Estávamos em maio de 2018, há quase quatro anos, quando o desporto português pôs o capacete, enrolou o punho e saltou para cima de uma mota. Há quase quatro anos, o rapaz de Almada que estava a dar que falar nos escalões inferiores do motociclismo saltou para a competição dos crescidos. Há quase quatro anos, Miguel Oliveira entrou no MotoGP. E os domingos não voltaram a ser iguais.
[Recorde aqui a entrevista de Miguel Oliveira à Rádio Observador em junho de 2020]
Passaram, precisamente, quase quatro anos. E o percurso de Miguel Oliveira tem sido tudo menos regular e descomplicado — entre rivalidades com colegas, um salto da equipa satélite para a equipa principal, uma pandemia que adiou e encurtou uma temporada e até a possibilidade de disputar duas corridas em Portimão, no Circuito Internacional do Algarve, algo que em maio de 2018 parecia altamente improvável.
Ao contrário daquilo que até o próprio esperaria, o piloto português vai começar o Mundial 2022 de MotoGP, que arranca este domingo com o Grande Prémio do Qatar, ainda à procura de afirmação. 2021 foi um ano difícil, entre a estreia na KTM, vários problemas mecânicos nas qualificações e nas corridas e diversas quedas, e a saída do top 10 da classificação final do Campeonato do Mundo delineou desde logo o objetivo para este ano: voltar a estar entre os 10 pilotos mais rápidos do mundo.
2019, o primeiro ano: os “baby steps” e o acidente com Zarco
Mas, para explicar o contexto em que Miguel Oliveira parte para este Campeonato do Mundo, é preciso recuar até 2019 e ao primeiro ano do piloto português no MotoGP. Até porque, quando Miguel foi confirmado como um dos nomes da Tech3 — que estava a preparar-se para trocar os motores Yamaha pelos KTM para acompanhar o fabricante austríaco na sua estreia da categoria rainha do motociclismo –, a notícia caiu como algo útil que também era agradável e promovia tanto o atleta como a marca. Afinal, Miguel Oliveira estava prestes a tornar-se vice-campeão mundial de Moto2 e era um dos pilotos mais entusiasmantes de todo este universo motorizado; mas Miguel Oliveira também era o primeiro a passar por todo o sistema Red Bull KTM até chegar ao MotoGP.
“Este é um passo com peso emocional para nós, porque prova tudo o que dissemos sobre a construção de uma estrutura do paddock e a possibilidade de vir da Red Bull Rookies Cup, passar pelas ‘aulas’ connosco e acabar numa equipa de MotoGP. Criámos o projeto de Moto2 para ser a plataforma que desenvolve pilotos para o MotoGP e tenho de agradecer por esta parceria porque estamos a fazer um excelente trabalho com os pilotos. Se eles saírem desta escola, estão prontos para o MotoGP. Estou feliz por podermos dar esta oportunidade ao Miguel. Ao mesmo tempo, também estou satisfeito pelo facto de ele confiar em nós como os parceiros certos para tentar ser um piloto de MotoGP de sucesso. Já temos uma grande formação de talentos e ainda há um lugar em aberto. O Miguel tem as suas metas e tem o nosso total apoio”, disse, na altura, Pit Beirer, o diretor da KTM Motorsports. Mais do que um piloto, Miguel Oliveira era a cara, a figura e o exemplo de um projeto inteiro.
O facto de ter cumprido todo esse percurso com a KTM, atingindo sempre vários objetivos e tornando-se a figura de proa do investimento que os austríacos estavam a fazer no motociclismo, fez com que o piloto natural de Almada criasse uma autêntica família nas garagens. Com o pai sempre por perto e sem nunca perder as ligações familiares que lhe permitiram continuar a ser um miúdo que andava de mota a centenas de quilómetros por hora, Miguel Oliveira tornou-se muito próximo dos mecânicos, dos engenheiros, dos diretores e de todos os responsáveis pela união que ele próprio tinha de criar com a mota. Na Tech3, o português tinha uma equipa de cerca de 35 pessoas em que todos se conheciam, em que todos perguntavam aos outros pelas mulheres, pelos maridos e pelos filhos e em que os aniversários eram celebrados de forma natural. Algo que acabou por não durar para sempre.
Mas, ainda no ano de estreia, o piloto percebeu que ainda teria de passar por muitas dores de crescimento. Miguel Oliveira só conseguiu terminar no top 10 numa única corrida, no Grande Prémio da Áustria, e acabou a temporada no 17.º lugar depois de abdicar das últimas três provas para ser operado ao ombro, numa lesão que sofreu depois de uma colisão com Johann Zarco. Os problemas com Zarco, aliás, acabaram por ser uma das grandes preocupações do piloto português em 2019: na sequência desse acidente no GP da Grã-Bretanha, Miguel chegou mesmo a dizer que o francês tinha feito uma manobra “completamente suicida” e a relação entre os dois nunca foi extraordinária.
No final da época, porém, o piloto natural de Almada tinha acalentado a esperança e a expectativa de ser o escolhido para subir à equipa de fábrica, a KTM, precisamente para substituir Johann Zarco. O eleito foi Brad Binder, sul-africano que saltou diretamente do Moto2 para o MotoGP — e Miguel Oliveira não escondeu a insatisfação. “Se fosse o Mika [Kallio], estaria tudo bem para mim porque construí uma relação muito boa com a equipa e não faria sentido a mudança. Mas escolher um rookie, um tipo com a mesma idade do que eu, faz-me sentir que não sou bom o suficiente para cá estar. É a decisão deles, respeito-a, não mudará nada no meu foco em estar cá e dar o melhor (…) Para mim, tendo um ano de MotoGP, faria mais sentido ser eu a ir para lá. Mas isso não faz sentido para eles. É aí que discordamos. Mas respeito e não há nada a fazer”, disse o português. Miguel ficou na Tech3. E foi o melhor que lhe podia ter acontecido.
2020, segundo ano: a pandemia, as primeiras vitórias e a promessa de um salto
Tal como tinha dito logo na altura em que criticou a escolha de Binder para substituir Zarco, Miguel Oliveira aproveitou a proximidade com as pessoas da Tech3, beneficiou do facto de ter pela primeira vez uma moto igual à de fábrica e preparou-se para um 2020 que teria de ser de afirmação para motivar um salto para a KTM. De repente, porém, apareceu a pandemia — e o Mundial de MotoGP foi consecutivamente adiado e repensado até arrancar finalmente em julho, em Jerez de la Frontera, com apenas 14 corridas e a terminar num inédito Grande Prémio de Portugal.
Em entrevista ao Observador, em junho de 2020 e a pouco mais de um mês do início da competição, o piloto português garantia que os problemas com Brad Binder estavam resolvidos e que o objetivo agora era único, pessoal e intransmissível — ficar no top 10 da classificação final e subir à equipa dos crescidos. “As coisas ficaram resolvidas na altura. É um assunto mais do que arrumado e esclarecido entre as duas partes. Mas não escondo que a minha ambição é, sem dúvida, ir para a equipa principal. Logicamente que isso é um dos meus maiores desejos, já o expressei à KTM, é sabido por toda a gente. Não há dúvidas. Não faria sentido para um piloto como eu, que sabe que tem capacidades para vencer corridas, ambicionar estar numa equipa que não a principal em qualquer construtor”, explicou, na altura, mostrando-se muito confiante para a época que estava prestes a começar.
E tinha motivos para isso. Arrancou o ano com um oitavo lugar em Jerez e um sexto na República Checa, alternando com dois abandonos na Andaluzia e na Áustria, e fez história a 23 de agosto de 2020 quando venceu o Grande Prémio da Estíria. Nesse dia, o primeiro piloto português no MotoGP tornou-se também o primeiro piloto português a ganhar uma corrida no MotoGP — e Miguel prosseguiu a temporada positiva com mais dois quintos lugares e duas sextas posições, encerrando o Mundial com uma apoteótica nova vitória no Algarve, onde conquistou a pole-position e liderou sem dar hipóteses do início ao fim. Fechou o Campeonato do Mundo em 9.º, cumprindo a promessa e o objetivo de acabar dentro do top 10, e a subida à KTM foi mais uma confirmação do que propriamente uma notícia.
2021, terceiro ano: a KTM, os três pódios seguidos e a lesão no pulso
Miguel Oliveira chegou à KTM de forma natural e para formar dupla com Brad Binder — que no ano anterior tinha ficado atrás do português, em 11.º. As expectativas, de forma natural, eram muitas: para além do resultado promissor em 2020, o português tinha agora as condições da equipa de fábrica, o apoio da equipa de fábrica e a dimensão da equipa de fábrica. Ou seja, das 35 pessoas a dividir entre ele e Johann Zarco, Miguel passou a ter 50 de forma exclusiva. Algo que lhe trouxe profissionalismo mas que lhe retirou a sensação de conforto e familiaridade que, durante tanto tempo, permitiram que se sentisse à vontade para almejar altos voos.
O 2021 de Miguel Oliveira acabou sem top 10, com menos uma vitória e com mais quedas
A reta inicial da temporada deixou muito a desejar. O piloto português ficou sempre fora do top 10 nas primeiras quatro corridas do ano — incluindo um desapontante 16.º lugar em Portugal –, acabando por abandonar na quinta, e só acelerou já no final de maio, em Itália. Aí, em Mugello, Miguel conquistou um segundo lugar e alcançou o primeiro pódio de 2021, lançando-se para a terceira vitória da carreira na semana seguinte, na Catalunha. Voltou a terminar nos três primeiros no Grande Prémio consequente, com um segundo lugar na Alemanha, mas começou a cair a partir da quinta posição nos Países Baixos e não mais se levantou, principalmente devido a uma lesão no pulso. Até ao final da época, o piloto da KTM somou mais quatro abandonos e o melhor que conseguiu foi mesmo um 11.º lugar no Grande Prémio das Américas, em Austin.
Em resumo? Miguel Oliveira não foi além de um 14.º na época passada, caindo cinco lugares face ao ano anterior e saindo do tão reservado top 10. Mais do que a desilusão dos resultados, os problemas mecânicos ou as justificações que o português foi sempre procurando para explicar as desilusões, o ano de 2021 trouxe essencialmente uma novidade negativa: Miguel caiu cinco vezes durante a temporada, sendo que no ano anterior só tinha abandonado em três ocasiões e em 2019 só não terminou um Grande Prémio, na Grã-Bretanha. O português passou de ser um piloto que nunca caía para ser um piloto que cai com alguma frequência e isso, num ano em que a sorte também não esteve do seu lado, revelou-se decisivo.
2022, quarto ano: o objetivo claro de voltar ao top 10 do Mundial
É neste contexto, com a bagagem de um ano de estreia, um ano muito positivo e um ano que deixou a desejar, que Miguel Oliveira chega ao quarto ano no MotoGP, o segundo com a KTM. O português vai continuar a fazer dupla com Brad Binder, que em 2021 foi 6.º, e na apresentação da nova moto, que diz ser “bastante diferente”, deixou a receita para voltar aos melhores resultados — a consistência.
“No ano passado demos um grande passo em frente em quatro corridas, fui ao pódio três vezes e isso foi muito bom. Mas depois, com a lesão que sofri na segunda parte da época, as corridas tornaram-se muito difíceis. Foi, definitivamente, uma fase de aprendizagem para mim. Faltou-me consistência e é óbvio que esta época quero melhorar isso. Nunca é fácil ir ao limite e ao mesmo tempo pensar em acabar a corrida. Diria que se tivesse sido capaz de somar pontos em todas as provas, no final do Campeonato o resultado poderia ter sido diferente. Por isso, agora quero tirar o máximo partido do meu potencial, da moto e de toda a equipa, de modo a transformar isso em resultados”, explicou, decidindo não apontar um objetivo específico para 2022, ao contrário do que fez nos anos anteriores.
O Mundial de 2022 terá 21 corridas (em 2021, ainda devido a problemas com a pandemia, foram feitas apenas 18 provas) ao longo de oito meses, que arrancam em Losail com o Grande Prémio de Qatar, este domingo, e terminam em Espanha com o Grande Prémio da Comunidade Valenciana, a 6 de novembro. O Grande Prémio de Portugal, no Autódromo Internacional do Algarve, está marcado para 24 de abril, naquela que será a primeira paragem do MotoGP na Europa depois do início na Ásia e no continente americano. Entre abril e meio de setembro, serão feitas 12 corridas consecutivas na Europa.
“A única coisa que posso assegurar é que o Miguel Oliveira de 2022 é melhor do que aquele que esteve em 2021. Portanto, o meu empenho é sempre máximo e a minha entrega será sempre a maior para chegar ao lugar mais alto do pódio. A grelha está mais competitiva do que nunca mas acredito que tenho a oportunidade de continuar a disputar lugares no pódio”, disse o piloto português há alguns dias, ele que foi apenas o 16.º mais rápido nos primeiros testes de pré-temporada, há cerca de um mês, na Malásia.
Ainda assim, Hervé Poncharal, dono da Tech3 e antigo patrão de Miguel Oliveira, faz outras contas para garantir que a nova RC16 da KTM é competitiva. “É verdade que ao longo de uma volta, na Indonésia e na Malásia, a primeira RC16 ficou a cinco décimas de segundo do piloto mais rápido. Dito isto, um ataque à tabela de tempos nunca foi o forte da KTM. A prova é que raramente temos visto uma KTM na linha da frente. Mas temos um ritmo de corrida bastante interessante. Em Mandalika, se virmos a média ao longo de todas as voltas, o Miguel é terceiro. A partir do Qatar, o nosso conjunto será gradualmente melhorado através de pequenos toques. O objetivo é não ir à procura de um tempo. Os testes de inverno são, acima de tudo, para trabalhar. Alguns querem causar uma impressão mas nós não somos assim”, defendeu o francês.
Aos 27 anos, Miguel Oliveira está prestes a partir para o quarto ano de MotoGP e o segundo de KTM. O objetivo de melhorar o resultado do ano passado está intrinsecamente ligado ao de terminar novamente no top 10 do Mundial, um local de onde nunca esperou sair depois de lá chegar. Resta saber se a sorte, o pulso, a moto e o próprio Miguel sopram o vento em conjunto nas costas do piloto português.