[artigo originalmente publicado a 30 de março de 2018, republicado um dia antes de a petição em prol da presunção jurídica da residência alternada, da Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direitos dos Filhos, ser apresentada na Assembleia da República]
O saco do karaté fica sempre em casa do pai, mas não é por esquecimento. Luís, 11 anos, praticante desta arte marcial há três, é empenhado e leva os treinos muito a sério. Por isso, tem progredido imenso, sobretudo tendo em conta que falta metade das vezes. Quando está com a mãe, esta não autoriza, por isso só treina quando está com o pai. A mãe também não concede alterações quando um torneio é marcado para um fim de semana em que Luís está consigo. Por isso, o karaté só acontece nas semanas do pai. Sem exceções.
Desde os dois anos que Luís vive tanto tempo em casa da mãe como em casa do pai, mudando-se de uma para outra à sexta-feira depois da escola. Não tem memória de viver com os dois juntos e cresceu sem qualquer espécie de conciliação entre as famílias de um e do outro. A residência alternada foi o regime estabelecido por decisão judicial, considerando-se o seu “superior interesse”. Apesar de ter de faltar a metade dos treinos, Luís já não imagina a sua vida sem o karaté. E muito menos sem as semanas com o pai.
“A residência alternada é o sistema que melhor protege as crianças, mesmo quando não há acordo entre os pais. Ou sobretudo nestes casos”, defende Carlos, 49 anos, pai de Luís. “Se não passássemos este tempo juntos, a minha relação com o meu filho seria com certeza muito diferente, ou mesmo inexistente. Com a residência única, as crianças ficam muito vulneráveis a uma imagem fantasiosa relativamente ao outro progenitor”, afirma. “Apesar de todas as tentativas que a mãe tem feito ao longo dos anos para dificultar os nossos contactos (por exemplo, indo buscá-lo à escola à sexta à tarde, antecipando-se à minha chegada, quando era suposto eu iniciar a minha semana com o Luís, ou dizendo-lhe que é mau para ele estar comigo), conseguimos criar uma relação forte e muito próxima.” E acrescenta: “Se só pudéssemos estar juntos um fim de semana de 15 em 15 dias, ele teria sido muito mais permeável às estratégias da mãe para nos afastar”, considera.
O mesmo não aconteceu com a filha mais velha que, aos 12 anos, e a pedido da mãe, foi ouvida em tribunal e defendeu que o melhor para si, era viver só com ela porque assim teria melhores resultados na escola. O regime de guarda partilhada e residência alternada, estabelecido havia menos de um ano, foi alterado para guarda e residência únicas com a mãe. “O regime de visitas deixou rapidamente de ser cumprido”, conta o pai. “Acabei por perder qualquer contacto com a Raquel, apesar de todas as tentativas formais e informais, que ainda se mantêm, para reverter a situação. Quando ela tinha 15 anos, houve um novo julgamento e ficou definido um novo plano de visitas que, simplesmente, também não foi cumprido. Hoje, ela tem 19 anos. Não falamos nunca, nem sequer no Natal ou em dias de aniversário. Mas a Raquel continua a existir para mim, claro.” Luís e Raquel são filhos da mesma mãe.
O que é a residência alternada?
Os pais têm os filhos a seu cargo semana sim, semana não. Vão buscá-los à escola à sexta ou à segunda-feira e assim iniciam a sua semana, até à sexta ou segunda seguintes. Normalmente, é assim que se organizam. Mas a partilha do tempo pode ser feita em moldes diferentes, por exemplo com a mudança a meio da semana. Ou com períodos mais curtos, de poucos dias, sobretudo quando as crianças são muito pequenas. Desde que o tempo dos filhos seja partilhado pelos pais, numa proporção que pode ir de 33 a 50 por cento para cada um, eles vivem num sistema de residência alternada.
Mas se os pais entram em modo “semana sim, semana não”, para os filhos todas as semanas são “semanas sim”, já que estão sempre com o pai ou com a mãe. E nenhum dos dois tem mais importância na sua vida do que o outro. Tal como nenhum dos dois tem mais responsabilidades do que o outro. Tal como a vontade de um não tem mais peso do que a vontade do outro. Partilham-se as responsabilidades, mas também o tempo de convivência e de cuidados.
É assim a residência alternada, regime em que vivem cada vez mais crianças em Portugal. Não se sabe exatamente quantas, já que são de 2006 os últimos dados estatísticos recolhidos pela Direção-Geral de Políticas de Justiça quanto ao tipo de regime de regulação parental. Nesse ano, apenas três por cento das decisões nos tribunais de família decretaram a guarda conjunta.
São dados anteriores à aprovação da atual lei, em vigor desde 2008, que obriga à partilha das responsabilidades parentais no que diz respeito a “questões de particular importância para a vida da criança”. Mas se é bem clara em relação às responsabilidades, a lei é omissa em relação à hipótese de residência alternada, prevendo que o tribunal determine “a residência do filho e os direitos de visita de acordo com o interesse do menor”.
Há cerca de 19 mil decisões judiciais por ano que estabelecem a regulação das responsabilidades parentais e, na maioria delas, os juízes continuam a estipular a residência única com a mãe e um regime de visitas ao pai: normalmente em fins de semana alternados e, eventualmente, um dia a meio da semana. Em Lisboa, em 78% dos casos julgados em 2012, a residência única foi entregue à mãe, seguida de longe por familiares (14%) e só depois pelo pai (8%), tendo havido apenas dois casos de guarda partilhada (dados de um estudo da Universidade de Coimbra, publicado em 2014 e que analisou cerca de 500 sentenças judiciais dos tribunais de família de Lisboa e Braga. Segundo pode ler-se neste estudo “a prática judicial ainda reflete as desigualdades de género estruturais existentes na sociedade.”
Porque acreditam que este regime, de “pai de fim de semana”, é contrário ao interesse da criança, que se vê assim privada de uma relação igualmente próxima com ambos os progenitores, quase 2.500 pessoas assinaram já a petição lançada pela Associação para a Igualdade Parental há cerca de cinco meses.
“Esperamos que, durante o ano de 2018, consigamos obter mais de quatro mil assinaturas para que esta matéria seja obrigatoriamente levada a discussão em Plenário da Assembleia da República”, afirma Ricardo Simões, presidente da Associação. “O Direito das Famílias e das Crianças não é neutro. Tem sempre uma carga ideológica”, considera. “A presunção jurídica para a residência alternada tem como objetivo promover a mensagem da coparentalidade como o modelo que melhor satisfaz os interesses da criança”, explica. “Mas ao mesmo tempo contribuir para a redução dos conflitos parentais, retirando a variável das relações de poder, num sistema adversarial que tende a exacerbar tais relações”. Havendo esta alteração na lei, acrescenta, “aceleram-se os processos de mudança nas dinâmicas parentais pós-divórcio e separação, contribuindo para a pacificação das comunidades e aumentando a sua coesão, no melhor interesse da criança”.
“Para uma vinculação segura, é preciso mais do que meras visitas”
Em nome do melhor interesse da criança, continuam a estabelecer-se todos os dias, nos tribunais, muito mais regimes de residência única com “direito de visitas” do que regimes de residência alternada. Na opinião de Rute Agulhas, psicóloga clínica e forense, terapeuta familiar e coautora do livro “Audição da Criança – Guia de Boas Práticas”, é válido o pressuposto base da petição, “de que a criança deverá manter com ambos os pais contactos de forma tendencialmente equitativa. Manter contactos regulares e extensos com ambos os pais permite que a criança estabeleça com cada um deles uma relação de vinculação segura”, defende. “Para que esta aconteça, é preciso mais do que meras ‘visitas’, deve haver pernoitas desde cedo, com uma divisão equilibrada do tempo”, considera. “O que não significa que tenha de ser necessariamente, uma divisão de 50/50”, acrescenta.
Mas, apesar de concordar com o pressuposto, não concorda com a presunção jurídica: “Defendo que não deve haver um regime regra a ser aplicado a todas as famílias, sem que determinadas variáveis sejam previamente tidas em conta. Receio que um regime regra, de forma estanque e rígida, invalide a avaliação prévia dessas mesmas variáveis. Cada caso é um caso e cada família tem as suas especificidades.”
A residência alternada pode ser prejudicial para a criança? “Sim, em situações em que a sua idade e nível de desenvolvimento não foram tidos em conta. Nestes casos, o processo de ajustamento a uma alternância, por exemplo semanal, pode ser difícil. Crianças mais novas (especialmente bebés e mesmo em idade pré-escolar) devem ter transições mais frequentes, tendo em conta a sua memória e noção de tempo”, adverte.
O que diz o Conselho da Europa
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O Conselho da Europa solicitou aos estados-membros que assumissem o princípio da residência alternada no seu ordenamento jurídico, limitando as exceções a este princípio a casos de negligência, abuso ou violência doméstica. Está no ponto 5 da Resolução 2079 (Parliamentary Assembly, 2 de outubro de 2015). França, Bélgica, Holanda e Suécia já legislaram neste sentido. No ponto 3 desta resolução pode ler-se: “Separar um pai/mãe do seu filho tem efeitos irremediáveis na sua relação. Esta separação só deve ser ordenada por um tribunal em circunstâncias excepcionais.”
Em relação ao facto de a maior parte das decisões dos magistrados ainda estabelecer a residência única, Rute Agulhas considera que tem, apesar disso, havido mudanças: “De uma forma gradual, quer os técnicos, quer os magistrados, têm vindo a interiorizar as diretrizes internacionais [ver caixa o que diz o Conselho da Europa], que indicam que a criança tem o direito a conviver de forma regular com ambos os pais, exceto se isso for contrário aos seus interesses. Acredito que é esse o caminho que estamos a percorrer e observo isso diariamente no âmbito do meu trabalho enquanto psicóloga clínica e forense.”
Ricardo Simões corrobora esta ideia: “Apesar de não existirem dados sobre a natureza das homologações e decisões judiciais, temos a perceção de que existe uma mudança cada vez maior nos comportamentos dos magistrados no sentido de, pelo menos, privilegiar amplos contactos da criança com ambos os progenitores. A imposição da realidade social aos tribunais levará à mudança da natureza das decisões, em prol da coparentalidade.” Ainda assim, também regista que se encontram “algumas resistências regionais e idiossincrasias, muito resultado da realidade social local ou falta de formação adequada. Trata-se de um processo de transformação lento, em que toda uma geração de crianças foi e é sacrificada”, considera.
A sociedade a mudar mais depressa do que a justiça
Se o caminho parece fazer-se devagar nos tribunais, as mudanças na sociedade estarão a acontecer de forma mais rápida. Na introdução da obra Uma Família Parental, Duas Casas (ed. Sílabo, 2017), a socióloga e coautora Sofia Marinho analisa as mudanças na família portuguesa nos últimos anos, com a banalização do divórcio e, mais do que isso, na forma como as pessoas se divorciam: “O ‘divórcio por mútuo consentimento’ homologado nas Conservatórias do Registo Civil torna-se predominante, registando valores médios de cerca de 69% entre 2010 e 2013 (dados do INE).”
Analisando dados de 2014 do Inquérito “Family and Changing Gender Roles” do ISSP (International Social Survey Programme), a investigadora do Instituto de Ciências Sociais destaca mudanças também nas preferências face à modalidade de residência da criança quando o casal se separa. Numa amostra representativa da população portuguesa, 47,5 por cento dos inquiridos consideram a residência alternada como o melhor regime para a criança; 30 por cento afirmam que os filhos devem ficar com aquele que tiver melhores condições; 22,2 por cento dizem que devem ficar a viver com a mãe e 0,4 por cento com o pai.
Para Ricardo Simões, estes dados demonstram “que a resistência a este modelo não advém dos pais e mães portugueses, nem da população em geral, mas antes da ideia estereotipada de família que muitos dos profissionais da área do Direito têm e que condiciona a sua atuação”.
No papel, guarda exclusiva da mãe; na prática, residência alternada
Rui, 49 anos, e a ex-mulher, Patrícia, decidiram divorciar-se quando a filha de ambos, Beatriz, tinha três anos. São um dos casos apontados por Ricardo como estando à frente da justiça. “Logo desde o início, pusemos em prática o sistema de residência alternada, concordando que era o melhor para a Beatriz. Mas oficialmente ficou estabelecido que a guarda exclusiva ficava a cargo da mãe e que eu teria o direito de visita, num fim de semana de 15 em 15 dias”, conta Rui. “Nem sei bem porque é que ficou assim, mas penso que foi apenas porque era o mais habitual, o regime por defeito, digamos assim. Mas nunca nos passou pela cabeça respeitá-lo.”
Na prática, Beatriz começou desde logo a ter duas casas e a dividir o seu tempo equitativamente entre pai e mãe. É à quarta-feira que muda de casa, mas sempre houve muita flexibilidade dos pais na gestão do tempo. “Quando é preciso fazer alguma alteração, porque seja mais conveniente para um de nós, não há qualquer problema e há abertura de parte a parte”, revela Rui. “Por vezes, até é a Beatriz que propõe uma mudança pontual, normalmente por questões práticas, para nos facilitar a vida”, acrescenta.
Se este sistema pode ter trazido instabilidade em alguma altura da vida da filha, que hoje já tem 12 anos, Rui é peremptório: “Nunca houve o mais pequeno sinal de desajuste ou de dificuldade. Além da casa do pai e da casa da mãe, ainda tem a casa dos avós, paternos e maternos, que também vivem perto, e onde dorme de vez em quando. Portanto, não dorme em duas mas em quatro casas e é uma criança equilibrada, boa aluna, pratica ginástica (competição) e é super responsável. Nunca há stress nenhum para ela, mesmo que tenha de repente que ir dormir onde não era suposto…”
Quanto ao facto de andar sempre de mala feita, Rui desvaloriza: “Ela tem roupa e brinquedos nas duas casas, mas também pode levar de uma para a outra aquilo que quiser. Sempre foi assim. Desde pequena que decide livremente o que quer levar e trazer, mas não tem de andar com a casa às costas, nada disso!”
Pela sua experiência, Rui diz que concorda com a petição lançada pela Associação pela Igualdade Parental: “Sim, penso que este é o melhor sistema para as crianças e devia ser a regra, não a excepção.”
Tal como Rui e Patrícia, “muitos pais e mães optam pela residência alternada de forma informal, apesar de oficialmente estar homologado outro regime, seja pelos obstáculos que lhes foram colocados pelo sistema ou pelas mudanças nas suas próprias vidas e na vida da criança”, afirma Ricardo Simões.
Qual é, afinal, o superior interesse da criança?
Inúmeros investigadores têm procurado avaliar o impacto que as várias modalidades de guarda e residência, após um divórcio, podem ter no desenvolvimento e bem-estar das crianças. Malin Bergström, psicóloga, mediadora familiar e investigadora no Instituto Karolinska, em Estocolmo, realizou vários estudos ao longo das últimas décadas e todos apontam a mesma conclusão: os indicadores de saúde física e mental e os níveis de bem-estar das crianças filhas de pais divorciados que vivem em residência alternada são melhores do que os daquelas que vivem apenas com o pai ou com a mãe. E isto tanto para as crianças mais velhas e adolescentes, como para as crianças pequenas, entre os dois e os cinco anos. Na Suécia, mais de 40 por cento das crianças cujos pais se separaram dividem o tempo entre a casa da mãe e a casa do pai.
Mas será que estes resultados também se aplicam quando não há entendimento entre os pais? “A ideia de que pai e mãe têm sempre de estar de acordo para haver residência alternada é um mito”, considera Ricardo Simões. “Mesmo quando não existe esse acordo, este é o modelo que melhor serve os interesses da criança, contribuindo mesmo para a diminuição do conflito”, afirma, apontando o trabalho de outra investigadora. A norte-americana Linda Nielsen revelou que as situações de conflito entre pais e mães diminuem em 40 por cento quando a opção é a residência alternada; mantém-se em 59 por cento dos casos e apenas em 1 por cento se regista um aumento da conflitualidade.
“Deve ter-se em conta que nas situações imediatamente após o divórcio/separação ambos os progenitores podem tender a exagerar o conflito, também muito pelo sistema judicial adversarial vigente”, acrescenta Ricardo Simões. Mas “os tribunais não devem tomar decisões com base nos conflitos atuais, que acabam por diminuir passados 12 a 24 meses”, considera.
“Eles sabem que nós falamos e isso é ótimo!”
Quando os pais decidiram separar-se, há nove anos, os irmãos Madalena, Zé Maria e Matilde tinham sete, cinco e quatro anos, respectivamente. Hoje são três adolescentes (de 16, 14 e 13), que continuam a viver sempre juntos mas em duas casas diferentes, em semanas alternadas. À segunda-feira à tarde mudam de uma para a outra. Nas férias tudo é menos rígido e podem estar duas semanas seguidas com o pai e depois outras duas com a mãe. A mudança não se deu sempre à segunda, mas a divisão do seu tempo entre pai e mãe foi um pressuposto constante. Ou seja, uma garantia, o que não é coisa pouca quando o mundo parece virar-se de pernas para o ar.
“Desde a nossa decisão pelo divórcio, houve logo acordo quanto à guarda partilhada e residência alternada. Era isso que ambos queríamos: que eles continuassem a ter o pai e a mãe por inteiro, mantendo-nos os dois responsáveis pela educação dos nossos filhos”, conta a mãe, Sandra Belo, 46 anos.
“Não quer dizer que tenha sido sempre fácil (não foi), mas hoje posso dizer que atingimos uma situação ideal”, considera. E porque houve momentos difíceis, Sandra defende que quando a residência alternada é estabelecida, “devia ser obrigatório pai e mãe terem apoio em sessões regulares de mediação familiar. Teria sido muito mais fácil com a participação uma terceira pessoa. Quando um casal se separa, as diferenças agudizam-se e há sentimentos, emoções, que interferem na gestão de tudo o que diz respeito aos filhos. Por vezes, essa gestão é muito difícil. Haver uma terceira pessoa, um profissional, teria, sem dúvida, facilitado em certos momentos. Porque a vida não é estática, os miúdos crescem, há novos dados sempre a surgir. E decisões a tomar”, explica.
“Sentirem que há contacto entre os dois mundos, que não são estanques, é muito importante. É inevitável que as crianças tentem aproveitar o afastamento, o facto de não haver contacto, senti isso em alguns momentos”, conta. “Mas agora que a comunicação é mais fácil entre nós, pais, podemos acertar estratégias. Eles sabem que “nós falamos” e isso é ótimo. Neste momento, há três adultos que cuidam deles em conjunto (incluindo a mulher do pai) e considero que isso é uma sorte, tanto para eles como para mim. Agora que a comunicação é aberta, fluída e franca, sinto que não estou sozinha, o que é muito bom”, conclui.
Mas houve um longo processo até se atingir este ponto. “No início, achava muito cómodo que a mudança de casa acontecesse no final de um dia de escola, pois isso permitia evitar o contacto entre nós, pais. Mas agora acho que isso não é o ideal, precisamente porque esse contacto é necessário”, reflete. “Houve também situações difíceis por exemplo em relação à roupa dos miúdos, porque não dávamos os dois a mesma importância ao assunto”, recorda. Hoje pensa que é preciso mais flexibilidade de ambos, em vez de intransigência: “Temos de aprender a confiar no outro. Mesmo que ele não faça como nós faríamos. Os adultos deviam ser capazes de trabalhar os seus medos e assim permitirem mais flexibilidade na gestão do dia-a-dia. Às vezes a sensação de impotência é enorme, mas é só uma sensação nossa…”
Sandra não é, contudo, defensora da residência alternada a qualquer custo: “Por princípio sim, mas pode haver momentos da vida em que seja mais tranquilizador para as crianças estarem mais tempo com um do que com outro. Durante estes anos, houve alturas em que senti isso, mas nunca o propus. Temos sempre medo de propor alterações quando se atingiu alguma estabilidade… Mas as vidas não são estáticas”, afirma. “Por isso, os regimes de residência também não deviam ser”.
Seja qual for o acordo ou decisão judicial, Sandra considera que o mais importante é que “os adultos saibam o que querem e que estejam em paz. Se estiverem em paz, transmitem isso aos filhos e não é o facto de haver duas casas que vai provocar instabilidade. Estar em paz é não entrar em guerras para impor ao outro aquilo que nos parece melhor”, defende. Na sua opinião, ouvir as crianças é outro dos pontos importantes na procura do melhor para elas. Mas, também aí, o objectivo deve ser apenas esse e não aproveitar ou explorar potenciais fraquezas que existam do lado de lá. “Incentivei sempre os miúdos a expressarem o que não lhes parece bem, porque só eles é que têm a visão do conjunto. Só eles é que têm duas casas”, explica. “Mas, claro, nunca para pôr em causa o pai!”, sublinha.
Depois destes nove anos de semanas alternadas, Sandra considera que as crianças também têm ganhos: “São miúdos muito autónomos, fazem a mala desde pequeninos, são super-responsáveis e sabem cuidar de si próprios. Ganham cedo muitas competências que normalmente só viriam mais tarde, mas não nego que seja duro”, contrapõe. “Depois, têm dois modelos diferentes, dois núcleos familiares dos quais fazem parte. Isso é enriquecedor, crescem com diversas formas de olhar para a vida”, acrescenta.
Há um ano, Sandra mudou-se para uma casa mais próxima da do ex-marido, o que facilitou bastante o dia-a-dia de todos. Como já têm alguma autonomia conquistada pela idade, os filhos podem circular sozinhos entre as suas duas casas. Se se esqueceram de um livro ou de uns ténis ou se houve uma mudança de planos, tudo é facilitado por esta proximidade. Se é a semana do pai, mas em casa deste não há adultos à chegada da escola, pode acontecer que um dos filhos vá para a casa da mãe até à hora de jantar, por acordo de ambos em cima da hora. “Isto seria impensável há uns anos!”, afirma Sandra, parecendo ela própria ainda admirada por terem chegado a este estado de entendimento e de paz.