As eleições autárquicas deste domingo representaram um bom sinal para Portugal, acima de tudo porque trouxeram surpresa, emoção e grande incerteza. É óptimo que os políticos nunca pensem que têm os eleitores no bolso e percebam que, a qualquer momento, podem ser derrotados se os eleitores, retrospectivamente, não estiverem contentes com o seu trabalho. Neste ensaio olhamos em detalhe para o caso de Lisboa, na medida em que, para além de ser a capital do país, foi, sem dúvida, a grande surpresa da noite. Depois, olhamos para os partidos e os seus respectivos resultados e como eles podem influenciar o futuro mais imediato.
Lisboa. Afinal Medina não tinha Moedas no bolso
Para além do seu valor simbólico e material enquanto capital, Lisboa foi a grande surpresa da noite. Depois de 14 anos nas mãos dos socialistas, e contra todas as previsões e sondagens, a capital mudou de mãos. Em 2007, António Costa havia recuperado a Câmara Municipal ao PSD numa eleição intercalar, reforçando, depois, a sua vitória numa competição muito renhida com Pedro Santana Lopes em 2009, onde o actual primeiro-ministro obteve mais de 123 mil votos e a coligação PSD-CDS-PPM mais de 108 mil votos. Em 2013, António Costa consegue aquela que foi a única maioria absoluta dos socialistas nos últimos 14 anos, apesar da diminuição no número absoluto de votos para 116 mil. Como é sabido, depois das europeias de 2014, Costa desafiou Seguro e concorreu à liderança do PS, abandonando a câmara em 2015, deixando Fernando Medina ao leme com uma confortável maioria absoluta. A Figura 1 mostra a evolução das eleições mais recentes de Lisboa.
Este pequeno excurso histórico é útil para contextualizar a surpresa de ontem à noite. Medina nunca foi tão popular nas urnas como Costa. Nas suas primeiras eleições, em 2017, Medina conseguiu 106 mil votos. Perdida a maioria absoluta, Medina fez um acordo pós-eleitoral com o Bloco de Esquerda, garantindo, assim, a viabilidade do seu programa político em Lisboa. Nas eleições de ontem, a erosão crescente dos socialistas em Lisboa continuou, recebendo apenas 80 mil votos, isto é, um decréscimo de mais de 25 mil votos.
Mas qual foi a chave para a inesperada derrota de Medina? Como sempre nestas análises, não é possível dizer, com toda a certeza, de onde e para onde se transferiram votos, na medida em que apenas temos dados agregados ao nível do município e da freguesia. Infelizmente, em Portugal, não dispomos de sondagens em painel (onde se entrevistam as mesmas pessoas de eleição para eleição) nem de estudos pós-eleitorais ao nível local (onde se pergunta em quem votou nestas e nas eleições anteriores). Tentemos, pois, esboçar algumas ideias sobre o terramoto político conseguido pela vitória de Moedas e do PSD.
Em primeiro lugar, importa sublinhar que Medina perdeu 25 mil votos e que Moedas ganhou apenas mais 3 mil votos face ao somatório de Assunção Cristas e Teresa Leal Coelho, em 2017. Aparentemente, o contributo mais decisivo para a vitória de Moedas pode ter vindo da forte desmobilização no campo de Medina. Para termos uma visão do conjunto, olhemos então para os dois blocos eleitorais à esquerda e à direita. Na noite eleitoral, António Costa afirmou que o PS teria perdido Lisboa devido à transferência de votos de Medina para João Ferreira, da CDU. No entanto, os números mostram que esse movimento não explica a derrota de Medina: João Ferreira apenas aumentou a sua votação em 1.400 votos em relação à última eleição, sendo, pois, impossível de responsabilizar a candidatura comunista pelo desastre socialista.
Os votos também não foram para o Bloco de Esquerda nem para o PAN. Ambos os partidos tiveram menos votos absolutos do que em 2017. Deste modo, apesar da cautela necessária com a utilização de dados agregados, Medina terá perdido a esmagadora maioria dos seus votantes para a abstenção e, eventualmente, alguns (poucos) para Moedas. A explicação para a desmobilização na área de Medina parece relativamente intuitiva: a canónica complacência do vencedor antecipado. Nas sondagens, Medina apareceu sempre como vencedor da contenda, estando apenas na dúvida a sua eventual maioria absoluta. Para além disso, o efeito de vencedor pré-anunciado tornou o voto estratégico à sua esquerda largamente irrelevante: os eleitores da CDU ou do BE não tiveram quaisquer incentivos para sacrificar o seu voto expressivo, votando em Medina, para evitar a potencial vitória de Moedas, na medida em que esta não era sequer encarada como uma possibilidade remota.
Em segundo lugar, convém não desvalorizar a vitória de Moedas, nem apresentá-la como puro demérito de Medina. É certo que Moedas conseguiu apenas mais 3 mil votos do que a soma de PSD e CDS em 2017. No entanto, o terreno era agora muito mais desfavorável. Nestas eleições, a direita teve dois novos actores políticos – a Iniciativa Liberal e o Chega — que se estrearam em eleições locais e conseguiram cerca de 20 mil votos em Lisboa. Moedas conseguiu bater Medina apesar da mobilização à sua direita. É certo que IL e Chega terão mobilizado eleitores que, de outro modo, não iriam votar. No entanto, parece-nos sensato presumir que uma boa parte destes eleitores, especialmente o quinhão da IL, teria votado em Moedas na ausência do candidato liberal.
Em terceiro lugar, importa ainda referir que Lisboa perdeu residentes nos últimos quatro anos, cerca de 16 mil eleitores, o que não é de somenos quando consideramos resultados eleitorais em que a diferença entre o primeiro e o segundo classificados é da ordem dos 3 mil votos. Finalmente, uma curiosidade interessante: menos 6 mil eleitores optaram por votar em branco, nulo ou em micropartidos do que nas últimas eleições, provavelmente devido à maior e mais diversificada oferta eleitoral.
Para percebermos com um pouco mais de fineza os prováveis movimentos eleitorais de e para a abstenção, os dois gráficos abaixo ajudam a explicar a derrota de Medina e a vitória de Moedas. Os gráficos mostram um aumento da participação eleitoral nas freguesias em que PSD e CDS foram mais fortes em 2017 e, ao mesmo tempo, um aumento da abstenção nas freguesias onde Medina havia saído vencedor há quatro anos.
[Os autores agradecem a Pedro Magalhães a cedência deste gráfico]
Como muitas vezes acontece em eleições locais, o efeito da vitória ao nível municipal fez-se sentir nas corridas eleitorais dos níveis eleitorais mais baixos – neste caso, arrastando votos na coligação Novos Tempos para as juntas de freguesia. Assim, muitas freguesias mudaram de cor do PS para PSD e CDS: Arroios, Parque das Nações, Lumiar, São Domingos de Benfica, Alvalade e Avenidas Novas trocaram de mãos neste domingo. Há hoje uma clivagem mais clara do que em 2017 na capital: as freguesias mais ricas tendem a votar à direita, enquanto as freguesias com menos rendimento continuaram a votar nos socialistas.
E as sondagens? Por que falharam de forma tão estrondosa em Lisboa? Muitas são as possíveis explicações e poucas as certezas. Em primeiro lugar, o número de sondagens nas últimas semanas de campanha eleitoral foi diminuto. Nas últimas três semanas de campanha, tivemos apenas três sondagens para Lisboa, duas delas com apenas 600 entrevistados, uma amostra relativamente baixa que torna a margem de erro mais elevada e as inferências menos exactas, especialmente com diferenças tão curtas entre o vencedor e o derrotado. Ainda assim, nas piores sondagens para Medina, este mostrava-se 7 pontos percentuais à frente de Moedas, uma realidade longe da verificada ontem. Como podemos justificar tal desvio? Para além da possibilidade de amostras pouco representativas, uma possibilidade será a de que os lisboetas, de facto, tenham mudando as suas preferências ao longo da campanha e, principalmente, ao longo da última semana. Finalmente, não podemos negligenciar a importância da taxa de participação eleitoral: é sabido que a maioria dos abstencionistas tem pudor em revelar em inquéritos que não vai votar, contribuindo, assim, para uma percepção enviesada da corrida eleitoral.
PS. Uma vitória de Pirro
As eleições autárquicas foram uma noite difícil para o PS. Vamos por partes. Dado o ponto de partida do resultado de 2017, o PS sofreria sempre algumas perdas importantes em termos do número de municípios. Para além disso, o ciclo político nacional não é favorável ao PS: em iguais momentos do ciclo do executivo, isto é, passados cerca de 6 anos no poder, Cavaco e Guterres tiveram derrotas autárquicas pesadas. É certo que o PS continua a controlar a maioria dos municípios do país, com 149 autarquias. Importa, no entanto, perceber que tipo de autarquias permanecem nas mãos dos socialistas. A partir de agora, o PS controla apenas cinco capitais de distrito: Viana do Castelo, Vila Real, Beja, Leiria e Castelo Branco, as quais, à excepção de Leiria, presidem a distritos mais rurais e com menores benefícios eleitorais em futuras legislativas.
Por outro lado, o PS consolidou de forma inequívoca o seu resultado enquanto partido da cintura suburbana de Lisboa, adicionando Loures ao seu já extenso leque de autarquias nesta área, nomeadamente, Amadora, Sintra, Odivelas, Almada, Barreiro, Montijo e Moita. Para além disso, o PS consolida ainda a cintura suburbana do Porto, controlando as câmaras de Gaia, Matosinhos, Vila do Conde e Gondomar. Parece, pois, emergir aqui um padrão do PS ser crescentemente um partido suburbano, num movimento eventualmente explicado pela saída das classes médias dos centros das cidades principais e crescente instalação nas cidades-dormitório da Grande Lisboa e do Grande Porto. Note-se que, a prazo, este movimento é altamente favorável para o PS na medida em que, nestas cidades, decidir-se-á a distribuição de mandatos eleitorais nas legislativas.
As consequências da noite eleitoral para o futuro próximo do PS são no mínimo interessantes. Com o seu resultado em Lisboa, Medina parece arredado da corrida à liderança do partido, embora não seja de excluir que ainda consiga ser eleito para suceder a Costa. Neste cenário, ganha força o duelo interno entre Mariana Vieira da Silva e Pedro Nuno Santos. Todavia, ganha ainda mais força a possibilidade de António Costa ser obrigado a recandidatar-se em 2023 para segurar o partido.
PSD. Moedas atravessa o Rio Rubicão
Sejamos claros: o PSD teve ontem uma grande noite eleitoral. Esta avaliação não se prende apenas com o ponto de partida de 2017 que era, indubitavelmente, mau. O PSD controla agora 114 autarquias, menos do que o PS, é certo. No entanto, é importante perceber de que autarquias falamos. Para além de Lisboa, que já referimos anteriormente, o PSD controla agora a maioria das capitais de distrito e, sem dúvidas, as cidades que, simbolicamente, têm mais peso no país. Enquanto o PS controla cinco capitais de distrito, o PSD controla 11, incluindo, Braga, Aveiro, Coimbra, Lisboa, Faro e Funchal. A Tabela 1 mostra um sumário das mudanças eleitorais nas capitais de distrito.
Pela sua importância económica, agora que as autarquias terão um peso ainda mais relevante na distribuição e gestão dos fundos do programa de recuperação, o PSD está confortavelmente sentado nas autarquias que serão responsáveis por movimentar e aplicar mais fundos europeus nos próximos anos. Em 2025, quando muitos dos autarcas que começaram o seu mandato em 2013 forem forçados a sair por limitação de mandatos, as eleições autárquicas serão (ainda) mais competitivas, o que poderá abrir um longo ciclo de poder local.
A conquista destas autarquias descredibiliza a tese de que o PSD se estaria a tornar um partido rural. De facto, o PSD recuperou votos nos grandes centros urbanos o que, a prazo, será essencial para as próximas legislativas, até porque, como é sabido, as autarquias são fundamentais enquanto centros organizativos dos partidos políticos, especialmente fora de Lisboa e do Porto.
Por último, devemos ainda sublinhar algumas conquistas do PSD que, neste momento, carecem ainda de explicação. O PSD logrou conseguir várias autarquias num terreno que é habitualmente adverso para a direita e que exigirá uma análise mais pormenorizada. De forma inédita desde a democratização, o PSD ganhou Vila Viçosa, Reguengos de Monsaraz, Mourão, Redondo.
Os resultados conseguidos por Rui Rio e pelo PSD adiam a disputa interna que se avizinhava e fazem adivinhar que, a não ser que algo de estranho aconteça, Rio disputará mesmo as eleições legislativas de 2023 como candidato do PSD.
CDU. Um resultado poucochinho
A coligação liderada pelos comunistas teve mais uma noite trágica. Jerónimo de Sousa assumiu, tal como fizera em 2017, que os resultados haviam ficado aquém do esperado. Depois de anos e anos em que o país político anunciava a morte inexorável do PCP, a componente autárquica, fundamental para a implementação do partido no país, tem vindo a mostrar a confirmação dessa mesma morte. É certo que a CDU conseguiu segurar Évora e Setúbal, provavelmente as suas últimas jóias da coroa. No entanto, para além de não recuperar Almada e Barreiro, a CDU viu Bernardino Soares ser derrotado em Loures, o que significa uma baixa pesada. Seixal e Palmela resistem como os dois últimos bastiões comunistas na cintura suburbana de Lisboa.
Apesar de João Ferreira ter apresentado o seu resultado como o partido estando a crescer em Lisboa, o certo é que apenas logrou ter mais 1.400 votos e manter os dois vereadores que tinha já conseguido em 2017. Podemos, pois, falar mais de uma dinâmica de estabilidade do que propriamente de crescimento.
A CDU está, portanto, perante um dilema estratégico. Apesar de a geringonça ter sido um sucesso para o partido, na medida em que conseguiu segurar a sua organização sindical, a componente autárquica dá francos sinais de declínio total. As próximas autárquicas poderão mesmo representar o fim da CDU enquanto força autárquica com relevância no país. Que implicações terá tudo isto no apoio da CDU a António Costa, que, relembre-se, tem dependido do partido para aprovar o Orçamento do Estado? A nosso ver, o declínio da CDU terá menos que ver com a penalização por causa da cooperação com o PS e, isso sim, com a quebra demográfica e social da sua base de apoio. A erosão das bases de apoio extra-parlamentares poderá criar, assim, ainda mais incentivos para a CDU cooperar com António Costa, deslocando o centro gravitacional do partido para o parlamento, naquilo que é, de resto, o funcionamento canónico dos restantes partidos portugueses, os quais têm pouquíssima implementação no terreno.
CDS. O adiamento do fim
Desde 2017, quando teve um grande resultado em Lisboa com Assunção Cristas a que se seguiu uma queda vertiginosa, que o CDS vive num beco sem saída. O aparecimento do IL e do Chega puseram fim ao papel funcional do CDS no sistema partidário português, de acordo com o caderno de encargos dos militares a Freitas do Amaral em 1974. O CDS conseguiu, heroicamente, manter as seis autarquias que controla. Nas restantes, coligou-se com o PSD para, habilmente, esconder as suas fraquezas estratégicas. Se Rio e o PSD decidirem dar a mão ao CDS pode ser que o partido ainda consiga sobreviver mais um ciclo eleitoral.
Bloco de Esquerda. A vitória não está a passar por aqui
Diferentemente da CDU, o BE nunca teve qualquer implementação autárquica. Nado e criado na, e pela, comunicação social, o único resultado que verdadeiramente interessava ao partido consistia na eleição de Beatriz Gomes Dias como vereadora em Lisboa. Para além disso, o BE teve um indiscutível sucesso no Porto, ao conseguir eleger um vereador. Sob esse ponto de vista, o partido foi bem sucedido.
No entanto, um olhar mais fino aponta algumas pistas que deveriam fazer soar os alarmes na Rua da Palma. O Bloco perdeu cerca de 33 mil votos entre 2017 e 2021, uma queda de cerca de 20 por cento. Para além disso, o Bloco perdeu ainda votos significativos em várias capitais de distrito que costumam ser centrais para o seu sucesso parlamentar, como Lisboa, Coimbra ou Braga.
No contexto dos resultados eleitorais mais globais, o Bloco poderá vir a ser chamado por António Costa como potencial parceiro para voltar a aprovar Orçamentos. É certo que Costa tem agora o dinheiro do PRR para satisfazer as clientelas do Bloco, o que poderá ajudar a comprar boa vontade política. No entanto, a liderança do Bloco terá dificuldades em decidir se volta a juntar-se à festa quando esta se poderá estar a aproximar do fim.
Chega. Uma bomba à espera de explodir
Para analisarmos os resultados do Chega, convém separar duas dimensões: Lisboa e a implantação local do partido. Em primeiro lugar, em Lisboa, a escolha de candidato e a campanha foram um desastre copioso. Não basta ter uma cara conhecida da televisão para ganhar eleições. Nuno Graciano mostrou nos debates estar mal preparado e não ter quaisquer ideias para a cidade. Apesar de tudo, o Chega teve mais de 10 mil votos em Lisboa, o que, num contexto de vitória de Moedas e do PSD, é bastante interessante, mesmo com um candidato tão fraco.
Em segundo lugar, olhemos para o grande objectivo do partido: a implantação local em todo o país. Sob esse ponto de vista não há como negar: o Chega teve uma vitória em toda a linha. A Tabela 2 compara o Chega com os restantes partidos cuja força autárquica é baixa, incluindo o Bloco de Esquerda. O Chega concorreu, sozinho, a 218 concelhos, enquanto o Bloco se ficou pelos 113, a Iniciativa Liberal pelos 43 e o PAN pelos 40. Apesar de parecer um feito menor, o facto de o Chega estar a ganhar capilaridade a uma velocidade estonteante deveria ser preocupante para a democracia portuguesa. Não é fácil arranjar milhares de candidatos a listas autárquicas em 218 concelhos para um partido criado em 2019. No entanto, Ventura e a sua equipa conseguiram fazê-lo.
A implantação local em todo o território nacional é sempre um objectivo muito difícil para partidos novos e pequenos. Não é por acaso que os mesmos partidos que controlam quase todas as câmaras municipais do país são também os partidos mais antigos e fundadores do regime democrático em 1975: PS, PPD-PSD, CDU e, anteriormente, CDS.
O sucesso no número e distribuição de candidaturas ajudou o Chega a conseguir um resultado eleitoral mais forte do que BE, IL ou PAN, com 4.17 por cento dos votos totais (208 mil votos), o que resultou num total de 19 vereadores e 171 deputados municipais. Para termos um ponto de comparação, o BE, partido com 22 anos de existência, elegeu apenas 4 vereadores e 93 deputados municipais, enquanto a IL nem conseguiu eleger qualquer vereador.
Apesar de pouco falado durante a noite eleitoral, o Chega teve uma estreia autárquica verdadeiramente fulgurante. O resultado passou despercebido porque não se traduziu na conquista de autarquias. Todavia, a implantação do partido nestas eleições poder-se-á revelar decisiva nas próximas legislativas, nas quais o país poderá assistir incrédulo a um terramoto político na extrema-direita.
Iniciativa Liberal. A irresponsabilidade liberal
A estreia autárquica da IL não foi auspiciosa. É certo que, como vimos, o partido apenas concorreu em 43 municípios, não conseguindo eleger qualquer vereador. Para além disso, o partido falhou aquele que era, indubitavelmente, o seu objectivo declarado: eleger um vereador liberal para Lisboa. Em grande medida, os resultados do partido no concelho de Lisboa mostram que os eleitores estavam bem conscientes da necessidade de coligação à direita.
Os dados mostram que a IL teve 6 por cento dos votos para a Assembleia Municipal e apenas 4,2 por cento para a Câmara Municipal, o que aponta para um fenómeno de split-ticket, isto é, os eleitores do partido votaram estrategicamente em Moedas para impedir a vitória de Medina. A vitória de Moedas, de resto, salvou a direcção da IL de uma noite embaraçante: se Medina tivesse ganho a Moedas por uma margem menor do que a votação da IL, haveria lugar a fortes recriminações à direita. Estas primeiras autárquicas parecem apontar à IL uma natureza de equivalente funcional do BE à direita: nascer e crescer pela comunicação social e, agora, pelas redes sociais sem nunca ter qualquer implementação local.
PAN. As limitações dos animais
De todos os partidos pequenos, o PAN foi aquele cujo resultado foi pior, com apenas 1,14 por cento dos votos a nível nacional, o que não augura nada de bom para o futuro do partido. É certo que a dinâmica legislativa é muito diferente da dinâmica local. Para além disso, o PAN concorreu em coligação para esconder a debilidade do seu aparelho partidário. No entanto, o filão dos animais terá um crescimento limitado.
Os independentes
Por último, uma nota para os independentes. Quando a possibilidade de os independentes concorrerem às autárquicas foi iniciada há quase vinte anos, muitos julgaram ver nisto uma lufada de ar fresco para a política portuguesa. No entanto, aqui, como em tantas outras coisas da vida portuguesa, fica bem visível a falta de força e dinâmica da sociedade civil. Neste momento, com raríssimas excepções, a figura do independente nas autárquicas é utilizada como um expediente legal para que figuras anteriormente ligadas a partidos, muitas vezes saindo em rota de colisão com os mesmos, consigam ser eleitos.
Estas autárquicas foram eleições mais interessantes e com maior vitalidade do que aquilo que se poderia inicialmente pensar. A democracia portuguesa está viva. A existência de incerteza e de resultados inesperados é a melhor maneira de os cidadãos controlarem os políticos, da esquerda à direita. Saber que tem a sua reeleição garantida é, para qualquer político, o sinal de que pode agir com total discricionariedade, sem qualquer receio das consequências.
Jorge Fernandes é Investigador Auxiliar no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Doutorado em Ciência Política pelo Instituto Universitário Europeu, Florença. Em 2015, publicou O Parlamento Português (FFMS). É co-editor do Oxford Handbook of Portuguese Politics (2022). Foi investigador visitante da Universidade da Califórnia (2012) e do Center for European Studies em Harvard (2018-2019).
Mafalda Pratas é doutoranda em Ciência Política na Universidade de Harvard.