FM, e o momento agora é de reflexão, da região procurar novamente qual é a sua cara.

Rio Grande Sul é a “Europa brasileira”, apelido tosco que faz algum sentido face às temperaturas negativas, bons indicadores sociais e uma população de descendentes alemães e italianos, que deu ao mundo Gisele Bündchen. A música de raiz é a “nativista”, um folk regional sobre a vida de campo, modernizado hoje por bandas como Cuscobayo, outra da Honey Bomb. “Tem uma pegada regional folclórica sem soar tradicionalista, com letras politizadas e libertárias”, descreve Jonas sobre a banda. “Acho que eles tem a cara do Rio Grande Sul atual.” Para a geração anterior, a cara da região é o “rock gaúcho”, que dominou a exportação musical nos anos 80 e 90, por ilustres como Engenheiros do Hawaii, Garotos da Rua, Wander Wildner, Júpiter Maçã e culminando em Cachorro Grande. Mas isso eram tempo de rock FM, e o momento agora é de reflexão, da região procurar novamente qual é a sua cara.

Sara Não tem Nome

Além da Honey Bomb, a banda mais proeminente são os Apanhador Só, que lançaram agora “Meio que tudo é um”, assim como CCOMA, de ritmos techno-jazzísticos, mas mais que tudo é um som global que não representa particularmente a região. “Aqui temos um histórico muito forte de contracultura, festivais utópicos que acontecem no meio da natureza”, reflete sobre o que seria o som do Sul: “O sotaque, o hibridismo fronteiriço e outras tantas características daqui tornam este lugar peculiar para a criação de música, e isso vai muito além do rock gaúcho”.

[“Sol da Dúvida/Sopro”, de Apanhador Só:]

Em Porto Alegre, capital do estado, estão os grooves de Wannabe Jalva, o pop rock de Dingo Bells e a banda com o nome mais incrível da região: Não ao Futebol Moderno. Porém, para entender como o som sulista pode evoluir, vejamos o exemplo de Ian Ramil, filho de um prestigiado compositor de música nativista (Vitor Ramil), que incorpora o rock gaúcho, mas de forma totalmente subversiva, ao cantar “O mundo é um skinhead eu sou um gay”, e a ganhar no caminho um Grammy Latino. Depois tem o fortuito percurso não independente, trilhado por Filipe Catto, que desenvolveu um MPB meio Elis Regina, meio nativista, que convenceu a Universal Music a assinar.

Do Sudeste para o Sul, encontramos uma realidade quase infinita de produção independente, mas a questão que fica é sempre a mesma: como quebrar o teto de vidro e ser ouvido por 207 milhões de habitantes? Uma resposta possível vem mesmo do Sul, de Curitiba, e são apenas duas palavras: Karol Conka. Além da operação policial “Lava-Jato”, a cantora é o segundo acontecimento em Curitiba que domina por completo os televisores das casas brasileiras.

[“Boa Noite”, de Karol Conka:]

“Karol Conka realmente é um fenómeno”, confirma Jonas, “falando em quebrar barreiras ela é sem dúvidas um exemplo a ser seguido”. A rapper estreou-se independente em 2013 com Batuk Freak e hoje é o rosto da mulher negra brasileira, omnipresente em novelas, anúncios, passarelas, rádio e dicas de beleza, consta inclusive que demora 12 horas para tratar do cabelo rosa-choque. “Existem atalhos, mas quero que a arte, que a música sempre saia ganhando e protagonizando”, conclui Jonas sobre como partir o teto de vidro. Com Conka, será que foi sorte, talento ou vendeu a alma para a rede Globo? Só o tempo vai saber responder, mas é certo que existe uma fome insaciável no Brasil para fugir da mesmice pasmaceira das duplas sertanejas, mesmo que ainda ninguém saiba disso.

Nordeste

Se aprendemos na escola que os portugueses “descobriram” o Brasil, passo a defender a tese que os BaianaSystem inventaram a música jamaicana. Lembram-se de quando Pedro Álvares Cabral desembarcou na Bahia, há 500 e picos anos (claro que não), e sugeriu fazer a primeira missa? É quase a mesma importância iconográfica que hoje a principal banda brasileira faz nas ruas de Salvador, com nativos dançantes e um altar sagrado, todos em devoção ao sound system. Playsom e Ámen. Tal como nos guetos de Kingston, empilham uma parede de colunas na rua e protestam pela justiça social, numa região devorada pela miséria, onde 60% das crianças estão em estado de pobreza. Estes são os profetas do “samba-dub-reggae”, “samba-reggae-reggae”, ou até “samba-rock-reggae”, como cantam em “Barra Avenida, Pt. 2”, e podem não ter inventado a música jamaicana, mas foram os primeiros que entenderam que o Nordeste é um imenso sound system.

“Pra mim é música de resistência, artistas que fazem parte de um momento muito delicado que acontece no nosso país.”, conta Russo Passapusso ao Observador sobre a atualidade musical brasileira. “Geralmente nesses momentos encontramos muita verdade, podemos entender de forma mais clara as inspirações dos compositores, e neste convívio musical é inevitável, as relações das canções com a realidade do povo estão cada vez mais unidas.” Eloquente, o vocalista dos BaianaSystem tem encabeçado a missão de ocupar as ruas, de transportar a fusão sonora baiana para o discurso público, desenvolvendo no álbum Duas Cidades a narrativa de um país repartido entre o rico e pobre, sagrado e profano, com a cidade de Salvador refém da exclusão social e especulação imobiliária.

[“Playsom”, do BaianaSystem:]

O amor que os portugueses sentem pela Bahia não é brincadeira, e qualquer pessoa que já dançou no compasso e levantou poeira sabe que o axé sempre foi febre lusitana, seja pela imagem das pernas bronzeadas de Ivete a sambar furiosamente no carnaval, ou pelo nirvana do moinho abandonado em mar grande alto astral. Porém, a Bahia de 2017 já é também outro carnaval. “Temos que separar o entendimento do axé industrial — que tornou-se um forte mercado e explorou os ouvidos ao ponto de afastar a música do entendimento de convívio social das pessoas — do axé como representação cultural, como uma síntese criada por compositores que bebiam em diversas fontes como samba reggae, galope, samba junino, dentre outras influências regionais”, explica Russo.

O axé industrial que anima nossas festas de casamentos é uma contradição, celebra a dança e as religiões afro-brasileiras mas convive na exclusão social que é o carnaval baiano. Enquanto Ivete está a cantar no trio elétrico, quem comprou o abadá (T-shirt temática) fica dentro de um recinto fechado à volta do trio, dividido por cordinhas, criando a imagem desconcertante de negros e brancos separados, tema recorrente da humanidade. Por outro lado, a concepção do sound system não permite qualquer diferenciação social, e quando o trio elétrico dos BaianaSystem (conhecido como Navio Pirata) percorre as avenidas, o Brasil vive uma das expressões culturais mais vibrantes da história atual, um alívio de dança coletivo, que para entender na totalidade só mesmo assistindo em primeira mão. “Outros caminhos tiveram que ser trilhados pelos músicos da Bahia, e os BaianaSystem também é a união de pessoas insatisfeitas com os estereótipos que temos aqui”, explica. “O interessante é que muitos ouvintes também estavam insatisfeitos com os caminhos previsíveis e entraram na nossa dança.” Além de Russo, outros músicos têm contribuído para transformar a Bahia novamente num polo de renovação, como o veterano Lucas Santtana e o indie Giovani Cidreira.

Assim como Otto, Siba faz a ligação do Manguebeat (movimento dos anos 90 em Pernambuco que dominou cenário musical alternativo) com os dias de hoje, dando espaço para aparecer uma nova geração de músicos, sempre com o pé na tradição de maracatu e frevo, como Mombojó e os Tagore.

Este ano, com cada vez maior exposição, os BaianaSystem passaram a atração oficial de carnaval, no afamado circuito Barra-Ondina, sem cordinha mas com transmissão televisiva. Entre os mandamentos não escritos da festa está sempre o “não farás protestos políticos”, o que para Russo não foi entrave suficiente para puxar um coro tremendo de “Fora Temer”. No Lollapalooza em São Paulo repetiu a receita. “Vemos nos jornais o que está acontecendo no mundo todo e percebemos que o nosso país está seguindo essa tendência nefasta, golpista e aproveitadora”, defende Russo, “a grande maioria do povo está lutando para sobreviver, e por estar no meio do fogo cruzado da comunicação de massa não consegue reagir de forma coerente”.

Através da banda, Russo passa sua mensagem de resistência, contra o atual presidente do Brasil, e contra os “paneleiros”, sendo que os “paneleiros” não é provavelmente o que está a pensar, mas quem bateu panelas em frente à TV quando Dilma Rousseff discursava, como protesto a favor do impeachment. Hoje as panelas estão silenciadas. “É um momento muito delicado, a música comercial não toca nesses assuntos pois tem interesses de mercado”, sugere, “e os produtores e músicos que caminham atrás de hits só colaboram com a cegueira da nossa população”.

Galanga Livre

RENATO STOCKLER

“Quando ouço uma música nordestina respirando no meio de outras canções do nosso país, veja a nossa capacidade criativa de renovação, existe uma força ancestral que remete à fé, esperança e alegria do nosso povo”. A paixão de Russo pela renovação musical do Nordeste transparece na canção “Cigano”, onde participa Siba, um dos responsáveis pela inovação em Pernambuco, estado fronteira da Bahia.

[“Preparando o Salto”, de Siba:]

Assim como Otto, Siba faz a ligação do Manguebeat (movimento dos anos 90 em Pernambuco que dominou cenário musical alternativo) com os dias de hoje, dando espaço para aparecer uma nova geração de músicos, sempre com o pé na tradição de maracatu e frevo, como Mombojó e os Tagore. “Enfim, em Pernambuco acha-se mais vaidade que em Lisboa”, resumia o procurador Fernão Cardim para a coroa portuguesa, e com razão, pela cidade de Recife o sound system é feito da forma mais orgânica e alegre, pelas vozes das pessoas, que cantarolam enquanto vão ao seu dia.

Fora Bahia e Pernambuco, não podemos esquecer a cidade de Fortaleza. Aqui foi onde nasceu o mito Wesley Safadão, ex-Garota Safada e cantor de maior sucesso popular, mas também é a base dos Cidadão Instigado, a banda rock por excelência do Nordeste. “Na minha opinião, é importante não perder o foco nem a identidade do trabalho em prol do mercado”, defende Russo, “nossa arte é um trabalho minucioso que muda de acordo com o meio em que vivemos.” Se nascer na capital do forró pode ser uma grande desvantagem, Fernando Catatau dos Cidadão Instigado soube transformar isso em benefício, e em sua roda gira toda a cena local independente. Catatau guiou músicos como Soledad e Jonathan Doll, acompanhou o reconhecido rapper Don L e ainda faz nos tempos livres a banda Praia do Futuro, uma espécie de Morphine à brasileira.

[“Besouros e Borboletas”, dos Cidadão Instigado:]

De facto, a música do Nordeste “abastece os ouvidos e as almas dos quatro cantos do nosso país”, como nos diz o vocalista de BaianaSystem, e conhecer a cultura desta região é conhecer o Brasil. Nestas linhas foi impossível alcançar toda extensão musical, ficando de fora importantes redutos, desde a cena rica do Rio Grande do Norte a Alagoas, onde performa o rei dos hipsters, o fantástico Figueroas. Na liderança segue firme a banda de Russo Passadusso, que este ano ganhou dois prémios da Música Brasileira, normalmente reservados a gigantes sexagenário da MPB. “Valorizamos os prêmios, mas não acreditamos que estes tenham o poder de quebrar algum tipo de barreira entre artista e público”. Já sabemos, o palco do Nordeste não está nos prémios televisivos. “A proximidade com o grande público se dá na rua.”

Norte

Quem diria que um fio dental de croché seria tão importante para a história do Pará, principal estado do Norte. Quando o Mestre Vieira lançou o Lambadas das Quebradas em 1978, com a mítica capa da bunda bronzeada, criou o género da “guitarrada” dentro da música regional mais desacreditada do país, e alguns entendidos defendem ainda que o álbum pode ser também apontado como o criador da “lambada”, outro estilo proeminente da região. Hoje, a guitarrada e lambada são as armas favoritas de Felipe Cordeiro, o músico paranaense que conseguiu desconstruir o elemento piroso e apimentar com uma sensibilidade indie, sempre nas temperaturas altíssimas de quem usa sem medo um fio dental de croché. “O traço que melhor define o som do Pará é o calor”, explica o músico ao Observador, “uma estética do calor, dançante e pulsante”.

[“Problema Seu”, de Felipe Cordeiro:]

O calor em Belém do Pará é muito mais do que mero recurso metafórico, não é incomum superar os 40 graus, e talvez por essa afinidade caliente, o som do caribe sempre foi a grande preferência da população. “A música de traço caribenho, que historicamente se desenvolveu a partir do diálogo com países como Guiana Francesa, Martinica, Guadalupe, Colômbia, Peru, etc. é a cena que tem se afirmado com mais força”, confirma Felipe, “e o carimbó, ritmo local de origem afro-indígena, é a grande matriz do estado do Pará”.

Entre o carimbó, bolero, cumbia, lambada e guitarrada, a região foi gradualmente criando seu próprio ritmo, que talvez tenha encontrado o expoente máximo em Dona Onete, outro projeto apoiado pela paulista Natura Musical. “Tem um conceito que eu comecei a definir a partir da afirmação da Dona Onete mundo afora, o conceito é a ‘Jambusfera’, uma música que faz tremer o corpo e abalar as estruturas”, sugere. Aos 79 anos, se alguém abala as estruturas é Dona Onete, uma jovem artista que é também professora de história, e canta sem rodeios sobre seu poder de sedução. Felipe é parceiro frequente de palco, e os dois já espalharam a dança tropical em Portugal, tendo Dona Onete apresentado o álbum Banzeiro no Festival MED em Loulé, produzido pelo ilustre Pio Lobato, mestre da guitarrada.

[“No meio do Pitiú”, de Dona Onete:]

Para entender a cultura musical da região é fundamental definir a palavra “brega”, que se traduz livremente para o nosso piroso ou foleiro. “Brega é um substantivo, uma estética, uma dança, não é entendido no Pará como um adjetivo, ou seja, como juízo de valor”, explica Felipe, lembrando como a indústria musical do Sudeste batizou o estilo “brega” com objetivo claro de fazer um juízo de valor. O brega e o brega pop, popularizado no mundo pela Banda Calypso, acabou por abraçar uma nova cultura techno, possibilitada pela compra massiva na região de teclados com música programada.

Felipe Cordeiro

Julia Rodrigues

“A rigor, o technobrega é um brega eletrónico, e o brega no Pará é um ritmo”, define o músico sobre o estilo que levaria finalmente a região a ter uma cultura totalmente autoral, e tão bizarra e fascinante como o fio dental de croché. Em bailes espalhados pela cidade de Belém, os DJs decidiram criar instalações retro futuristas com montanhas de colunas de som, popularizando esses eventos como “festas da aparelhagem”, tocando uma coisa que aos nossos ouvidos portugueses é meio pimba, meio funaná. Assim nasce o technobrega, e as variações recentes como o eletromelody, baseado nas batidas de Benny Benassi e Daft Punk, prestigiado sobretudo pela dupla Gang do Eletro.

“Fazer música no Brasil é também um exercício permanente de descolonização, creio que a música popular brasileira tem essa função”, reflete Felipe Cordeiro, para lembrar como este país respeita a tradição musical e a transforma livremente, sem estar particularmente preocupado se o resultado ficou foleiro, ou se tem valor crítico.

São três mil quilômetros que separam Belém de São Paulo, distância mais do que suficiente para obrigar os músicos a criar seu próprio refúgio de produção independente. “No Norte as coisas são ainda mais independentes, se você quiser trabalhar pra conquistar o país inteiro precisar ultrapassar a barreira regional”, diz-nos, acrescentando no entanto que “hoje em dia a produção musical do Pará se afirmou como uma das cenas mais criativas, originais e vigorosas do país, então agora está todo mundo de olho”.

Além das lambadas do Felipe, músicos como Sammliz, STROBO, Lucas Estrela e Jaloo se tornaram embaixadores da nova geração paranaense, totalmente enraizados na bagagem folclórica, mas com as antenas apontadas para 2017. “Fazer música no Brasil é também um exercício permanente de descolonização, creio que a música popular brasileira tem essa função”, reflete Felipe, para lembrar como este país respeita a tradição musical e a transforma livremente, sem estar particularmente preocupado se o resultado ficou foleiro, ou se tem valor crítico. E nós? Nós pimba.

Centro-Oeste

“Não há nada como o sol daqui/
Mesmo sem mar”

E não há nada como “Benzin”, canção sobre a beleza e isolamento sufocante de Goiânia. “Eu juro que já quis fugir/ Ir pra não voltar”. Os versos foram escritos pelos Boogarins e com uma perninha de Salma Jô, vocalista de Carne Doce, que no vídeo do single passeia pela transcendente Chapada dos Veadeiros, símbolo bucólico do Centro-Oeste. As duas bandas são culpadas por colocar a região no mapa do cenário independente e deixar entrar uma lufada de ar fresco no ar poluído pelas duplas sertanejas, o gigante que emerge de Goiânia para engolir as ondas sonoras de todo o Brasil. Quase escondidos na própria casa, longe dos palcos onde as duplas reclamam de romances falhados, uma destas bandas conseguiu conquistar o mundo e apresentar ao país uma nova proposta de melodia. E isso tudo, mesmo sem mar.

[“Benzin”, pelos Boogarins:]

“Aqui temos festivais com mais de 20 anos de existência e vimos muitas bandas a ganhar projeção nacional e mesmo internacional”, nos descreve Salma Jô. “O Boogarins é até hoje o maior nome que Goiânia produziu.” Antes de Carne Doce lançar o primeiro álbum em 2014 e gravar a versão de “Benzin”, os Boogarins já tinham assinado com editora norte-americana Other Music e eram a grande promessa da música indie brasileira. Na privacidade do quarto de Benke Ferraz, guitarrista, desenvolveram uma forma diferente de mexer nas harmonias brasileiras, os “gringos” gostaram e hoje são um portento nacional, com visitas recorrentes a Portugal, até já se ouve por vezes um “fixe” quando agradecem os aplausos.

Imparáveis, com média de um concerto em cada três dias, criaram inconscientemente uma onda de bandas psicadélicas de camisas floreadas, ou nas palavras do baterista Ynaiã Benthroldo para a TRIP: “Essa moda pra mim é coisa de new-hippie, um efeito na guitarra e já acham que é psicodélico”. Descrevem o som como “shitty jazz”, desenvolvido à exaustão no último Lá vem a Morte, um álbum mutante, com tons de bossa lisérgica e sambas tristes. O mundo é deles, mas como profetizam em “Benzin”, acabam sempre voltando a Goiânia, onde Carne Doce prossegue a missão evangelizadora, enquanto os miúdos viajam pelas galáxias.

Apesar de inesperada, a emergência de Boogarins e Carne Doce na cidade do sertanejo não é totalmente sem sentido. Antes de desenvolverem a “lisergia de 69”, seguiam atentamente a cena pesada de Goiânia, girando em volta da editora Monstro Discos e bandas como Overfuzz e Hellbenders.

“O desafio aqui é ampliar o público e não perder o timing”, explica Salma, “estamos ainda divulgando o Princesa, que lançamos ano passado, tem muitas cidades e estados que ainda não visitamos e que precisamos ir”. Apesar de ainda não ter a repercussão de Boogarins, a banda de Salma tem se expandido aos poucos através deste radiante Princesa, um manifesto de assertividade feminina no corpo performático da vocalista, e ao mesmo tempo, um diário íntimo de uma relação que além de lírica é real, pois Salma é a mulher de Mac, o guitarrista. “Não vai nascer/ Porque eu não quero/ Porque eu não quero e basta eu não querer” canta em “Artemísia”, sobre um dos temas mais urgentes do Brasil, o aborto ilegal, que mata todos os dias quatro mulheres. Na cabeça de Salma está uma revolução dos costumes, e Carne Doce encontrou finalmente seu espaço nos concorridos palcos do Sudeste, na boa companhia de outras bandas goianienses como BRVNKS, Lutre e Peixefante.

Apesar de inesperada, a emergência de Boogarins e Carne Doce na cidade do sertanejo não é totalmente sem sentido. Antes de desenvolverem a “lisergia de 69”, seguiam atentamente a cena pesada de Goiânia, girando em volta da editora Monstro Discos e bandas como Overfuzz e Hellbenders. “Há uns anos até que tinha uma linguagem comum entre as bandas, predominava o stoner e o metal”, lembra. Nesse recanto dominado pelas botas biqueira de aço surge o inicialmente modesto Festival Bananada, que hoje se tornou no principal evento independente do país. “Os festivais são a primeira grande meta de quem tem uma banda na cidade, e são também onde primeiro temos a oportunidade de assistirmos ídolos, grandes shows, inspirações”, diz. “É onde quem não se identifica com a cultura mainstream sertaneja se encontra, é onde essas expressões mais autênticas são celebradas, na moda ou na música”.

[“Artemísia”, pelos “Carne Doce”:]

Isolado no meio do Brasil, aqui o clima festivaleiro é real e fundamental, assim como no Festival Se Rasgum em Belém do Pará, DoSol em Rio Grande Norte, ou No Ar Coquetel Molotov em Recife. Nestes últimos anos, os festivais independentes criaram um círculo de apoio mútuo, a única forma que as terras excluídas encontraram para celebrar os músicos dispersos no anonimato do Bandcamp. Mesmo em Brasília, cidade vizinha de Goiânia, existe um clima de orfandade pós-Legião Urbana, e os festivais do vizinho são o único jeito de apresentar alternativas atuais ao rock anos 80 que assolou a capital do Brasil. “Goiânia é a cidade que tem a cena mais forte, mais forte até do que Brasília, de onde saíram grandes referências do rock nacional”, confirma Salma.

A cena da cidade de Legião Urbana parece mesmo deserta, ou talvez não, como podemos ter certezas com a extensão absurda do maior país da América Latina? “A música brasileira cantada em português está num excelente momento, a dificuldade é circular, porque o país é muito extenso, com algumas capitais bem distantes umas das outras”, assegura: “Alguns estados, como o nosso geram muitas bandas, mas tem um circuito pequeno de lugares para tocar.” A solução para o Brasil independente é esperar, o tempo vai ser a arma final contra o status quo obsoleto celebrado pelas televisões. Os indícios estão aí. Ao lado das marcas, público e com olhos dentro do furacão tumultuoso que é este país, os próximos 40 anos de música vão marcar os capítulos seguintes da novela chamada Brasil. Não perca.

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