Percorre-se sala atrás de sala e o sentimento é de pequenez perante uma imensidão que quantificada resulta em 1800 metros quadrados de área expositiva. O contraste das futuras instalações do Museu Nacional da Música (MNM), em Mafra, é gritante com o espaço na estação de metropolitano do Alto dos Moinhos, em Lisboa, onde o museu chegou em 1994 numa situação então anunciada como provisória, mas que se manteve até hoje.
Quem nos guia pelas 15 salas vazias, ainda com entulho no chão e muito trabalho a fazer, é Edward Ayres de Abreu, musicólogo, compositor português e desde setembro diretor do MNM. Assumiu o cargo num momento-chave: a instituição está finalmente em processo de mudança para o Real Edifício de Mafra — que é composto pelo Palácio, a Basílica, o Convento, o Jardim do Cerco e a Tapada. O museu ocupará parte do que foi em tempos área do Palácio, recentemente usada pela Escola Prática de Infantaria.
A abertura chegou a estar apontada para 2023. Afinal, não deverá chegar antes de 2024. Dentro de semanas começarão as obras, uma empreitada que tem o custo de 5.557 milhões (mais IVA), com o Município de Mafra a contribuir com 1 milhão — o resto é proveniente do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).
Em entrevista ao Observador, Edward Ayres de Abreu fala sobre as expectativas para a instituição que dirige, que quer internacional, aberta e inclusiva, critica a falta de autonomia dos equipamentos e condena a abertura de novos espaços museológicos.
No verão passado, a antiga diretora do Museu Nacional da Música, Graça Mendes Pinto, disse que a instalação do museu no Palácio Nacional de Mafra estava “numa fase bastante avançada”. Em que fase está hoje?
O projeto de instalação do Museu Nacional da Música é um projeto já com muitos anos. No sentido em que há uma equipa de arquitetura e de design a trabalhar sobre o projeto, está de facto bastante avançado, está tudo praticamente definido. Agora a obra ainda não começou, vai começar dentro de semanas.
Qual é a previsão de abertura?
Estamos a apontar para o segundo semestre de 2024.
O projeto vencedor do concurso público foi o dos gabinetes de arquitetura Site Specific e P06 Atelier. Como é que este projeto de instalação do museu vai transformar o edifício?
Não vai alterar de maneira nenhuma, nem pode, porque é um edifício classificado, de resto um edifício belíssimo e importantíssimo na nossa história e na história também da arquitetura. É um projeto bastante sóbrio que passa pela instalação de vitrines ao centro das salas, mas elas próprias também delicadas. O que a equipa de arquitetura pretendeu foi precisamente destacar a beleza do edifício e manter a sua unidade e a sua história o mais possível intocáveis.
Numa entrevista ao Jornal de Negócios pouco depois do anúncio da sua nomeação disse que sabia que era visto como um corpo estranho no meio museológico. Porque acha que foi o escolhido?
Acredito que tenha sido escolhido pela qualidade e pelo interesse da minha proposta, que de resto tem sido já apresentada publicamente e temos vindo já a mostrar alguns resultados. Tenho aliás pena que os processos de concursos públicos para cargos dirigentes não sejam mais públicos. Teria gostado muito de em processo de candidatura ter apresentado publicamente o meu projeto e ter ouvido também publicamente os projetos dos meus colegas, porque seguramente tínhamos todos muito a aprender uns com os outros. Acredito muito que é assim que se fazem as coisas, democraticamente, transparentemente e coletivamente.
Não poderia ter apresentado o seu projeto publicamente antes de o submeter a concurso?
Boa questão…
Ou acha que essa exigência deveria partir das instituições?
Não exijo nada. Do ponto de vista processual é muito saudável que a comunidade acompanhe os grandes projetos de construção e de desenvolvimento das nossas instituições culturais e não só. Essa participação beneficiaria seguramente até um melhor aprofundamento dos nossos projetos. A participação, durante o meu exercício, provocou já alterações fantásticas ao que tem vindo a ser a minha direção. Essa abertura fez-nos enquanto equipa crescer melhor e mais depressa. Este processo de redefinição do que é o Museu Nacional da Música foi desde o princípio um projeto aberto e coletivo. Apresentei-o publicamente no Alto dos Moinhos em pelo menos uma ocasião, apresentei-o depois a turmas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a uma série de investigadores, músicos, construtores de instrumentos musicais, a um conselho consultivo informal que instituí para acompanhar este processo. Este diálogo que de repente brotou desse desencontro ajudou a transformar e, acredito eu, a melhorar este projeto. Quando iniciei as minhas funções, em setembro, o projeto de arquitetura e design já estava bastante adiantado, mas deu-se a oportunidade de rever radicalmente o projeto museográfico, ou seja, de que forma é que o museu apresentaria a sua exposição e como é que se definiria estruturalmente.
Houve grandes alterações ao que estava previsto?
Fiz tábua rasa do que estava previsto, com muito poucas exceções. Para explicar de uma forma muito corriqueira: o que estava previsto em termos estruturais era replicar aquilo que é o museu hoje, e o museu hoje é um museu que se estrutura em torno de um sistema de classificação de instrumentos musicais tradicional. É um sistema que foi lançado por dois musicólogos importantes, Hornbostel e Sachs, e que, basicamente, classifica os instrumentos musicais em algumas, poucas categorias, aerofones, cordofones, membranofones, idiofones e agora mais recentemente, eletrofones. Portanto, o que nós teríamos era uma sala só com aerofones, tudo o que fosse instrumentos de sopro, uma sala com cordofones, uma sala com membranofones, etc. Do ponto de vista pedagógico tem algum interesse e graça, dá para fazer atividades curiosas com miúdos, como explicar que isto é uma flauta e funciona assim porque o ar passa por esta peça e provoca certo tipo de efeito. Mas isto não nos diz nada sobre a música em si, sobre porque é que a flauta era assim e não de outra forma, quando é que se tocava flauta, em que contextos históricos e em que contextos de prática musical. Não nos diz nada sobre a história da música, sobre os repertórios, sobre as pessoas que tocavam os instrumentos, sobre os construtores de instrumentos musicais.
O que procurámos fazer foi rever esta lógica procurando oferecer ao visitante várias histórias possíveis. Quisemos oferecer um discurso que permita saber mais o que é a música, em que contextos é que se fazia e se faz música. Acreditamos que o visitante sairá do museu com uma visão mais enriquecida sobre o que é a nossa própria história da música em Portugal. Este trabalho teve também uma espécie de experiência prática muito interessante. Uma das grandes críticas que se fazia ao museu da música e que se faz a muitos museus da música no mundo é de que são espaços silenciosos. Estamos a olhar para as vitrines, para objetos muito bonitos, mas não sai dali som nenhum. Não sai por várias razões. Primeiro, porque há instrumentos que de facto já não podem ser tocados, porque são peças históricas que já não estão a funcionar e nem podem ser postas em funcionamento. Há também uma certa tradição de se fazerem museus mudos. A prática de integrar o som em museus é uma relativamente recente na museologia em geral. Sabíamos isto, tínhamos essa consciência, que era uma realidade muito criticada pelos visitantes, que queriam saber mais sobre os instrumentos musicais e que queriam ouvir os instrumentos. Queriam sair do museu com um bocadinho de música dentro deles em vez de estarem só a olhar para objetos mudos atrás de vitrines. Isto foi debatido em grupo e tentamos arranjar uma forma muito económica e simples de responder a este desafio já pensando em Mafra, como experiência para perceber de que forma é que certo tipo de medidas poderia impactar o visitante.
Chegamos a uma solução ridiculamente simples, ao imprimir uns cartazes e aproveitar instrumentos musicais que já tínhamos. São peças que não são peças de museu, mas peças que eram utilizadas pelo sistema educativo quando vinha alguma escola e queríamos mostrar como soava certo instrumento. Pegamos em 12 dessas peças e colocámo-las ao longo da exposição, que podemos agora visitar em Lisboa. O objetivo é que as pessoas possam tocar nas peças, sentir-lhes o peso, manusear, eventualmente experimentar tocar em algumas delas. Temos lá um xilofone, um tambor, instrumentos que as pessoas podem experimentar tocar. Isto teve um impacto fantástico. Estatisticamente percebemos que duplicamos a percentagem de visitas longas e que reduzimos a percentagem de visitas curtas ao museu. As pessoas demoram-se muito mais na nossa exposição e começamos a receber muitos mais elogios escritos, de pessoas, famílias, crianças, que justamente destacavam a felicidade que é de repente poder tocar num instrumento, fazer um bocadinho de música e ter esta experiência mais direta de como é que a música funciona.
Após nove meses no cargo já consegue fazer um balanço?
Foram nove meses extenuantes justamente porque estamos numa grande aceleração a redefinir o que é o museu e já estamos na fase final do que é a museografia do museu. Não prescindimos de fazer algumas experiências ainda em Lisboa para atualizar e tornar mais dinâmica a exposição. Recentemente inauguramos uma vitrine nova só com eletrofones, que era uma categoria que faltava no nosso museu. Pareceu-nos incontornável, que era urgente falar desta história da música mais recente, que explica muito do que é a nossa contemporaneidade. Nesse sentido, e tendo em conta que continuamos a manter uma programação de concertos bastante intensa que já vem de trás, o balanço é positivo. Sobretudo sinto que continuo entusiasmado (risos). As coisas estão a correr muito bem e sei também que finalmente consegui criar trabalho de equipa no museu, coisa que não existia. Sinto que a equipa está muito mais motivada com o projeto de Mafra que não é, como sabe, uma solução pacífica.
A seu ver é a solução ideal?
Acredito genuinamente que sim. Muito tempo antes de me imaginar a concorrer para Mafra tinha escrito um texto que elogiava a questão de o museu ir para Mafra, por várias razões. Obviamente que sendo muito racional, objetivo e realista, não há soluções perfeitas e acredito muito nas virtudes de muitos outros projetos que estiveram em cima da mesa. Tive a felicidade de me cruzar com a documentação do projeto de instalação do museu no Porto, nos anos 80, ao fazer uma revisão do arquivo do museu, e achei o projeto muito interessante. Também ficaria muito feliz se o museu tivesse ido para o Porto. Ter o museu em Évora também tinha as suas virtudes, não era completamente despropositado, pelo contrário. A ideia de ter o museu em Lisboa obviamente também seria muito razoável a vários níveis.
Agora, muito honestamente, e pessoalmente, acho que de todas estas opções a de Mafra é a mais interessante. É a melhor notícia possível para o Real Edifício de Mafra, mas é também uma notícia muito boa para o próprio museu. É um espaço que tem muito a ver com a nossa história da música e com a história da coleção do museu. Se pensarmos bem, só para dar um exemplo muito prático, vamos ter em Mafra os carrilhões, os seis órgãos, e um conjunto que possivelmente é a melhor coleção em Portugal de instrumentos de tecla do século XVIII e início do século XIX em Portugal. Este conjunto forma um todo eloquente do que é a história da música em Portugal naquela época, do que é a altíssima qualidade construtiva daquela época. Só por aí faria todo o sentido juntar simbolicamente no mesmo real edifício estes diferentes componentes. Há outra coisa que também me deixa muito feliz em Mafra, que é o potencial de crescimento do museu. Vamos ocupar uma ala que estava inutilizada já há muito tempo e há a perspetiva de crescer porque o edifício é gigantesco, é colossal. Abrem-se inúmeras possibilidades aqui para todos nós de o tornar ainda mais dinâmico a um médio, longo prazo.
A equipa atual do museu é constituída por quantos elementos?
A equipa nuclear tem oito pessoas e depois temos outros tantos voluntários e estagiários.
Com esta mudança de localização, toda a equipa está disponível para transitar para Mafra?
É uma questão que ainda estamos a discutir. Há alguns membros da equipa que não virão para Mafra porque preferem permanecer em Lisboa, naturalmente, têm a vida feita em Lisboa… Tenho dito que construir este museu vai ser também construir a equipa. Sei que vou ter pelo menos uma equipa parcialmente nova aqui em Mafra.
Uma das coisas que foi mencionada na visita há pouco foi o facto de ser para muitos a primeira vez que tinham estado nas instalações do museu.
Isso é uma coisa que me deixou surpreendido, foi perceber que todo o projeto de desenvolvimento do museu foi feito sem que houvesse trabalho de equipa internamente. Sem que a equipa tivesse visitado as instalações, sem que estivesse a par do que estava realmente em cima da mesa, do pormenor do trabalho museográfico. Mas isso foi corrigido.
Nos últimos anos têm surgido vários relatos de casos de museus nacionais com falta de recursos humanos, que já levaram ao fecho de salas ou ao encerramento total à hora de almoço, por falta de vigilantes. Já se falou também de falta de conservadores. No entanto, inauguram-se novos museus, como é o caso deste. Como olha para este contraste?
Permita-me que faça uma correção. Não vai ser inaugurado um novo museu, vai finalmente ser dada uma instalação normal a um museu que estava há 30 anos em instalações provisórias. A brincar costumo dizer que se devia proibir a inauguração de novos museus justamente porque que nas últimas décadas temos tido uma estratégia miserabilista para a cultura. Praticamente todos os museus nacionais diretamente sob a alçada do Estado sofrem com a escassez de recursos humanos, muitos têm más instalações, não têm climatização apropriada. Os problemas são inúmeros, são diversos, não se corrigem de um dia para o outro, mas são tantos que me fazem justamente pensar e dizer que nos devemos esforçar mais por revitalizar aquilo que já temos do que nos dispersamos por mais iniciativas. Nesse sentido, o que aconteceu com o Museu Nacional da Música é uma espécie de milagre tendo em conta a sua história atribulada. É mesmo um facto assim incrível termos conseguido finalmente ter instalações novas.
Estes constrangimentos estão de alguma forma a ser acautelados na dimensão do projeto? Por exemplo, na vigilância das cerca de 15 salas?
Sim. Há uma felicidade que é uma questão de contexto e da época que vivemos que é: ao fazer um projeto novo hoje em dia muitas dessas questões são respondidas já a priori pelo próprio projeto. Em termos de vigilância, de segurança, este é um museu que obviamente já terá esse equipamento por princípio. O que não acontece com todos.
Quando diz equipamento…
De videovigilância. Em Lisboa agora já temos, mas foi um upgrade, uma novidade relativamente recente. Há 30 anos o museu inaugurou sem sistema de videovigilância e só anos mais tarde é que foi possível passar a tê-lo. Há a felicidade de nós finalmente não só termos um museu renovado como que cumpre as necessidades básicas de um museu hoje em dia.
O diretor de um museu nacional tem autonomia para contrariar estes constrangimentos que vão surgindo?
Infelizmente, a autonomia é ainda muito reduzida. Estamos dependentes da Direção Geral de Património Cultural, que é uma instituição colossal que tem pessoas altamente qualificadas a trabalhar. Desde que iniciei funções não tive até agora nenhum constrangimento, nenhuma infelicidade burocrática. Tenho tido, pelo contrário, todo o apoio necessário. As respostas têm vindo sempre que as coloco, mas é uma equipa demasiado pequena para acompanhar a vida de 26 museus e monumentos. Por essa razão, há coisas que são ainda infelizmente demasiado centralizadas. Há boa vontade, as coisas não se mudam de um dia para o outro e tenho a maior esperança que as coisas vão mudando no melhor sentido que é o de dar mais autonomia aos museus. Em coisas tão corriqueiras e pequeninas como a gestão de um pequeno orçamento para a gestão diária das várias ocorrências…
Que hoje em dia não existe?
Hoje em dia, por exemplo, para fazer uma pequena exposição, tenho de passar toda e qualquer despesa pela DGPC. Há um aspeto positivo nisto, lá está, que é: ter pessoas a acompanhar de perto que nos esclarecerem todas e quaisquer dúvidas. Há um grande problema, que é: sermos demasiados museus a pedir a mesma coisa ao mesmo tempo para uns serviços centrais demasiadamente absorvidos pela imensidão de solicitações de que são objeto todos os dias.
Uma das soluções encontradas em alguns museus para resolver essas questões tem sido a captação de investimento privado. Tem uma estratégia para atrair mecenas para o museu? É uma prioridade?
Não é uma prioridade para hoje, mas é uma prioridade para amanhã. Por duas razões: primeiro, porque muito em breve vamos iniciar uma campanha de restauro. Vamos duplicar sensivelmente o número de peças a expor.
Atualmente, quanto da coleção está visível ao público?
Neste momento temos cerca de 20% das peças expostas, em Lisboa.
Por uma questão de espaço?
Sim. Vamos duplicar o número de peças que podem ser apreciadas pelo visitante.
Quantas vão estar à vista aqui, em Mafra?
Cerca de 500. Há muitas delas que precisam de restauro e a campanha de restauro vai iniciar-se. Uma parte da campanha de restauro queria justamente tornar pública no mais lato sentido do termo e convidar a sociedade civil e alguns mecenas a participar nessa construção coletiva que será o nosso Museu da Música.
À semelhança do que fez o Museu Nacional de Arte Antiga com Domingos Sequeira? [Em 2015, o MNAA lançou a campanha “Vamos pôr o Sequeira no Lugar Certo“, desafiando os portugueses a patrocinar a compra de “A Adoração dos Magos”, pintura fundamental de Domingos Sequeira, de 1828].
Sim, mas no nosso caso será para mais peças e com um orçamento de restauro muito menor. É muito importante que haja esta participação pública. O Estado somos nós. É muito importante num país que não está habituado a ter mecenas que tentemos fomentar este diálogo entre o mundo empresarial, a sociedade civil em geral e aquilo que são os nossos museus. Há também um outro ponto para o qual me interessa muito cativar mecenas a médio longo prazo que é naturalmente a criação, desenvolvimento e circulação de exposições temporárias.
Fazendo jus ao caráter “nacional” do museu.
Isso leva-me a outra questão importantíssima também que está no meu projeto que é de facto tentar que o museu seja mais nacional do que tem sido.
Isso significa concretamente o quê?
Por exemplo, esta ideia de circulação de exposições temporárias. Significa também levar o serviço educativo do museu a outras instituições. Aliás, já começámos a fazer isso. Desde que iniciei funções já estivemos em Mesão Frio, Coimbra, Santiago de Compostela, Madrid, com atividades de divulgação do museu, com visitas virtuais guiadas. Há várias atividades que queremos fazer. Mesmo vindo para Mafra teremos uma espécie de polo em Lisboa, não um polo no sentido museológico, mas um espaço de apresentação justamente do serviço educativo para que possamos continuar a desenvolver algumas atividades junto de escolas. Além de Lisboa queremos levar esta ideia a outras regiões do país. Depois há a questão da internacionalização, que me interessa muito e que passa por tornar este museu, que acredito que poderá vir a ser referencial no domínio dos museus de música, mais presente e mais afirmativo no panorama internacional.
Há alguma referência internacional a que reconheça qualidades que no Museu Nacional da Música queira replicar?
Sem dúvida. O museu da música de Paris, o MET (The Metropolitan Museum of Art), em Nova Iorque, tem uma coleção de música bastante importante e sofreu uma remodelação muito interessante em 2018, se não estou em erro. O museu da música de Bruxelas pelo valor da sua coleção extraordinária. As referências essenciais são essas. Depois há toda uma vasta gama de experiências de museologia do som que tem vindo a ser exploradas, sobretudo em museus do Reino Unido, e não só, de museus que não são de música, mas que têm procurado integrar som nas suas exposições, que também tem suscitado maior interesse e há toda uma literatura sobre museologia do som e da música dos últimos 60 anos que seria impossível ignorar e que norteia o trabalho que nós fizemos nos últimos oito meses.
Esse polo em Lisboa ficará onde?
Ainda não posso revelar, mas estamos em negociações com uma instituição cultural muito importante, não museológica.
Pública?
Não. A ideia será termos ali uma série de atividades do serviço educativo.
Em 2022, o MNM teve 7.328 visitantes. É um dos museus da DGPC menos visitados, ao lado da Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, o Museu Nacional de Etnologia, ambos em Lisboa, e o Museu Nacional Resistência e Liberdade, em Peniche.
Os números são muito maus e preocupam-me a médio e longo prazo. No imediato estava mais preocupado com a qualidade da visita do que com a quantidade de visitantes. E com a qualidade já melhoramos imenso, temos missão cumprida. Em relação à quantidade é algo que me preocupa. Pretende-se que o museu nacional seja um museu de proximidade com o país, com todas as escolas de música do país, com as universidades, com os melómanos, com as pessoas que não gostam de música, com todos os públicos. Essa tem de ser uma dimensão muito presente no museu, contrariando a mais possível ideia de que somos um museu dedicado à música de tradição erudita ocidental, pelo contrário, queremos que as pessoas sintam que o museu nos fala também das mais diversas linguagens musicais e isso de alguma forma estará integrado na nossa expografia.
Será um museu onde encontraremos todos os géneros de música?
Há uma contingência de princípio que é a nossa coleção. Não podemos criar um museu com coisas que não temos. É verdade que grande parte da nossa coleção fala-nos mais da história do que é, do que foi o desenvolvimento da música dita clássica em Portugal do que das outras linguagens. Mas é curioso porque no nosso acervo temos também essas outras linguagens representadas, mesmo que em menor grau. Esse é um ponto assente. Queremos evocar essas realidades na exposição, vamos tê-las representadas. Nem que seja numa grande sala de escuta.
Voltando aos números..
Obviamente que é uma preocupação de qualquer diretor de um museu, mas vindo para Mafra ficaria muito surpreendido se não aumentássemos imenso o número de visitantes, mesmo sem fazermos esforço nenhum. É claro que estamos a fazer todos os esforços, mas o Palácio de Mafra teve no ano pré-pandemia mais de 300 mil visitantes. Obviamente nem todos irão ao Museu Nacional da Música… Mas estou em crer que teremos muitos mais visitantes e que a qualidade da nossa exposição vai atrair mais visitantes do que atrai agora.
Tem alguma expectativa de número de visitantes?
Não tenho.
Qual é a atual proporção de estrangeiros no total das entradas?
12%. Mas quero um museu aberto a todos os públicos, não é uma coisa que me preocupe necessariamente.
Não influencia a forma como a coleção é exposta, se tem um público mais estrangeiro ou mais português?
Ao fazer esta grande revisão de inventário, ao ver peça a peça o que deveríamos expor e não expor, a grande preocupação que tivemos foi a de ter um museu que fosse uma novidade para todos os públicos. A verdade é que sendo uma novidade para os públicos estrangeiros sê-lo-á também para os nacionais, porque temos coisas incríveis que estão nas reservas há imenso tempo. É um museu que se vai distinguir muito dos outros museus de música europeus, mas vai ser uma surpresa para toda a gente.
É recorrente quando se fala do Museu Nacional da Música a menção de que tem “uma das mais ricas coleções da Europa”. Esta afirmação baseia-se em quê? A coleção já foi avaliada?
Algumas peças já foram avaliadas, a coleção toda não. Não do ponto de vista comercial. Do ponto de vista histórico temos a felicidade de ver reunidas nesta coleção peças de um valor inestimável, a começar por exemplo pelos cravos Antunes, que por várias razões, entre elas o terramoto de Lisboa, mas não só, são instrumentos raríssimos, mas que testemunham uma qualidade construtiva ímpar, de uma família de construtores de instrumentos musicais em Portugal. É uma coisa engraçada, apesar de termos a ideia de que temos peças de grande valor e de grande raridade a nível mundial, não conhecemos bem a coleção. O trabalho de revisão de inventário que fizemos nos últimos 8 meses, e que de certa forma ainda estamos a fazer, permitiu-nos corrigir vários erros de inventário, identificar peças que não sabíamos bem onde é que estavam, juntar peças de instrumentos que estavam separadas e que de repente fizeram sentido. Isto consolidou e ampliou esta consciência de que temos uma coleção muito especial. Temos peças raríssimas a nível europeu. Houvesse mais espaço do que aquele que vamos ter, e que já é mais do que temos agora, e poderíamos expor ainda mais algumas peças realmente muito interessantes e muito pertinentes no que é a construção de um museu de música referencial.
Disse que atualmente “o Museu Nacional da Música é pouco mais do que um gabinete de curiosidades”. Referia-se aos limites da coleção ou à forma como este estava organizado?
Referia-me à lógica como o museu foi pensado enquanto exposição.
Falando do acervo, desde a sua chegada houve alguma aquisição para a coleção?
Várias. Quer dizer, aquisição, aquisição ainda não houve, mas já houve várias doações muito importantes.
Em julho foi noticiado que a Fundação Calouste Gulbenkian ia entregar ao Museu Nacional da Música (MNM) o espólio do compositor e pianista José Vianna da Motta (1848-1968), que tinha à sua guarda. Na altura foi dito que não era imediato. Já foi entregue?
Já foi assinado o protocolo. Nesse caso específico considerou-se desnecessário fazer a mudança já que estamos prestes a começar as obras e portanto far-se-á diretamente aqui para Mafra, sem passar pelo Alto dos Moinhos. Não faria sentido, seria um gasto desnecessário. Mas tem havido várias doações importantes. O museu está sempre a crescer.
Que outras doações?
Desde que cheguei: dois pianos verticais, uma marimba extremamente interessante, uma grande coleção de revistas de audiofilia e uma coleção muito importante de livros e de partituras de música que assim que estiver inventariada vai ser objeto de uma notícia pública.
De doadores privados.
Sim. A perspetiva natural é de crescimento [da coleção]. É missão de um museu nacional da música responder à necessidade de preservação, de investigação e de comunicação do nosso património musical. A triste realidade em Portugal é que, sendo o nosso ecossistema musical ainda tão frágil a vários níveis, sabemos todos os dias que há espólios importantíssimos que vão para o lixo. Nesse sentido cabe também a um museu que se pretende referencial ser a casa de acolhimento desse património que, de outra forma, seria perdido e constituiria uma perda muito grande para o que é a nossa história da música. Há ainda acervos de extrema importância em situação de perigo.
É o caso de alguma parte do museu nacional da música? Ou refere-se a outros?
A outros. O nosso está salvaguardado, felizmente.
Nas várias vidas que já teve o museu não se perderam…
Ah, não, isso sim, obviamente. Aliás, o Museu Nacional da Música deve muito da sua história aos colecionadores fundadores, o Michel’angelo Lambertini, o Alfredo Keil, que é o autor do nosso hino nacional. Não temos hoje no museu tudo o que estas figuras tiveram. Entretanto houve coisas que as famílias venderam, os espólios desmembraram-se, e isso é motivo de grande infelicidade. Posso dar um exemplo muito curioso: vamos ter um conjunto de batutas em exposição, que é uma coisa que não temos em Lisboa, e tenho muita pena de não poder mostrar nenhuma batuta de mulher, de maestra. É muito importante mostrar esta representação de género, mostrar que houve mulheres a reger orquestras na história de Portugal, que a história da música não é feita só de maestros. Descobrimos que o Alfredo Keil tinha batutas de maestras de convento, mas é um daqueles exemplos de algo que não sobreviveu até aos dias de hoje, não está nas nossas coleções. Já esteve na coleção do Alfredo Keil. Não sabemos, talvez os herdeiros tenham vendido, eventualmente ter-se-á perdido… Essas infelicidades ao longo da história do museu da música, que é muito atribulada, foram acontecendo.
Em 2022, um estudo da Fundação Gulbenkian sobre as práticas culturais dos portugueses revelava que nos 12 meses anteriores ao início da pandemia, só 28% dos inquiridos frequentaram museus. É este o principal desafio de um museu em 2023, conquistar público?
O museu, por obrigação institucional do que é a sua missão, tem de se dedicar aos públicos que o visitam em potência. O Museu Nacional da Música é um museu que tem de ter muito presente essa missão pública de crescimento coletivo do que somos como pessoas. O museu tem de fazer parte do quotidiano dos portugueses. Essa é uma premissa básica do nosso serviço educativo que queremos reforçar e desenvolver.
Disse que com o Museu da Música, em Mafra, vai também funcionar um centro de investigação e de formação dedicado às ciências musicais, fruto de uma parceria com a Universidade Nova de Lisboa. De que forma é que isso vai acontecer?
Os moldes precisos ainda não estão definidos. Tudo isso se deve à visão extraordinária do presidente do município de Mafra, que quer fazer de Mafra um grande polo cultural, mais especificamente um polo musical. É disso mesmo que necessitamos: de diálogo entre as instituições. O museu da música sairá enormemente enriquecido com o facto de ter muito perto investigadores da Nova a trabalhar sobre os assuntos mais diversos, como ganhará ao ter o Arquivo Nacional do Som também aqui muito perto. Como de resto beneficia ter o Palácio Nacional de Mafra, que já tem uma programação musical muito viva e muito dinâmica. É este diálogo interinstitucional que nos faz crescer.
Que legado espera deixar no Museu Nacional da Música?
Espero deixar um museu de referência, não só no âmbito do que são museus de música, mas um museu de referência a título geral em Portugal. Desde esta reflexão sobre como estruturar um discurso expositivo num museu do século XXI, até pensarmos de que forma podemos tornar os museus mais inclusivos para os mais diversos públicos. A minha vontade é que este museu responda a isso.
Falando de inclusão, acaba de ser instalado um elevador no futuro museu, algo que não existia até então no palácio. Que outros aspetos estão a ser acautelados para assegurar a acessibilidade?
Posso dar um exemplo muito objetivo: há uma sala grande em que o visitante é confrontado com música. Teremos som, obviamente, mas teremos também uma instalação tátil que permitirá ao público com dificuldades auditivas sentir o som que está a passar através de vibrações. Porque a música também é gesto e imagem, teremos ecrãs que complementarão a experiência musical. A nossa ideia é oferecer um produto que responda a toda a gente. Estamos preocupados com isso e esse é um dos exemplos de uma solução inclusiva que estamos a desenvolver.
Tal como no Museu do Tesouro Real, localizado no interior do Palácio Nacional da Ajuda, também aqui visitar o museu implica entrar no Palácio antes. Acha que dar-se-á o caso de alguém visitar só o museu?
Acho. Aliás, no imediato acredito que a experiência de visitação do Museu Nacional da Música para muitos visitantes seja a experiência mais interessante deste conjunto.
A bilhética será em conjunto com o Palácio?
Ainda está a ser definido, há uma série de acertos finais que ainda estão em fase de projeto, que tem a ver com a finalização, a bilhética, a loja, a cafetaria, de como serão os percursos. Será decidido coletivamente pela DGPC.