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Não é fado nem pop-rock, nem jazz nem canção tradicional, nem folk nem blues-rock. Que música é esta, Cristina Branco? Que disco é este, onde há coros que parecem insurreição popular — “a vida é uma prova de esforço”, exclama-se a várias vozes logo na segunda canção —, piano ora baladeiro ora borbulhante, contrabaixo cheio de pinta, guitarra portuguesa como ainda não a ouvíramos, nervo de quem se confessa e se rebela de punho fechado, “perdi-me na vida / mas só porque quis” como ouvimos no terceiro tema?
Que disco é este, com data de edição agendada para 20 de março, onde captamos tensão latente (atente-se na sexta canção, “Conta-me dos Vivos”, e na oitava, “A Doutora”), balanço afro-jazzístico (em “Maria”), música de ontem e de hoje e baladas tão bem escritas e bem cantadas que são capazes de derreter os corações mais duros, como “Delicadeza” e “Leva”? Este disco é o novo álbum de Cristina Branco, cantora que 22 anos depois do primeiro trabalho (Cristina Branco In Holland, 1997) continua imprevisível, a trocar-nos as voltas com as voltas das suas canções, com detalhes que denotam que esta música é cada vez mais sua, apurada até à intimidade e ao perfecionismo possível.
EVA: assim se chama o novo álbum de Cristina Branco. Tem nome próprio e nome de gente, com apelido (Haussman), biografia e tudo. Há quase década e meia, como conta ao Observador em entrevista, Cristina Branco refugiou-se na Dinamarca numa “altura complicada” da sua vida. Começou a escrever e criou uma personagem que se tornou entretanto “mais real do que poderia esperar”, espécie de arquétipo e exemplo de personalidade, um mote para a sua própria mudança. Não será por acaso que essa personagem, nascida no tal momento “complicado”, se revele agora publicamente, depois de haver “uma cisão e uma mudança brutal” na sua vida.
A cisão não é detalhada exatamente, mas as canções dão pistas, até porque a vida da cantora, diz a própria, está “plasmada” nos discos. “Se as pessoas quiserem saber realmente o que fui, o que sou, está lá tudo de alguma forma”, vinca. Em “Delicadeza”, a primeira canção do álbum, ouvimos: “Não tenho marido / não tenho dormido”. Logo a seguir, em “Prova de Esforço”: “Também eu preciso / de dar umas voltas à vida”. Em “Quando Eu Quiser”, ouvimo-la cantar: “Acho que às vezes / já sei onde vou / e sei que o meu amor / sou eu”. E em “Leva”, que finaliza o disco: “Leva tudo ao amanhecer / no silêncio do teu andar / vais crescer da dor e ser maior / hás-de ter o que alcançar”.
O disco chama-se EVA e Eva Haussman é um alter-ego que Cristina Branco incorporou para muita coisa — Facebook, e-mail, apps —, mas este disco não é exatamente ficção. “Podia dizer: esta não sou eu. Sou eu, sim“, diz-nos a cantora. Se o álbum pretendia também ser uma reflexão sobre “o que é a liberdade”, a reflexão exigia verdade, porque para Cristina Branco ser livre é “ser verdadeira comigo, mostrar a toda a gente quem sou realmente, perder o medo”.
Tal como aconteceu com discos anteriores, a cantora requisitou canções a compositores e letristas nacionais. Para este álbum contribuíram autores como Pedro da Silva Martins e José Luís Martins (antigos membros dos Deolinda), André Henriques (Linda Martini) e Filho da Mãe, Filipe Sambado, Francisca Cortesão (Minta & the Brook Trout), Márcia, Churky e Sara Tavares e Kalaf.
Os temas chegaram e, em conjunto com os músicos que acompanham a cantora ao vivo e em estúdio — Luís Figueiredo, Bernardo Moreira e Bernardo Couto (este também autor da música de um tema, cuja letra foi escrita por “Eva”) —, foram transformados. “Isto acaba por ser a música deles recriada e revivida por nós”, diz Cristina Branco. Mas para se poder cantar e para poder cantar a mulher que a inspira, a tal Eva, a cantora cedeu a alguns desses autores e letristas a biografia da mulher que criou na sua cabeça. A alguns mostrou até excertos do seu próprio diário, datados de janeiro de 2018 a janeiro de 2019. “Foi preciso perder o medo”, assume.
O resultado é feliz. Em EVA estão dez canções que, dialogando entre si até pela instrumentação muitas vezes comum (guitarra portuguesa, contrabaixo e piano somados à voz), quase poderiam ser dez singles. É um apuramento da fórmula testada nos anteriores Menina e Branco, álbuns em que a cantora começou a trazer compositores, letristas e fórmulas (ainda) menos tradicionais e (ainda) mais jovens para a sua música. E é uma mudança, já que o álbum, por ter sido gravado em “live takes”, capta as dinâmicas de um quarteto já com muita experiência de palco e que está cada vez mais entrosado e uno ao vivo. “Era importante as pessoas perderem aquela ideia que a minha música era uma coisa pesada, uma coisa solene. Nunca fui assim e quem me conhece sabe”, aponta Cristina Branco ao Observador. Cada vez menos é preciso conhecê-la: basta ouvi-la.
“A liberdade é ser verdadeira, mostrar quem sou realmente”
Quem é esta Eva que se revela neste disco?
A Eva é um alter-ego que criei há cerca de 14 anos. Começou por ser uma brincadeira, porque gostava do nome Eva. Surge numa altura complicada da minha vida, numa daquelas alturas de transição em que temos de fazer uma limpeza, perceber onde é que estamos e para onde é que queremos ir.
Sou muito amiga do diretor do Museu de Arte Moderna de Louisiana [na Dinamarca], costumamos ir lá quase todos os anos e na altura pedi-lhe para ficar uns dias, porque têm umas residências ótimas à beira de um lago. Do outro lado está a Suécia, é assim um sítio paradisíaco, mesmo maravilhoso. Naquele momento precisava de parar, de pensar em mim, no que queria. Pedi-lhe e ele foi muito porreiro, fiquei para aí cinco dias lá sozinha. Às tantas comecei a construir uma personagem em torno desta Eva. Gostava do nome, comecei a escrever.
Escreve regularmente?
Estou sempre a escrever, as pessoas não têm essa [perceção], não me veem muito nesse papel mas eu gosto muito de escrever e escrevo todos os dia. É uma coisa de que preciso. Só que a Eva deixou de ser uma personagem e passou a ser muito mais real do que eu poderia esperar, porque ao começar a ler tudo o que tinha escrito para trás sobre ela, no fundo tinha uma espécie de premissas para a pessoa que deveria ser a partir dali.
Em que aspetos se aproxima e em quais se afasta desta personagem? Parte dela poderá ser só um exercício criativo e narrativo, ficcional, mas parte também poderá refletir alguma coisa do seu percurso.
São as duas coisas, efetivamente. Ela tem mesmo uma biografia. É fotógrafa, nasceu naquela altura com 34 anos, tem um filho tal como eu, há alguns pontos que se tocam. Mas tem toda uma biografia… há uma relação que ela tem com Portugal que é singular: só vai aos Açores, não vai ao continente porque tem com ele uma péssima relação, não se percebe exatamente porquê. A partir daqui desenvolvi uma personalidade, um perfil de mulher que ela é. No fundo, não é uma mulher com 34 anos, é uma mulher mais velha mas que eu gostaria de ter sido com aquela idade, para ser mais independente e valorizar mais o tipo de pessoa que sou. Também para acreditar mais em mim, não só na cantora mas também na pessoa.
A Eva era tudo isso. Não pensei: ‘estas são as premissas dela e eu agora vou por aqui e vou ter que ser isto’. Era mesmo uma pessoa que gostaria de ter sido e foi crescendo ao longo dos anos. Relacionei-me sempre com ela. Nasceu no meu Facebook, naquela altura tinha um diário mas no meu perfil de Facebook. Também está no meu e-mail. Sou Eva para tudo, ainda hoje entrei no Uber e o senhor disse-me assim: ‘menina Eva’. Ela entrou na minha vida, comecei a construí-la. Foi ganhando força e fui percebendo que ela é muito mais independente do que eu era. É muito mais próxima daquilo que tenho de ser e daquilo que sou hoje. Não serei exatamente aquela Eva, mas foi um mote e continua a ser. Ela não morre aqui, não se esgota neste disco porque é algo importante para mim. Perguntam-me às vezes se é uma dupla personalidade, um agente secreto… não é nada disso, são coisas importantes para mim. Não posso continuar a esconder-me atrás da cantora. Tenho de mostrar exatamente aquilo que sou e mostrá-lo a mim própria também.
É preciso alguma coragem para tirar as máscaras…
Absolutamente. Neste momento em que também surgiram coisas na minha vida que me voltaram a fazer parar e a repensar uma data de coisas, achei que era importante ela sair do armário, mostrar-se e eu dizer: esta sou eu também. Tanto que este disco é incrivelmente biográfico, todos os textos que estão ali versam sobre a Eva e sobre o que sou. Há muitas referências textuais nos próprios poemas de alguns autores, não de todos, que têm frases minhas, por exemplo.
Os cinco dias que passou na Dinamarca há década e meia, quando esse alter-ego nasceu, resultam do quê? Naquela altura precisava de parar, de pensar, de interromper um ciclo de andar sempre a correr de concerto em concerto?
Nas digressões o que acontece muitas vezes quando se regressar é que só o corpo é que volta, o resto ficou lá. Não sei se acontece com toda a gente, eu demoro a voltar. Demoro muitos dias. É como se o meu corpo viajasse de avião mas o resto viesse por terra. Eu não me importo que as pessoas vejam isso. Acabou aquela história do glamour… é muito duro. É muito duro manter uma família, criar dois filhos, criar dois filhos sozinha neste momento, e continuar aqui. Adoro, não tem nada de mal, mas foi preciso reencontrar-me. Aquele foi um momento de desligar a ficha e pensar: vou ter de me alimentar de mim própria e ganhar confiança em mim.
Do que depreendo, considera que não é preciso apenas ser verdadeiro quando se canta, mas também cantar e contar a verdade às pessoas. É isso?
Pode-se fazer um disco completamente vocacionado para outra coisa, passar para outro plano em que se mostra às pessoas o lado ficcional. Ou não. Acho que todos os discos que fiz até hoje se vão aproximando cada vez mais da minha realidade. Posso dizer com alguma segurança que muito da minha vida está plasmado em cada um dos meus discos. Se as pessoas quiserem saber realmente o que fui, o que sou, está lá tudo de alguma forma.
Quer detalhar mais o momento em que esta personagem nasce, que dizia ter sido uma altura complicada da sua vida?
É óbvio que me dá muito mais gozo entregar o disco às pessoas e fazê-las ouvir aqueles textos, perceberem o que é que está ali e eventualmente pensarem nisso. É como um quadro, tens uma imagem e constróis a partir dela a tua própria história por aquilo que vês, neste caso pelo que ouves e pelo que podes eventualmente ler se quiseres. Agora o meu ponto de partida da Eva, além de todas as características que ela tem, foi a frase: o que é realmente a tua liberdade, o que é para ti a liberdade?
E o que é para si a liberdade, Cristina Branco?
Ser verdadeira comigo. Mostrar a toda a gente quem sou realmente. É não ter medo, perder o medo. Não quero isso mais. Não quero, mesmo. É apetecer-me isto ou aquilo e fazer. Há um lado muito livre na própria criação. Com este disco podem dizer: ‘bolas, afastaste-te radicalmente do fado’. O fado continua lá, nos concertos ele está e vai estar sempre, mas isto foi o que me apeteceu fazer agora. Esta linguagem nasceu em cima do palco, somos nós os quatro a conversar.
“O palco é o meu melhor terapeuta. Consegui sempre dar a volta ali em cima”
Este projeto musical já é mais um Cristina Branco Quartet, ou quarteto da Cristina Branco? Já é difícil descolar da formação que tem com estes três elementos, Bernardo Couto, Bernardo Moreira e Luís Figueiredo?
Não os dissocio de mim, é verdade. Não diria que é quartet, mas as pessoas quando pensam em mim pensam neles três também. Não me consigo separar deles musicalmente, somos uma grande família. É daquelas coisas: raridades, diamantes que acontecem na vida.
Demorou tempo… primeiro chegou o Bernardo Couto, uns anos mais tarde o [Bernardo] Moreira, mais recentemente o Luís [Figueiredo]. É muito engraçado, o Luís foi o último a entrar e durante um tempo não conseguimos juntar-nos os quatro, fomos tocando com substitutos. O Luís ainda tinha de assumir alguns compromissos anteriores, o Couto estava muito possivelmente com o [António] Zambujo e houve concertos em que não nos encontrámos. A primeira vez em que estivemos os quatro foi em Moscovo e nunca mais nos vamos esquecer: entrámos em palco e aquilo de repente parecia que tínhamos ímans, ficou completamente tight naquele instante. De repente olhas para tudo o que está atrás e pensas: é isto, caramba.
Voltando às canções: o facto de as pedir a outros compositores e letristas faz com que seja mais importante apresentar-lhes conceitos, chapéus de chuva narrativos, elos comuns para colar os temas?
Para mim é vital. O único disco que acho que não tem um conceito é o Branco. Branco é o meu nome, foi assumir o meu novo normal. Todos os outros têm um conceito. Acho que este é aquele que me define mais e que está mais perto de mim, mas de facto quando peço canções a outras pessoas … não sou autora, portanto parto sempre desse exercício.
Bom, neste disco também é autora: escreveu a letra de um dos temas…
Vai ser a Eva Haussman a assinar.
E equaciona vir a escrever mais letras futuramente?
Não sei escrever letras. Escrevo prosa e até venho do jornalismo. Sou taxativa, aquilo que escrevo é tudo hiper pragmático. Escrevo porque é a minha maneira de arrumar as minhas ideias. Aquilo ajuda-me a baixar. Escrevi efetivamente aquele texto, era quase uma prosa poética se quisermos e de repente fiquei com medo: de mim… apetecia-me dar aquilo a conhecer mas não sabia exatamente como.
O André [Henriques] é alguém com quem estou sempre a falar, trocamos imensas ideias. É uma conversa que se iniciou no [disco] Menina e que nunca mais parou, somos de facto muito próximos. Então mostrei-lhe o texto. O André ajudou-me a… sei lá, às vezes é só trocar uma frase, mudar uma palavra. Perguntei-lhe: ‘Queres assinar tu? Não sei se quero assinar, não te importas?’. Ele é que me obrigou, disse-me: tens de assinar porque isto é teu, só mudei as peças do puzzle. Não tenho o hábito de escrever assim. Pelo menos por enquanto acho que não vai acontecer muito.
A sua letra acompanha uma composição do seu guitarrista, Bernardo Couto…
Mostrei aquilo e a última coisa que esperaria era que o Bernardo Couto me dissesse: não dês isto a ninguém, isto é para mim. Foi muito fixe aquilo ficar na nossa família, foi muito bom. É a primeira música que o Bernardo escreve para alguém e é uma ‘musicaça’.
Bernardo Couto que, curiosamente, neste disco não toca guitarra portuguesa da forma mais convencional.
Aquilo que tentámos fazer aqui com a sonoridade da guitarra foi distanciá-la de tudo o que se faz habitualmente, daquilo que é a oficina do fado. O Bernardo explora aqui centenas de sons que nunca ninguém explorou. Está a fazer um exercício que nunca foi feito antes.
Já disse que dá algumas sugestões e pistas aos autores a quem pede canções, relativamente a temas sobre os quais gostaria de cantar. E musicalmente, dá-lhes orientações ou só interfere na sonoridade depois de as canções lhe chegarem?
Posso explicar o processo, é muito simples. Primeiro escrevo para mim, penso no que quero, no exercício que quero fazer com os autores. Neste caso o que aconteceu foi mostrar-lhes a biografia da Eva e mostrar-lhes excertos do meu próprio diário, de janeiro de 2018 a janeiro de 2019, que é quando há uma cisão e uma mudança brutal na minha vida. Fiz questão que eles tomassem conhecimento disso.
Bom, nem todos os autores receberam esses conteúdos. Aqueles que achei que tinham mais empatia com a personalidade da Eva e com a minha — e com quem já tenho alguma intimidade — receberam esses diários. No caso de metade destes autores, passou por simplesmente explicar-lhes que havia este alter-ego, que a Eva era este tipo de pessoa, quais eram as premissas, o quão importante era esta indagação sobre ‘o que é a tua liberdade?’. Musicalmente tinham toda a liberdade para criarem dentro do seu próprio universo musical. Para já porque isso dá uma liberdade e um ar porreiro ao disco, porque permite que eles criem dentro do seu próprio universo e que as canções possam disparar para sítios diferentes. Aceitamos isso sem medo nenhum, porque nós fazemos depois essa unidade. Quando pegamos nas canções sabemos que temos três instrumentos, que podemos adicionar coisas diferentes — assobios, percussões, arcos, neste disco então fizemos tudo e um par de botas. Isto acaba por ser a música deles recriada e revivida por nós.
Eles surpreendem-se muito com as voltas que as canções levam já depois de as terem enviado? Já ouviu reações dos autores aos temas deste disco?
Tenho referências como “pá, gostei muito”. Mas de certeza que vai aparecer alguém numa rádio ou num jornal a dizer: ah, não estava nada à espera [que soasse assim]. Mas é um máximo, adoro isso.
Mostrar excertos do seu diário a alguns dos autores que escreveram canções para este disco implica, como dizia, intimidade. Foi-lhe difícil partilhar coisas tão pessoais com eles?
Tive de perder o medo. É preciso. Até comentei com o André [Henrique]: olhando para isto que vos enviei, dá-me algum receio que possam pensar que não estou fixe, que estou a cair aqui numa espiral. Às vezes as pessoas olham de fora e não percebem que não estar bem mentalmente é efetivamente um problema mas não é a loucura. Quer dizer, faz parte da vida.
De repente a nossa sociedade… é como se fosse um tabu, não podes estar mal. Ouve-se: ‘Aquele gajo está deprimido, não é?’ Nem sequer é uma questão de estar deprimida, esse exercício [de escrita] é uma catarse. Eu saí dali. Consegui-o, escrevendo e mostrando o que escrevi. Foi importante. O André [Henriques] e a Francisca [Cortesão] disseram-me: ‘pá, é assim mesmo, porreiro, é importante que as pessoas digam as coisa’s. Podia dizer: ‘Esta não sou eu’. A Eva de facto existe, mas é preciso dizer que sou eu, sim. E às vezes não estou bem, não. O palco é importante? É importantíssimo. É o meu melhor terapeuta de sempre, faço tudo em cima daquele palco. Consigo sempre até hoje… consegui sempre dar a volta ali em cima.
Imagino que às vezes seja complicado…
É a minha forma… a música salva-me sempre, sempre! Qual comprimidos… estou farta de poupar dinheiro.
“Nunca fui propriamente fadista”
A Cristina Branco tem um percurso internacional de relevo, atua regularmente em muitos países europeus, em especial nos Países Baixos. Fora de Portugal, sente que compreendem a sua música? E que compreendem que isto já não é exatamente fado?
Se calhar as pessoas associaram-me ao fado porque fui sempre cantando fado, visualmente houve uma altura em as coisas aproximavam-se muito desse universo e efetivamente os concertos foram sempre ao encontro disso. As pessoas compravam o seu bilhete para ir a um concerto de fado. Felizmente hoje em dia isso não acontece. Mas também é importante dizer que desde o primeiro disco tentei fazer uma desconstrução do fado tradicional.
Nunca fui propriamente fadista… desde o primeiro disco, desde o primeiro concerto. Isso esteve sempre implícito. A partir do Menina as coisas mudaram mas a mudança foi feita gradualmente, fomos esbatendo as margens. E fizemo-lo muito através da imagem, também, que era uma coisa que não estava a acontecer. Era importante as pessoas perderem aquela ideia que a minha música era uma coisa pesada, que era uma coisa solene. Desde logo porque nunca fui assim, posso ter passado essa ideia mas não sou nada assim e quem me conhece sabe.
Esse distanciamento do universo musical do fado acontece porque foi-lhe apetecendo cada vez menos cantar as palavras e os temas predominantes no fado ou porque foi-lhe apetecendo cada vez menos cantar o registo musical do fado?
As duas coisas tiveram que se conjugar. Só num determinado ambiente é que percebes que estás à vontade para ir por aí fora e musicalmente poder seguir um caminho no qual és feliz. Adoro fado e adoro fado tradicional, cada vez mais. Quando canto fado hoje em dia tem mesmo de ser aquilo, a tradição e ponto final, não há cá misturadas. É o que me apetece fazer quando canto fado. Agora tudo o resto vai para outras paragens.
Neste disco não sei, não pensei sobre isso ainda, mas não tem [muito fado], não há essa referência, é outra coisa. São coisas de que preciso para criar e para evoluir: não me imagino uma cantora desde o primeiro disco até hoje, 22 anos depois, a ficar no mesmo sítio. Para mim era impensável. Como nunca quis ser, mesmo quando acabei o meu curso, aquela jornalista do horário 9h-17h. Acho que isso pode funcionar com muitas pessoas, ainda bem, comigo não funcionaria nunca. A minha cabeça está sempre a trabalhar e preciso de evoluir ao longo do tempo.
Tendo estado ao longo destes anos tanto tempo dentro e fora de Portugal, como cantora, como vê o rumo recente da música portuguesa de que se ‘alimenta’ para este disco, com estes autores? Ou seja, o que é que tem sido bem feito e o que é que está a correr mal?
Temos muito bons autores, boas pessoas a escrever e a compor. Aqui de repente, sem querer deixar ninguém de fora, o André [Henriques] para mim é assim qualquer coisa. O [Filipe] Sambado, também. O Pedro [da Silva Martins], que foi um dos que também recebeu os textos, é uma pessoa que se calhar de facto existe na minha vida há muito mais tempo, até, e que me percebe exatamente. Eles estão na linha da frente das coisas, estão a fazer coisas bonitas, onde podemos ir buscar inspiração a toda a hora. Estão a criar coisas novas. Este universo novo do Sambado é hiper interessante, esta coisa de ir buscar a tradição é incrível e faz todo o sentido neste momento.
Também temos coisas menos boas. Não posso estar sempre a dizer: a música está ótima… não. Lamento, tenho quase 50 anos, não vou continuar a dizer isto. Não são só coisas boas, temos coisas más a acontecer, temos muito lixo também, temos muita coisa que é menos interessante. Não significa que não seja um ponto de partida para coisas melhores, porque todos tivemos de começar algures, mas nem tudo é ótimo. Há muitas coisas que são performance. Para mim que sou cantora, que venho da música e vou continuar na música, custa-me imenso. Posso estar a dizer uma alarvidade ou uma enormidade que vai levar as pessoas a porem as mãos na cabeça, mas a música para mim tem de continuar a ser música. Quando vou a um concerto, vou ouvir música. E porreiro se sou surpreendida com a parte cénica e se vai ser uma coisa mega trendy, ótimo, ainda bem, mas a música tem de estar primeiro. E há muitas coisas que as pessoas não estão a valorizar, nomeadamente a própria música. Existem hoje grandes músicos em Portugal que têm dificuldade em trabalhar, não podem, porque isto suplantou a qualidade.
Há pouco tempo, numa entrevista, o Filipe Sambado contava-nos que só agora aos 34 anos é que está a tentar ser músico full-time — apesar do reconhecimento da crítica que teve até aqui. Não estou certo que os ouvintes portugueses de música, por exemplo do indie, tenham noção das dificuldades do mercado para estes autores. É um problema da dimensão do mercado?
Pode-se pôr muita areia nesta equação. De facto é um mercado muito específico. Portugal tem uma maneira de olhar para a música, para os seus autores, muito particular. Se o vizinho do lado gosta daquilo é bom, mesmo que seja uma merda. Acontece milhares de vezes. Fico louca às vezes, como é possível? É incrível! Para quem vive da música é muito injusto. E há outra coisa que noto em Portugal: cá, a idade é uma limitação. Lá fora não, é estatuto.
Sente realmente que em Portugal a idade dos músicos e cantores é uma limitação?
Às vezes sinto. Às vezes sente-se. É uma coisa subtil, mas sente-se. Tem de se estar completamente e permanentemente em cima [para continuar a ser sucesso].
É uma limitação em moldes iguais para homens e para mulheres?
Não sei, não estou do outro lado, não faço ideia. Sei que lá fora é muito diferente. Há um respeito. Sou uma corredora de fundo, tenho uma carreira de 22 anos e lá fora isso é reconhecido. Claro que é reconhecido. Aqui é diferente, sinto que é. As coisas têm muito para mudar. Ouvi sempre dizer que as coisas aqui demoram, que o processo é muito lento comparativamente com outros sítios.
Também não estamos muito preparados, começámos a crescer na música há muito pouco tempo. Há uma imaturidade do público da música e do espetáculo no nosso país. De repente agora há mais escolas de música, conservatórios, especializações. Neste momento há putos incríveis a tocar no nosso país, mas é uma coisa recente. Esta gente toda vai crescer e acho que vamos chegar lá, mas começámos há pouco tempo, o momento ainda é de alguma imaturidade.
É vendo ao vivo músicos e cantores — como a Cristina Branco e os seus instrumentistas — que se percebe melhor o que é performance e o que é música, mesmo que performativa?
Sim, sim. Esta ideia que temos que tudo se passa no nosso telemóvel… há coisas que ainda não se passam lá dentro. Por isso é que também quis gravar o disco ao vivo. Acontecia ouvir pessoas dizer: adoro o disco mas ao vivo, vendo-vos, é outra coisa. Era isto que nos estava a faltar. Foi tão bom aquele tempo que passámos a macerar as coisas, a entendermo-nos, a vivermos solidamente os quatro e a criar naquele instante. Estávamos com sede de dar às pessoas aquilo que é o nosso ouro.
Mas gravar ao vivo também implica estar mais sem rede. É preciso bagagem para que corra bem, não?
É preciso ter muita estrada, ter uma empatia como a que temos. Não sei se acontecerá com todos os grupos que andam na estrada, se acontece da mesma maneira. Aqui acontece e nós sabíamos que isso tinha de passar para dentro do disco porque é o nosso ouro.