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Empresas com ligações ao PS lucram com kits de alimentos em centros de vacinação. Ajuste direto custa 425 mil euros

Kits dos centros de vacinação foram adjudicados a empresa que tem nos órgãos sociais antigo vereador do PS. Decreto que facilita a contratação em pandemia dispensou CML de consulta a outras entidades.

É uma cortesia da autarquia para quem toma a vacina em Lisboa: na fase de recobro, os vacinados recebem uma peça de fruta, um pacote de bolachas de água e sal e uma garrafa de água. Para dar estes produtos aos utentes que vão aos centros de vacinação na capital, a câmara de Lisboa gastou 425 mil euros num ajuste direto. Nesta compra, a autarquia escolheu uma empresa que tem membros nos seus órgãos sociais com ligações ao PS, incluindo um antigo vereador socialista na Câmara Municipal de Lisboa (CML). Por sua vez, essa empresa subcontratou a compra das “águas premium” para o kit a uma outra empresa liderada por um antigo presidente de câmara do PS (em Vizela).

O contrato tem ainda outros detalhes, que fazem com que não seja uma adjudicação igual a outras do programa Lisboa Protege. Desde logo, o contrato, celebrado a 18 de junho, excede o valor máximo dos ajustes diretos para a aquisição de bens (o gasto é de 425 mil euros, quando o limite para a aquisição de bens é de 30 mil euros). Além disso, a entidade escolhida (a empresa Sogenave) não tinha qualquer contrato anterior com a CML (embora a empresa-mãe, a Trivalor, SGPS, seja uma velha conhecida). E, finalmente, não foram consultadas outras entidades.

Para poder exceder o valor previsto no Código dos Contratos Públicos, a Câmara Municipal de Lisboa beneficiou da exceção prevista no decreto-Lei n.º 10-A/2020, que estabelece “medidas excecionais” para o combate à pandemia. O decreto prevê que o ajuste direto possa ser utilizado (numa situação prevista no Código de Contratos Públicos) por “motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis”, desde que não seja a entidade a provocar essa imprevisibilidade. A autarquia considera que isso justifica o ajuste direto à Sogenave.

Sobre a escolha da empresa, a autarquia diz ao Observador que começou por procurar “uma solução junto dos mercados municipais e junto do MARL (Mercado Abastecedor da Região de Lisboa), não tendo ela sido viável devido à incapacidade de garantirem a fruta embalada individualmente, reunindo as necessárias condições de higiene”. Ainda assim, no momento de procurar a empresa, decidiu consultar apenas uma única entidade: a Sogenave.

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Nas mesmas respostas enviadas ao Observador, o gabinete do vereador da Proteção Civil, Miguel Gaspar, explica as razões para escolher a empresa Sogenave. Isso foi feito por ter “experiência de fornecimento de kits em cantinas hospitalares” e por ter “apresentado capacidade imediata de dar resposta”. Essa experiência nunca foi, no entanto, com a Câmara de Lisboa e não invalida que pudessem ter sido consultadas outras empresas para melhorar o serviço e/ou o preço.

Excerto do contrato entre a autarquia e a Sogenave

Antigo vereador do PS nos órgãos sociais da empresa contratada

A Sogenave tem como presidente do Conselho Fiscal José Cardoso da Silva, que foi vereador da câmara eleito nas listas do PS, com o pelouro das Finanças, no primeiro mandato de António Costa na autarquia. A Sogenave é detida pela Trivalor, SGPS, uma empresa que trabalha há vários anos com a câmara de Lisboa. José Cardoso da Silva chegou a ser presidente do Conselho de Administração dessa empresa e, ao mesmo tempo, vereador com o pelouro das Finanças.

José Cardoso da Silva alegava ao Diário de Notícias em 2008 que, como era presidente de uma sociedade gestora de participações sociais (que não tinha contratos com a autarquia — apenas as suas participadas tinham), a situação era “perfeitamente legal”, uma vez que era apenas “presidente da holding, que não presta serviços à câmara”. Na altura, recebia apenas um terço do valor como vereador por ter uma atividade paralela. Atualmente, José Cardoso da Silva já não está na administração da SGPS (apenas no Conselho Fiscal), mas preside a um dos órgão sociais da participada (a Sogenave) — embora não faça parte do Conselho de Administração.

A câmara de Lisboa alega a experiência da empresa na área e, de facto, a Sogenave tem vários contratos com outras entidades públicas, embora nenhum (até agora) com a autarquia liderada por Fernando Medina. Os principais clientes públicos são o Instituto da Segurança Social (34,39 milhões de euros) e o Estado Maior do Exército (23,46 milhões de euros), em contratos de milhões que conseguiu através de concurso público. O INATEL, liderado pelo socialista Francisco Madelino, é outro dos bons clientes da Sogenave. Municípios como o Funchal ou Tábua (PS) têm contratos com a empresa, mas também municípios liderados por outras forças políticas, como Loures (PCP).

A Sogenave é uma das muitas empresas da área alimentar detida pela empresa-mãe Trivalor. Em 2015, no livro Os Predadores, o jornalista Vítor Matos aborda o triângulo PS-Trivalor-Câmara de Lisboa. Além de fazer alusão à ligação a José Cardoso da Silva (que era vereador e presidente ao mesmo tempo) a investigação jornalística lembrava que o vice-presidente da câmara, Duarte Cordeiro, chegou a estar na autarquia ao mesmo tempo que o pai era membro da administração da empresa. O pai do socialista passou a integrar a administração da Trivalor em abril de 2013 e o filho seria eleito vereador da autarquia meses depois (mais tarde, passou a vice-presidente quando Costa se dedicou a tempo inteiro à função de secretário-geral do PS e Medina assumiu a liderança autarquia). Por coincidência, o pai sairia das funções executivas na SGPS em abril de 2019 e o filho sairia da câmara meses depois, em outubro, para integrar o atual Governo de António Costa.

Hoje, o pai de Duarte Cordeiro mantém-se na Trivalor, mas como membro do Conselho Geral e de Supervisão, já sem poder executivo; e o filho é uma das figuras mais importantes do Governo — é o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, com peso de ministro. As ligações câmara-Trivalor são, no entanto, anteriores à coincidência da família Cordeiro e começaram anos antes. A publicitação da contratação pública permite perceber que essas ligações continuam.

Sobre as ligações das empresas a socialistas, a câmara de Lisboa responde ao Observador que, de acordo com a legislação aplicável à atividade das entidades administrativas, “a CML não considera existir incompatibilidades ou impedimentos à contratação da Sogenave para a aquisição dos bens em questão.”

Água dada aos utentes dos centros de vacinação é de empresa de ex-autarca do PS

A Sogenave foi contratada para fornecer os kits de alimentação e depois, por sua vez, decidiu comprar as águas para o kit a uma outra empresa: a Aguarela do Mundo, Água Nascente, SA. A empresa, sediada no Ulme, na Chamusca, é presidida e detida por Francisco Ferreira, antigo presidente da câmara municipal de Vizela eleito nas listas do PS. Trata-se da “água premium Healsi”, que foi distribuída nesses primeiros kits.

Sobre esta contratação em particular, a câmara de Lisboa esclarece que “nada teve que ver com a escolha das empresas que por sua vez fornecem à Sogenave as águas ou qualquer outro elemento que compõe esse mesmo kit” e que, por isso, “não estabeleceu qualquer relação contratual” com a empresa Aguarela do Mundo, Água Nascente, SA.

A autarquia explica, no entanto, que o kit tinha de “ter em conta a preocupação de este ser sustentável nos materiais utilizados nas embalagens e que utilizasse o mínimo possível de plástico”. Ainda assim, apesar de a embalagem ser em parte de cartão, é dada a indicação de que tem de ser colocada no ecoponto amarelo (e não no azul). Sobre isto a autarquia opta por enaltecer a mais-valia ambiental face ao que é mais comum: “A embalagem de água em causa é totalmente reciclável e constituída por 35% de plástico e alumínio e 65% cartão, ao contrário das garrafas mais comuns, que são 100% plástico.”

Água distribuída nos centros de vacinação

Câmara mudou de procedimento de aquisição para novos kits

Para os primeiros kits, a câmara utilizou a tal “urgência imperiosa”, o que a dispensou de abrir concurso público e de consultar outras entidades e lhe permitiu adjudicar diretamente à Sogenave. No entanto, a prova de que não considera este o procedimento mais adequado é que, “para assegurar o fornecimento do kit no futuro, foi lançado a 29 de junho de 2021 um procedimento de contratação pública através de concurso público urgente“.

Enquanto o valor do ajuste direto foi de 383 mil euros mais IVA, o concurso público urgente — esclareceu a Câmara Municipal de Lisboa ao Observador — “tem o valor de 214.000 euros mais IVA.”

A câmara de Lisboa tem sido elogiada genericamente pelos utentes, nomeadamente por oferecer estes produtos no momento do recobro nos centros de vacinação. Mesmo que não sejam obrigatórias ou necessárias algumas das regalias proporcionadas pela CML, a autarquia tem investido no programa “Lisboa Protege”, através do qual tenta melhorar a resposta à pandemia.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Sobre a urgência e premência de oferecer este kit, a câmara de Lisboa explica que “foi identificada a necessidade de aquisição de bens alimentares para distribuição aos utentes dos centros de vacinação, no âmbito das reuniões com os diretores executivos dos três Agrupamentos de Centros de Saúde que operam os centros de vacinação em Lisboa”. O objetivo da oferta dos kits, explica a autarquia na mesma resposta ao Observador, é garantir que “os utentes possam obter algum conforto alimentar e energético e hidratação após a inoculação da vacina”.

A autarquia diz ainda que “os bens adquiridos inserem-se no âmbito dos ‘bens e serviços relacionados com a prevenção, contenção, mitigação e tratamento da COVID-19′” e salienta ainda “a idade da população que começou a ser vacinada e as diversas necessidades dessa população, as temperaturas que podem ocorrer nos interior e exterior dos centros de vacinação, e o tempo do recobro.”

Sobre o facto de este kit não ser disponibilizado noutras autarquias — que não têm a mesma capacidade financeira — , a câmara de Lisboa diz apenas que não tem “conhecimento do funcionamento de todos os centros do país” e destaca que “esta não é uma prática exclusiva da cidade de Lisboa, como atenta o facto de aqui bem perto, Oeiras e Cascais terem práticas semelhantes, para dar apenas dois exemplos.”

Empresas do universo Trivalor com contratos de 50,6 milhões com a autarquia

A Sogenave teve o primeiro contrato com a câmara de Lisboa a 18 de junho de 2021 precisamente para os kits de alimentação para as vacinas, mas a empresa-mãe tem mais seis empresas participadas que têm feito contratos de milhões ao longo dos últimos anos com a autarquia liderada por Costa e Medina: a Gertal, a ITAU, a Socigeste, a Cerger, a Ticket Serviços e a Strong Charon.

A Gertal, empresa de serviços de alimentação, tem 33 contratos com a câmara de Lisboa desde 2013, num total de 40,23 milhões de euros divididos entre concursos públicos, ajustes diretos e consultas prévias. O maior destes contratos é um concurso público de 2016 no valor de 13,2 milhões de euros. Mais de metade do total de adjudicações feitas pela autarquia à empresa (21,06 milhões de euros) foi adjudicada no atual mandato (que começou em outubro de 2021).

Alguns destes contratos são feitos em consórcio com outras duas empresas do grupo: a ITAU e a Socigeste — ambas de serviços alimentares. Se a Socigeste só fez negócios em consórcio com a Gertal, a ITAU conseguiu sete contratos com a câmara de Lisboa que totalizam 8,74 milhões de euros.

A Cerger, outra empresa detida pela Trivalor, tem dois ajustes diretos no valor total de 31,6 mil euros. A Ticket Serviços também tem um contrato com a CML, mas de um valor mais baixo: 5.750 euros.

A Trivalor, SGPS tem ainda uma empresa de segurança, a Strong Charon, que tem igualmente cinco contratos com a Câmara de Lisboa no valor de 1,24 milhões de euros.

Toda esta contratação com empresas do universo Trivalor, SGPS, somando aos 383 mil euros da Sogenave, dá um valor de 50,6 milhões de euros sem IVA (que acresce em 6% ou 23% de acordo com os vários tipos de contrato).

O Observador contactou a empresa Sogenave, que não respondeu em tempo útil.

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