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E Portugal levantou-se: a revolução da dança eletrónica nos anos 90

A música de dança em Portugal nos anos 90 vai ter uma exposição em Londres que depois chega a Berlim. Falámos com Rui da Silva e Dj Vibe sobre dias de festas em castelos e um país que era um paraíso.

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A história da chamada dance culture em Portugal está por contar, dispersa por aí, em fotos, flyers, cartazes, vídeos domésticos, memórias em vários formatos, incluindo roupa. Faz parte da vida pessoal de milhares, mas também pertence a uma narrativa maior e mais complexa, que continua a escrever-se mundo fora.

A Red Gallery, de Londres, está interessada em contar a história da cultura de dança e sabe que Portugal faz parte dela, por isso convidou Rui da Silva, um dos nossos pioneiros, para um trabalho conjunto: criar uma exposição sobre a cena de dança em Portugal que deverá inaugurar em Junho de 2018 em Londres, onde ficará duas semanas. Mais tarde, ficará permanente num museu que está a ser criado em Berlim (por um dos proprietários do clube Tresor) dedicado exclusivamente à dance culture, de resto um dos motores culturais da capital alemã nas últimas décadas.

Rui da Silva apela à colaboração de todos os que tenham memórias de festas e raves, entre 1991 e 1997, em Portugal, para contar esta história. Vale tudo: flyers, cartazes, vídeos, discos, roupas, fotos… Rui, a viver em Londres há quase 20 anos, confessa não ter guardado grande coisa além de discos e equipamento, mas está especialmente interessado no trabalho de um fotógrafo que costumava andar pelas festas: “Ele tirava as fotos numa festa e depois ia vendê-las na seguinte. Eram fotografias grandes, eu tenho algumas que comprei e mais pessoas devem ter, é esse tipo de coisas que interessa para a exposição”.

Rui da Silva, fundador com DJ Vibe, dos Underground Sound Of Lisbon, conta que tocava baixo “numa banda tipo Velvet Underground” mas estava descontente com a falta de empenho dos companheiros por isso vendeu o baixo, comprou um sampler e um sintetizador e resolveu fazer música sozinho.

Por estranho que possa parecer na era em que tudo se regista com telemóvel, nos anos 90 ninguém saía à noite com máquina fotográfica (até porque eram pesadas, não davam jeito nenhum a dançar e uma imagem podia constituir prova de alguma coisa que podia não apetecer assumir). Rui da Silva pede também a colaboração de editoras e produtores da época, todos os que tenham material gravado, editado ou não, e queiram participar e partilhar. As informações sobre a exposição, incluindo contactos para envio de material estão em sogetup.com.

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Agora dancem

Se quisermos ser justos, a história da club culture, entendida como a cultura de sair à noite para dançar, começou nos anos 70, com o disco sound e o advento das discotecas. Mas foi nos anos 80, com o techno e o house, mas sobretudo com a revolução acid house de 1988 em Inglaterra, o chamado Segundo Verão Do Amor, movido a ecstasy e música de dança, que começou a usar-se essa designação.

[uma breve história do acid house:]

Antes saía-se para dançar, com o acid house e as raves tornou-se um modo de vida que chegou a ter repercussões políticas e jurídicas quando, em 1994, foi criada uma lei que impedia a reunião ao ar livre de grupos com mais de 20 pessoas ao som de música eletrónica repetitiva amplificada (Criminal Justice and Public Order Act, 1994). A rave culture, a dance culture, tinha aqui, por assim dizer, o seu reconhecimento institucional e era vista como uma ameaça à ordem pública. Era oficialmente disruptiva do ponto de vista social.

Em Inglaterra invadiram-se propriedades privadas para fazer festas com milhares de pessoas que entupiram estradas e criaram o caos, houve de facto turbulência social, muitos largaram os empregos e tornaram-se travellers (viajantes), ou simplesmente arranjaram novas vidas, mais em sintonia com os interesses entretanto descobertos, notícias sobre sexo, drogas e morte fizeram primeiras páginas de jornais, mas também foi visível um certo boom económico que fez emergir produtores, DJs, promotores, clubes, empresas de som e luz, imprensa, televisão… Ibiza, que já tinha sido a ilha preferida pelos hippies, tornou-se na ilha da cultura de dança, desenvolvendo-se economicamente à volta desse conceito.

A génese começou um pouco antes da internet, finais de 80, inícios de 90, ainda assim, a mensagem espalhou-se com uma força notável e chegou a Portugal, onde pessoas como Rui da Silva descobriam as potencialidades de fazer música só com máquinas. Rui, fundador com DJ Vibe, dos Underground Sound Of Lisbon, conta que tocava baixo “numa banda tipo Velvet Underground” mas estava descontente com a falta de empenho dos companheiros por isso vendeu o baixo, comprou um sampler e um sintetizador e resolveu fazer música sozinho.

Rui da Silva e Tó “Vibe” Pereira hoje

Ainda antes de os Underground Sound Of Lisbon terem dado expressão à tensão pré-milenar com o anúncio do fim do mundo sobre pulsar house em “So Get Up” (1993), Rui da Silva já gravava como Doctor J. Na verdade, Rui teve o mesmo percurso que muitos outros músicos da época: trocou o rock pela música de dança, fascinado pelas possibilidades da produção doméstica, a nova versão do do-it-yourself do punk, e pela cultura de felicidade que lhe estava associada. Porque se há alguma coisa que subjaz à cultura de dança é uma espécie de militância da felicidade. Talvez por isso, seja acusada de mundana e hedonista, irrealista até, utópica num sentido muito parecido ao do flower power (por alguma razão se falava no tal Segundo Verão do Amor, em 1988). Nada disso parece ter travado a sua propagação, pelo contrário.

Quantas batidas por minuto?

João Xavier, actualmente a viver em Londres, onde trabalha com Rui da Silva na produção desta exposição, foi editor da revista Dance Club, até hoje, a única em Portugal dedicada exclusivamente à música de dança. Faz um resumo do aconteceu entre 1991 e 1997:

“Nos primeiros anos, havia entre os DJs e o público uma espécie de ambiente familiar, todos se conheciam pelos nomes. Lembro-me da Páscoa no Algarve, no Alabastro, que era o ponto de encontro, no início da noite tínhamos o Mário Roque, o Luis “XL” Garcia, o Carlos Manaça, a cruzarem discos com os DJs locais, o China, o François, num ambiente muito descontraído. Passados uns anos, já todos eles tinham uma agenda preenchida e não conseguiam reunir-se assim porque tinham muitas datas, por vezes tocavam duas e três vezes por noite em pontos diferentes do país. Tudo se profissionalizou, os DJs tinham de ter a sua equipa para percorrer o país, surgem agências a representar DJs, surgem muitos promotores a querer ganhar o seu, juntamente com os DJs, promotores e agências… tornei-me jornalista e divulgador, assumindo a edição da única revista especializada em música de dança, a Dance Club. Em meados de 1999, um dos anunciantes na revista, uma empresa de venda de instrumentos musicais, guitarras, sintetizadores, ligou-nos todo contente a dizer que estava a vender mais gira-discos que guitarras! Portugal começou a ter um roteiro de clubes onde se começavam distinguir os estilos de música e onde cada DJ marcava a sua identidade sonora e tinha legiões de fiéis seguidores que o acompanhavam para todo o lado. Surgem festivais como o Neptunus em 1997, uma tentativa de fazer um super festival apenas dedicado a música electrónica… em 1998 surge o Lux-Frágil com um aproach muito profissional…”

Está escrito na foto mas nunca é de mais: Luís Leite, Vibe, Rui da Silva e Rob Di Stefano em 1996 no Alcântara Mar, em Lisboa

António Pereira, Dj Vibe, o mais internacional dos DJs portugueses, aquele a quem a imprensa internacional se referia nos anos 90 como The Mighty DJ Vibe, tem no seu próprio percurso a história da conversão de Portugal ao DJ e à cultura de dança. Antes dos Underground Sound of Lisbon, Tó Pereira já tinha colaborado com os LX 90, o projecto de Rui Pregal da Cunha e Paulo Pedro Gonçalves inspirado na cena Madchester e de um modo geral na música de dança aplicada à pop, e também já era DJ.

Começou a passar música por acaso, ainda adolescente, em meados dos anos 80: “O meu pai tinha uma loja de discos mas nem havia aparelhagem em casa, eu tinha que ir para a loja ouvir os discos e ouvia de tudo”. O mesmo “tudo” que passava nas festas das associações de estudantes ou na sala de estar de sua casa quando convidava os amigos. Sem pratos de gira discos com pitch para acertar batidas, nem mesa de mistura para fazer pré-escuta, consideradas ferramentas básicas do djing (Vibe conta que a primeira vez que tentou comprar uma mesa de mistura, numa loja de eletrodomésticos na Calçada da Estrela que tinha confirmado por telefone que “sim senhor, tinha mesas de mistura”, tentaram vender-lhe uma misturadora de cozinha…).

"O 'Paradise Called Portugal' surge de uma expressão que um DJ inglês tinha sobre as condições de Portugal, o sol, os clubes e principalmente a liberdade de se beber álcool a qualquer hora, até na bombas de gasolina na auto-estrada."

As falhas técnicas eram compensadas pelo entusiasmo e isso ajudou Vibe a desenvolver os seus próprios truques para acertar batidas das músicas, de tal modo que, quando, ainda menor, começou a trabalhar a sério num clube, o Bataclan, ajustar-se a um setup de DJ profissional foi fácil. Vibe assinalou recentemente os seus 35 anos de carreira e tem vista panorâmica sobre esta história e as mudanças que provocou: “Mudou tudo. Antes as pessoas saiam à noite e tomavam um copo, o DJ não interessava, a música era essencialmente pop. Aliás, a noite dividia-se em três: a noite pop rock, a noite gay, onde se ouvia muito disco sound, e a noite intelectual, do Bairro Alto. Só quando o Plateau abre é que tudo se junta. De qualquer modo, eu sempre passei de tudo até porque começava a pôr música cedo e depois continuava até às 4, 6 da manhã… os horários também se alargaram muito”.

Vibe fala da mudança de condições, ferramentas, da cultura que se criou e também da indústria: “Isto mudou a vida de muita gente, hoje há quem viva para a noite e quem viva da noite, há muita gente a viver de tudo o que rodeia a música de dança”.

Um paraíso chamado Portugal

Clubes como Kremlin, Alcântara Mar, Frágil, Climacz, Rocks, Pacha, Vaticano, DJs como Tó Pereira/Dj Vibe, Rui Vargas, Tó Ricciardi, João Daniel, Jiggy, Luís e Paulo Leite, XL Garcia, Carlos Manaça ou mulheres como Belita e Yen Sung são alguns dos nomes incontornáveis para contar a história da cultura de dança em Portugal, nomeadamente esta primeira parte dos anos 90 do séc. XX.

Mas se há um herói unânime, alguém que conseguiu de facto fazer deste país um Paraíso, foi António Cunha, que morreu em 2012, mentor da Kaos, uma das primeiras e a mais importante editora de música de dança em Portugal nos anos 90.

António Cunha, nome fundamental na história da música de dança em Portugal

João Xavier explica o porquê do Paraíso Português nesta história: “O ‘Paradise Called Portugal’ surge de uma expressão que um DJ inglês tinha sobre as condições de Portugal, o sol, os clubes e principalmente a liberdade de se beber álcool a qualquer hora, até na bombas de gasolina na auto-estrada. ‘Isto é um paraíso’, exclamava em voz alta para todos ouvirem. A expressão foi usada por um outro jornalista num artigo de uma revista inglesa [a Muzik]. No ano seguinte [1995], o António Cunha da Kaos lembra-se de intitular a tournée como a ‘Week In a Paradise Called Portugal’, que teve bastante sucesso e culminou numa super festa na Kadoc”. Antes disso, já tinham sido feitas festas em conventos e castelos, barracões e armazéns um pouco por todo o país. Havia excursões de autocarro para raves em todo o lado.

Claro que o início de tudo isto foi “So Get Up”, na edição original da Kaos, o lado B de “Chapter One”, o segundo maxi lançado pela editora portuguesa, o primeiro de Underground Sound of Lisbon. “So Get Up” teve um efeito infeccioso a nível internacional, primeiro impulsionado pelo apoio de DJ nova iorquinos como Danny Tenaglia e Rob Di Steffano, depois de forma emancipada, como hino de uma época, um final de século movido a música de dança com a voz de Darin Papas/Ithaka a assumir aura profética.

[“So Get Up”, dos Underground Sound of Lisbon:]

https://www.youtube.com/watch?v=c2nlroLo-eE

Rui da Silva diz-se especialmente feliz pela influência que essa música teve noutros produtores e não tem dúvidas: “Com os Underground Sound of Lisbon e a club culture em Portugal é a primeira vez que a música feita cá tem projeção lá fora”. Responde assim à polémica com que tem sido recebido o texto de apresentação da exposição So Get Up, onde se afirma que durante 50 anos Portugal viveu sob a ditadura de Salazar, isolado do mundo, mas que a revolução acid house veio mudar isso. “Acho normal que em Portugal as pessoas não entendam e até fiquem chocadas mas para quem está de fora não é chocante”, diz Rui da Silva.

João Xavier, autor do texto, também argumenta: “Quando o punk surgiu em 1977 eu tinha 8 anos. Lembro-me dos meus primos mais velhos mandarem os discos dos Pink Floyd e dos Yes pela janela e no dia seguinte irem para Av. de Roma com pregos na lapela e o cabelo espetado. O Rock Rendez Vouz era a cena pós-punk alternativa, havia o Bananas e outras discotecas, umas só passavam rock outras passam o pop-rock comercial. E na maioria não se podia entrar de ténis ou calças de ganga… havia muita ditadura na noite. O DJ era residente daquele clube e não podia tocar numa outra casa. Cinquenta anos de ditadura não se apagam assim. Estavam assimilados na nossa sociedade e ainda continuam a estar nos hábitos diários das pessoas. Para a minha geração, dançar sob as estrelas, uma música potente, por vezes futurista e super libertadora, era e foi a nossa revolução. O nosso 25 de Abril deu-se em cada uma dessas raves e festas que iam acontecendo por todo o país. Fazíamos amizades com outros jovens que tinham em comum ouvir os mesmos sons e partilhar aquela magia que saia da colunas… aquele momento em que os DJs faziam alquimia com os discos e sem paragens para os aplausos… Onde também acontecia a interculturalidade, conhecíamos gente de vários quadrantes e proveniências, não fazíamos juízos sobre a sexualidade, ou religião de cada um… estávamos todos juntos. Brancos, negros, gays, heteros, ricos, pobres, católicos, judeus… todos a dançar. Essa foi a nossa revolução!”.

O beat continua?

Não tendo vivido esses tempos, há vários DJs e produtores em Portugal que têm fascínio declarado pelo que se passou na época. João Ervedosa tem 30 anos, grava e põe música como Shcuro e José Acid e dirige a editora Paraíso, claramente inspirada no Paradise Called Portugal original, com slogan nas T-shirts que não deixa enganar: “underground house music from a paradise called Portugal”.

"Foi uma altura de exploração e descoberta. Criou-se uma cena musical nova e que era totalmente diferente de tudo o que existia até então. Portugal tinha uma tradição rock muito forte, era um desafio um DJ tocar música eletrónica de dança numa discoteca, aliás poucos eram os donos destas casas que o permitiam."

Diz que a editora quer “celebrar e divulgar a história da música de dança em Portugal, não apenas o passado mas também o presente e o futuro” e justifica o seu entusiasmo pela cena portuguesa dos anos 90: “Os anos 90 foram uma época dourada para a música de dança em Portugal. Foi uma altura de exploração e descoberta. Criou-se uma cena musical nova e que era totalmente diferente de tudo o que existia até então. Portugal tinha uma tradição rock muito forte, era um desafio um DJ tocar música eletrónica de dança numa discoteca, aliás poucos eram os donos destas casas que o permitiam. Criaram-se as primeiras editoras de música de dança portuguesa como a Kaos Records ou a Question of Time, abrem-se discotecas onde se ouve música de dança toda a noite, fazem-se as primeiras raves, eventos de grande escala em conventos e castelos, os DJs começam a ser contratados como freelancers para ir tocar fora das discotecas onde são residentes, começam a vir cá DJs de fora e tudo isto atrai a imprensa estrangeira para o que se passa no underground português. Estas pessoas abriram caminho para que hoje em dia esta cultura esteja tão difundida a nível global”.

Essas são também as pessoas que João Xavier quer mostrar num documentário em que está a trabalhar paralelamente à exposição So Get Up : “Quero dar voz e mostrar todos os protagonistas desta história que nunca foi contada e que hoje movimenta muita gente e se tornou numa indústria”. DJ Vibe confessa achar piada a todo este interesse pelo que se passou nos anos 90: “Acho ótimo, fizemos muita coisa, independentemente da qualidade. E também andei a vasculhar no meu passado por causa da festa [dos 35 anos de carreira, aconteceu a 4 de Novembro] e quem sabe o que pode acontecer no futuro…”.

No caso português, como no de outros países, são muitas as peças deste fascinante puzzle que começou pequeno e marginal mas é hoje fundamental para perceber a dinâmica sócio-cultural da transição do séc XX para o XXI. A história continua, em Portugal e mundo fora, com luzes e estrondo, muitas vezes em grandes palcos e mega festivais, mas também em clubes escuros e suados. O mais importante será sempre fazer as pessoas dançar.

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