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[artigo publicado a 10 de novembro de 2019, quando Carlos do Carmo se despediu dos palcos, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa]
Quando eu nasci, nos finais da década de 60, Carlos de Carmo era já um clássico. Era dele uma das vozes que me fui habituando a ouvir lá em casa nas velhas cassetes (sim, essas de fita), ao lado de Amália, dos “seus” amados Frank Sinatra e Jacques Brel, e de outros, alguns proibidos àquela altura, às vezes com o som baixinho.
Quando entrei no fim da década de 70, início da de 80, ele ficara-me apenas no ouvido enquanto eu descobria as novidades que chegavam a Portugal, algumas trazidas por amigos de Londres ou de outras paragens, como Talking Heads, Dire Straits ou U2, explorava Police, David Bowie, Lloyd Cole ou Leonard Cohen, e mergulhava no Brasil que ia de Chico Buarque a Caetano Veloso.
Quando cheguei a Lisboa, antes dos meados da década de 80, uma provinciana com poucas e curtas incursões na capital, surpreendi-me por afinal conhecer tão bem alguns recantos da cidade graças aos fados de Carlos do Carmo. De me lembrar de tantas letras em tantas ruas e em tantas paisagens. De me ter (re)apaixonado pelo fado (vadio) quando me aventurei pelo Bairro Alto e Alfama. De saber afinal de cor a maioria das suas canções.
Descobri que fora também ele quem me tinha feito ir à procura de mais sobre alguns autores. Sobre alguns poetas. Sobre alguns músicos. Por gostar tanto de algumas letras (dele e das de Amália), quis conhecer mais de Ary dos Santos. De Alexandre O’Neill. De Fernando Pessoa. De tantos mais. E de uns passei a outros sem parar.
Foi por causa do que diziam dele também, e de Amália, que muito cedo me questionei sobre rótulos políticos. Achava estranho colarem-na a ela a Salazar, só porque o ditador a usava como propaganda. E a ele ao PCP, apenas por ter assumido a sua ideologia e a amizade com Cunhal. Ouvindo os seus fados era fácil perceber que o que ambos cantavam era também uma outra música de intervenção, aquela que mostrava um regime que manteve um país fechado ao mundo por 40 anos e que revelava como a democracia não tinha sido travada depois de conquistada.
E de repente percebi que Carlos de Carmo não era um fadista clássico. O fato tradicional que sempre usou no palco só servia para o dignificar a ele e sobretudo fazer com que ele dignificasse o fado. Tradicionais eram Alfredo Marceneiro, Maria Teresa de Noronha, Carlos Ramos ou a sua mãe, Lucília.
O fadista da transição que não deixou morrer o fado
O Carlos — desculpe tratá-lo assim, mas são mais de 50 anos de convivência —, é um fadista de transição. Sem ele não haveria fado moderno. O primeiro single que gravou — com o clássico “Loucura” — foi logo um desafio à forma tradicional de interpretação do fado, com o quarteto de Mário Simões, acompanhado de piano, baixo, guitarra elétrica e um coro de vozes femininas.
Depois mudou ainda mais nos anos 70 ao juntar-se a Ary dos Santos, que lhe compôs os maiores êxitos. Alguns épicos. Lançou um conjunto de composições musicais inovadoras e trouxe diversos novos autores para o fado, modernizando-o, fazendo-o acompanhar os tempos, nunca deixando que ele ficasse no passado, nunca o deixando morrer. Lutando pelo museu que hoje o eterniza.
Foi por isso que criou uma ligação aos novos nomes do fado e fez nascer não só uma nova geração de fadistas como assistiu à atual explosão do fado e à atual paixão dos jovens pela sua música de sempre, que deixou de ser uma coisa de velhos. Viu nascer o tal fado moderno. O fado mestiço de Mariza. O fado com mais rock de Ana Moura. O fado como e com quem ele quiser que seja de Camané. O fado em dueto de Carminho com Chico Buarque. Para todos eles, Carlos do Carmo não foi o pai. Não foi o professor. Foi o inspirador que esteve sempre lá, apoiando-os, promovendo atuações conjuntas, dando-os a conhecer, levando-os pela mão.
Sem eu quase dar conta, Carlos do Carmo também esteve sempre na minha vida. E sem ela dar conta, também na da minha filha. Primeiro porque foi ouvindo-o ainda em cassetes, depois em CD e por fim já via internet. Os seus fados aparecem sempre no meio nas minhas playlists e descobri que estão também nas dela. Não sei se ela está consciente ou não disso. Mas um dia talvez o perceba, como eu.
E como muitos. Porque não terá sido por acaso que mal anunciou que se ia despedir dos palcos, os seus dois concertos (o da semana passada no Porto e o deste sábado à noite em Lisboa) esgotaram em poucas horas. Estava lá, como sempre atrás da cortina, Judite, a companheira de há 55 anos. Estavam os filhos e os netos (um deles campeão mundial de judo, como anunciou com orgulho). Estavam os amigos, os velhos e novos fadistas, os médicos e os muitos fãs. Estavam Marcelo, que em 2016 o fez Grande-Oficial da Ordem do Mérito, Costa e a ministra da Cultura, Graça Fonseca, que lhe deram a medalha de mérito cultural do Governo, Medina, que lhe entregou as chaves de Lisboa, Guterres e Centeno (embora não no camarote presidencial, mas que ouviu do fadista os apartes mais bem humorados).
Marcelo, as honras de Costa e Medina e as piadas a Centeno
O concerto começou às 21:48, atrasado como ele não gosta. Quando o pano subiu, ele estava de braços cruzados no peito, em sinal de abraço, e o público levantou-se imediatamente de pé, no primeiro aplauso de homenagem.
No ecrã gigante apareceu um jovem Carlos do Carmo a explicar porque cantava, num velho programa da RTP, “Canção é Espectáculo” (ainda com o ‘c’), e só depois as guitarras começaram a tocar um apropriado “Vim para o Fado e Fiquei”. Porque ele ficou.
O palco tinha apenas uma mesa com um xaile negro com rosas vermelhas a servir de toalha. Antes do segundo fado, “Gaivota”, houve mais um vídeo de uma velha entrevista sua, em que dizia que não cantava só fado, cantava o que quisesse. Claro que cantou. Mas ali, naquele palco e naquela noite em que fazia a retrospetiva dos seus últimos 50 anos de carreira, optou por “Canoa”, com o refrão cantado em coro pela plateia, primeiro em tom baixo por respeito, depois já sem vergonha e com garantia de ninguém ser taxado pelo ministro das Finanças fosse qual fosse o tom de voz.
De Ary dos Santos, à mulher que “ama” e à mãe
Agradecimentos às personalidades feitos, vieram “Duas Lágrimas de Orvalho” e depois, dedicado à mulher que “ama”, “Bailado”. Entrecortando fados com palavras sobre a quem (acha que) deve “obrigados” na carreira, continuou com “Pontas Soltas” até Ary dos Santos, o seu maior parceiro de letras, surgir no ecrã a recitar “Estrela da Tarde”. Ele respondeu-lhe, já sentado, com “Os putos”.
A homenagem seguinte foi à mãe Lucília, escolhendo do seu repertório “Olhos Garotos”. A escolha teve direito a explicação ternurenta. Contou que depois de ter decidido parar de cantar aos 60 anos, a mãe continuou a fazê-lo apenas para os netos, os filhos de Carlos do Carmo, que a adoravam.
Os primeiros 40 minutos de espetáculo passaram num ápice, e ele, aconselhado há muito pelos médicos a não cantar mais de quatro fados seguidos, e tendo sempre dito que não queria que este adeus aos palcos mostrasse quaisquer sinais de decadência, fez um intervalo. Não é que lhe importasse acabar em palco, tombar para o lado, com o avisaram os “doutores” que podia acontecer e que o mandaram “lixar” quando lhes disse que tal coisa seria “épica”. Mas a verdade é que lhes obedeceu — talvez por eles estarem na plateia e nele o cansaço já se fazer sentir, que os 80 são comemorados já em Dezembro.
Enquanto ganhou fôlego, viu-se um vídeo da parceria com Bernardo Sassetti e depois ouviu-se um instrumental dos seus músicos de há muito (José Manuel Neto, na guitarra portuguesa, Carlos Manuel Proença, na viola de fado, José Marino de Freitas, na viola baixa, e João Fonseca, como clarinista). Houve ainda tempo para o vermos receber o Grammy Latino que recebeu em 2014, e a cantar o seu ídolo Sinatra.
Quando voltou ao palco, veio com o “Homem na Cidade” que tanto cantou. E foi com ela, a sua cidade, que fez (quase) toda a parte final. Do “Bairro Alto” à versão da “Casa da Mariquinhas”, com letra “brejeira” de Vasco Graça Moura e música de Paulo de Carvalho, numa versão que fará parte do novo disco que está a gravar, com saída marcada para Janeiro e que contará também com Herberto Hélder, Hélia Correia, Jorge Palma e Pedro Abrunhosa. Depois, algumas vezes sentado, outras dando uns pezinhos de dança em desafio aos médicos, cantou “Cheirinhos”, o “Cacilheiro”, o “Homem das Castanhas” e, claro “Lisboa Menina e Moça”, a cidade mulher da sua vida, por suas mãos despida, que o seu fado soube reinventar.
O “Príncipe Republicano” que quis dizer “Obrigado”
Pelo meio, no ecrã, foram surgindo mensagens de meio Portugal, a última de Marcelo, que lhe chamou “Príncipe Republicano”. Ele, que já citara Mia Couto sobre a morte — “Cantar, dizem, é um afastamento da morte. A voz suspende o passo da morte e, em volta, tudo se torna pegada da vida“ —, terminou com “Por morrer uma Andorinha”, já com um letreiro gigante a dizer ‘Obrigado’ atrás de si.
O homem da cidade disse assim adeus aos palcos. Mas a cidade será sempre de Carlos do Carmo. Todos os que ouvirem os seus fados reconhecerão facilmente, como eu, os recantos de menina, moça e mulher que Lisboa tem, no Tejo, nas canoas e nos cacilheiros, nos putos de outrora, nos homens das castanhas de hoje, ou até nas ainda velhinhas nos bancos do jardins e no atual Bairro Alto.
Carlos do Carmo quis dizer “obrigado” com este concerto como se tivesse alguma coisa a agradecer-nos. Pois eu não sei o que dizer-lhe. Um simples “muito obrigado” faria de mim muito mal agradecida. E eu não tenho nem a sua voz nem as letras de Ary dos Santos a ajudar-me.
Só sei que se Lisboa já não tinha o homem do adeus e naquele momento os palcos deixaram de ter o homem da cidade. Mas a cidade, o fado e a música portuguesa terão sempre Carlos do Carmo.