910kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A despedida do homem da cidade: quando Carlos do Carmo disse adeus aos palcos em Lisboa

Marcelo chamou-lhe Príncipe Republicano. Costa e Medina homenagearam-no. Guterres aplaudiu. O fadista brincou com Centeno. Ficou o obrigado num Coliseu esgotado no último concerto, em Lisboa.

    Índice

    Índice

[artigo publicado a 10 de novembro de 2019, quando Carlos do Carmo se despediu dos palcos, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa]

Quando eu nasci, nos finais da década de 60, Carlos de Carmo era já um clássico. Era dele uma das vozes que me fui habituando a ouvir lá em casa nas velhas cassetes (sim, essas de fita), ao lado de Amália, dos “seus” amados Frank Sinatra e Jacques Brel, e de outros, alguns proibidos àquela altura, às vezes com o som baixinho.

Quando entrei no fim da década de 70, início da de 80, ele ficara-me apenas no ouvido enquanto eu descobria as novidades que chegavam a Portugal, algumas trazidas por amigos de Londres ou de outras paragens, como Talking Heads, Dire Straits ou U2, explorava Police, David Bowie, Lloyd Cole ou Leonard Cohen, e mergulhava no Brasil que ia de Chico Buarque a Caetano Veloso.

Quando cheguei a Lisboa, antes dos meados da década de 80, uma provinciana com poucas e curtas incursões na capital, surpreendi-me por afinal conhecer tão bem alguns recantos da cidade graças aos fados de Carlos do Carmo. De me lembrar de tantas letras em tantas ruas e em tantas paisagens. De me ter (re)apaixonado pelo fado (vadio) quando me aventurei pelo Bairro Alto e Alfama. De saber afinal de cor a maioria das suas canções.

Imagens do concerto

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Descobri que fora também ele quem me tinha feito ir à procura de mais sobre alguns autores. Sobre alguns poetas. Sobre alguns músicos. Por gostar tanto de algumas letras (dele e das de Amália), quis conhecer mais de Ary dos Santos. De Alexandre O’Neill. De Fernando Pessoa. De tantos mais. E de uns passei a outros sem parar.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Foi por causa do que diziam dele também, e de Amália, que muito cedo me questionei sobre rótulos políticos. Achava estranho colarem-na a ela a Salazar, só porque o ditador a usava como propaganda. E a ele ao PCP, apenas por ter assumido a sua ideologia e a amizade com Cunhal. Ouvindo os seus fados era fácil perceber que o que ambos cantavam era também uma outra música de intervenção, aquela que mostrava um regime que manteve um país fechado ao mundo por 40 anos e que revelava como a democracia não tinha sido travada depois de conquistada.

E de repente percebi que Carlos de Carmo não era um fadista clássico. O fato tradicional que sempre usou no palco só servia para o dignificar a ele e sobretudo fazer com que ele dignificasse o fado. Tradicionais eram Alfredo Marceneiro, Maria Teresa de Noronha, Carlos Ramos ou a sua mãe, Lucília.

O fadista da transição que não deixou morrer o fado

O Carlos — desculpe tratá-lo assim, mas são mais de 50 anos de convivência —, é um fadista de transição. Sem ele não haveria fado moderno. O primeiro single que gravou — com o clássico “Loucura” — foi logo um desafio à forma tradicional de interpretação do fado, com o quarteto de Mário Simões, acompanhado de piano, baixo, guitarra elétrica e um coro de vozes femininas.

Depois mudou ainda mais nos anos 70 ao juntar-se a Ary dos Santos, que lhe compôs os maiores êxitos. Alguns épicos. Lançou um conjunto de composições musicais inovadoras e trouxe diversos novos autores para o fado, modernizando-o, fazendo-o acompanhar os tempos, nunca deixando que ele ficasse no passado, nunca o deixando morrer. Lutando pelo museu que hoje o eterniza.

Foi por isso que criou uma ligação aos novos nomes do fado e fez nascer não só uma nova geração de fadistas como assistiu à atual explosão do fado e à atual paixão dos jovens pela sua música de sempre, que deixou de ser uma coisa de velhos. Viu nascer o tal fado moderno. O fado mestiço de Mariza. O fado com mais rock de Ana Moura. O fado como e com quem ele quiser que seja de Camané. O fado em dueto de Carminho com Chico Buarque. Para todos eles, Carlos do Carmo não foi o pai. Não foi o professor. Foi o inspirador que esteve sempre lá, apoiando-os, promovendo atuações conjuntas, dando-os a conhecer, levando-os pela mão.

Sem eu quase dar conta, Carlos do Carmo também esteve sempre na minha vida. E sem ela dar conta, também na da minha filha. Primeiro porque foi ouvindo-o ainda em cassetes, depois em CD e por fim já via internet. Os seus fados aparecem sempre no meio nas minhas playlists e descobri que estão também nas dela. Não sei se ela está consciente ou não disso. Mas um dia talvez o perceba, como eu.

Estava lá, como sempre atrás da cortina, Judite, a companheira de há 55 anos. Estavam os filhos e os netos (um deles campeão mundial de judo, como anunciou com orgulho). Estavam os amigos, os velhos e novos fadistas, os médicos e os muitos fãs. Estavam Marcelo, que em 2016 o fez Grande-Oficial da Ordem do Mérito, Costa e a ministra da Cultura, Graça Fonseca, que lhe deram a medalha de mérito cultural do Governo, Medina, que lhe entregou as chaves de Lisboa, Guterres e Centeno (embora não no camarote presidencial, mas que ouviu do fadista os apartes mais bem humorados).

E como muitos. Porque não terá sido por acaso que mal anunciou que se ia despedir dos palcos, os seus dois concertos (o da semana passada no Porto e o deste sábado à noite em Lisboa) esgotaram em poucas horas. Estava lá, como sempre atrás da cortina, Judite, a companheira de há 55 anos. Estavam os filhos e os netos (um deles campeão mundial de judo, como anunciou com orgulho). Estavam os amigos, os velhos e novos fadistas, os médicos e os muitos fãs. Estavam Marcelo, que em 2016 o fez Grande-Oficial da Ordem do Mérito, Costa e a ministra da Cultura, Graça Fonseca, que lhe deram a medalha de mérito cultural do Governo, Medina, que lhe entregou as chaves de Lisboa, Guterres e Centeno (embora não no camarote presidencial, mas que ouviu do fadista os apartes mais bem humorados).

Marcelo, Guterres, Costa, Medina, Graça Fonseca e Centeno como espectadores especiais

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Marcelo, as honras de Costa e Medina e as piadas a Centeno

O concerto começou às 21:48, atrasado como ele não gosta. Quando o pano subiu, ele estava de braços cruzados no peito, em sinal de abraço, e o público levantou-se imediatamente de pé, no primeiro aplauso de homenagem.

No ecrã gigante apareceu um jovem Carlos do Carmo a explicar porque cantava, num velho programa da RTP, “Canção é Espectáculo” (ainda com o ‘c’), e só depois as guitarras começaram a tocar um apropriado “Vim para o Fado e Fiquei”. Porque ele ficou.

No ecrã gigante apareceu um jovem Carlos no Carmo a explicar porque cantava, num velho programa da RTP, "Canção é Espectáculo" (ainda com o 'c'), e só depois as guitarras começaram a tocar um apropriado “Vim para o Fado” e fiquei. Porque ele ficou.

O palco tinha apenas uma mesa com um xaile negro com rosas vermelhas a servir de toalha. Antes do segundo fado, “Gaivota”, houve mais um vídeo de uma velha entrevista sua, em que dizia que não cantava só fado, cantava o que quisesse. Claro que cantou. Mas ali, naquele palco e naquela noite em que fazia a retrospetiva dos seus últimos 50 anos de carreira, optou por “Canoa”, com o refrão cantado em coro pela plateia, primeiro em tom baixo por respeito, depois já sem vergonha e com garantia de ninguém ser taxado pelo ministro das Finanças fosse qual fosse o tom de voz.

De Ary dos Santos, à mulher que “ama” e à mãe

Agradecimentos às personalidades feitos, vieram “Duas Lágrimas de Orvalho” e depois, dedicado à mulher que “ama”, “Bailado”. Entrecortando fados com palavras sobre a quem (acha que) deve “obrigados” na carreira, continuou com “Pontas Soltas” até Ary dos Santos, o seu maior parceiro de letras, surgir no ecrã a recitar “Estrela da Tarde”. Ele respondeu-lhe, já sentado, com “Os putos”.

A homenagem seguinte foi à mãe Lucília, escolhendo do seu repertório “Olhos Garotos”. A escolha teve direito a explicação ternurenta. Contou que depois de ter decidido parar de cantar aos 60 anos, a mãe continuou a fazê-lo apenas para os netos, os filhos de Carlos do Carmo, que a adoravam.

O beijo à mulher, Maria Judite

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Os primeiros 40 minutos de espetáculo passaram num ápice, e ele, aconselhado há muito pelos médicos a não cantar mais de quatro fados seguidos, e tendo sempre dito que não queria que este adeus aos palcos mostrasse quaisquer sinais de decadência, fez um intervalo. Não é que lhe importasse acabar em palco, tombar para o lado, com o avisaram os “doutores” que podia acontecer e que o mandaram “lixar” quando lhes disse que tal coisa seria “épica”. Mas a verdade é que lhes obedeceu — talvez por eles estarem na plateia e nele o cansaço já se fazer sentir, que os 80 são comemorados já em Dezembro.

Enquanto ganhou fôlego, viu-se um vídeo da parceria com Bernardo Sassetti e depois ouviu-se um instrumental dos seus músicos de há muito (José Manuel Neto, na guitarra portuguesa, Carlos Manuel Proença, na viola de fado, José Marino de Freitas, na viola baixa, e João Fonseca, como clarinista). Houve ainda tempo para o vermos receber o Grammy Latino que recebeu em 2014, e a cantar o seu ídolo Sinatra.

Quando voltou ao palco, veio com o “Homem na Cidade” que tanto cantou. E foi com ela, a sua cidade, que fez (quase) toda a parte final. Do “Bairro Alto” à versão da "Casa da Mariquinhas”, com letra “brejeira” de Vasco Graça Moura e música de Paulo de Carvalho, numa versão que fará parte do novo disco que está a gravar, com saída marcada para Janeiro.

Quando voltou ao palco, veio com o “Homem na Cidade” que tanto cantou. E foi com ela, a sua cidade, que fez (quase) toda a parte final. Do “Bairro Alto” à versão da “Casa da Mariquinhas”, com letra “brejeira” de Vasco Graça Moura e música de Paulo de Carvalho, numa versão que fará parte do novo disco que está a gravar, com saída marcada para Janeiro e que contará também com Herberto Hélder, Hélia Correia, Jorge Palma e Pedro Abrunhosa. Depois, algumas vezes sentado, outras dando uns pezinhos de dança em desafio aos médicos, cantou “Cheirinhos”, o “Cacilheiro”, o “Homem das Castanhas” e, claro “Lisboa Menina e Moça”, a cidade mulher da sua vida, por suas mãos despida, que o seu fado soube reinventar.

O “Príncipe Republicano” que quis dizer “Obrigado”

Pelo meio, no ecrã, foram surgindo mensagens de meio Portugal, a última de Marcelo, que lhe chamou “Príncipe Republicano”. Ele, que já citara Mia Couto sobre a morte — “Cantar, dizem, é um afastamento da morte. A voz suspende o passo da morte e, em volta, tudo se torna pegada da vida“ —, terminou com “Por morrer uma Andorinha”, já com um letreiro gigante a dizer ‘Obrigado’ atrás de si.

No ecrã, foram surgindo mensagens de meio Portugal, a última de Marcelo, que lhe chamou “Príncipe Republicano”. Ele, que já citara Mia Couto sobre a morte — “Cantar, dizem, é um afastamento da morte. A voz suspende o passo da morte e, em volta, tudo se torna pegada da vida“ —, terminou com “Por morrer uma Andorinha”, já com um letreiro gigante a dizer ‘Obrigado’ atrás de si.

O homem da cidade disse assim adeus aos palcos. Mas a cidade será sempre de Carlos do Carmo. Todos os que ouvirem os seus fados reconhecerão facilmente, como eu, os recantos de menina, moça e mulher que Lisboa tem, no Tejo, nas canoas e nos cacilheiros, nos putos de outrora, nos homens das castanhas de hoje, ou até nas ainda velhinhas nos bancos do jardins e no atual Bairro Alto.

Carlos do Carmo quis dizer “obrigado” com este concerto como se tivesse alguma coisa a agradecer-nos. Pois eu não sei o que dizer-lhe. Um simples “muito obrigado” faria de mim muito mal agradecida. E eu não tenho nem a sua voz nem as letras de Ary dos Santos a ajudar-me.

Com os seus músicos de sempre no último concerto em palco

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Só sei que se Lisboa já não tinha o homem do adeus e naquele momento os palcos deixaram de ter o homem da cidade. Mas a cidade, o fado e a música portuguesa terão sempre Carlos do Carmo.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.