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BEN STANSALL/AFP/Getty Images

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Gina Miller: "O Brexit é a questão mais decisiva de uma geração"

Gina Miller, uma das maiores opositoras do Brexit, já reagiu à decisão do Supremo Tribunal. Recorde os argumentos da empresária na entrevista que deu ao Observador, publicada há uma semana.

Gina Miller foi uma das primeiras personalidades a reagir hoje de manhã à decisão do Supremo Tribunal britânico de obrigar o governo a fazer passar pelo Parlamento a saída da União Europeia. Para a empresária, só o Parlamento pode garantir ou retirar direitos aos britânicos, pelo que esta decisão irá defender esse princípio. E defende que o Brexit “é uma questão de processo legal, não de política”. Mais do que isso, reforça, “o Brexit é a questão mais decisiva de uma geração”. Argumentos que defendeu em entrevista ao Observador, há uma semana, e que pode reler abaixo.

Margaret Thatcher só precisava de quatro horas de sono, Gina diz que “três chegam”. É que “há sempre tanto para fazer”. O tanto trabalho passa por mergulhar o governo britânico no maior imbróglio constitucional desta geração. Gina Miller, que nasceu na Guiana há 51 anos, quando ainda era Guiana Britânica, passou de desconhecida a heroína insuspeita das 16.141.241 pessoas que votaram para que o Reino Unido continuasse a fazer parte da União Europeia.

Poucos dias depois de se saber que os britânicos tinham de facto optado pela saída, Miller deu uma conferência, na City de Londres (de onde gere um fundo de investimento com o marido), sobre a importância da diversidade cultural no mundo financeiro. Já perto do fim, alguém atirou uma dúvida para o ar: “Então mas isto do Brexit não devia passar pelo Parlamento primeiro”?

Alguma coisa tinha que ser feita. E Gina Miller decidiu fazer. Primeiro, começou por tentar sondar quem estaria do seu lado. Disparou uma série de gritos eletrónicos de “Quem está comigo?” e, apesar de ter respostas positivas, percebeu que tinha de avançar sozinha. Valeu-se da plataforma de petições People’s Challenge e acabou por ir à luta, com uma improvável (ou talvez não) companheira de armas: a Deir Dos Santos, que trabalha num cabeleireiro perto de Belgravia, perto de onde vive Miller. Podem ter-se conhecido aí mas tal tem sido o nível de “hate mail” dirigido a Dos Santos, que tem passaporte britânico mas é originalmente do Brasil, que hoje só o seu advogado fala. Dos Santos terá até dito que tem pena de não ter permanecido no anonimato.

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Miller passou o verão enfiada em páginas e páginas de processos e contratou uma empresa de advogados para levar o caso a tribunal. Gina Miller queria saber se o Governo poderia avançar com o Brexit sem que o Parlamento se pronunciasse. A ação avançou.

Dia 3 de novembro, impecavelmente vestida, de calças de fato, sapatos de verniz e casaco tipo Channel, Miller dirige-se a um mar de jornalistas para dizer que o High Court of Justice, a mais alta instância antes do Supremo, lhe tinha dado razão. O governo britânico teria que pedir autorização ao Parlamento para acionar o artigo 50 do Tratado de Lisboa, que põe em marcha a cisão de um país com a UE.

O Governo recorreu da decisão para o Supremo Tribunal, que reuniu, pela primeira vez, a totalidade dos 11 juízes para decidir um dos mais importantes casos de sempre. Um combate entre duas mulheres obstinadas, Theresa May versus Gina Miller, com vencedora a anunciar na segunda metade de janeiro.

Mas quem é esta mulher que trocou as voltas ao governo britânico?

Quando os movimentos anti-coloniais começaram a rebentar na Guiana, os pais de Gina decidiram que seria melhor se ela e o irmão fossem viver para o Reino Unido. Assim foi, mas à medida que a situação ia piorando no país onde nasceu, os pais deixaram de ter possibilidade de lhe enviar dinheiro. Gina não fala muito dessa época, porque quer focar-se no que faz agora e recusa passar a ideia de “coitadinha”. Além disso, a exploração do seu passado por alguns jornais assustou-a.

Segundo alguns dos perfis publicados na imprensa britânica, Miller fez um pouco de tudo para se manter à tona. A vida complicou-se quando o primeiro casamento acabou e ela ficou sozinha com uma filha que sofre de uma deficiência cognitiva, provocada por privação de oxigénio durante o parto. Miller diz que a filha é “a coisa mais fabulosa e mais inteligente” da sua vida e conta ao The Guardian que “se lembra bem do que é ter apenas pão e uma lata de feijões para viver”.

E se no tempo do liceu era gozada por falar de forma diferente e por ter uma cor de pele diferente, hoje continua a ser uma outsider, pelo motivo contrário: por ter uma casa de sete milhões de euros, por ser parte da elite, por fazer parte do grupo dos banqueiros com bónus, parte da desigualdade. Só que Gina também é persona non grata na City, onde fala permanentemente contra a cultura de bónus (“tens um salário alto, para que é que são bónus?”, disse ao The Guardian) e contra a pouca fiscalização dos produtos financeiros.

Gina Miller diz que o seu objetivo não é travar a saída do Reino Unido da União Europeia; só quer “um debate longo, a várias vozes e com honestidade intelectual, que explique aos britânicos o que vai acontecer”.

Esta terça-feira, Theresa May vai explicar o que pretende fazer e como quer levar a cabo o Brexit. Vários jornais avançam que a primeira-ministra britânica é defensora do que se denomina de “hard-Brexit”, uma solução mais radical que passaria pelo abandono do mercado único (um novo modelo económico), não fazendo distinção entre os países da UE e os restantes no que diz respeito a trocas comerciais, e da liberdade de movimento dos cidadãos dentro do espaço da União. Os receios de que tal seja a escolha de May já estão a ter efeitos nos mercados, com a libra a cair.

Foi neste contexto que o Observador falou com Gina Miller, por telefone.

As pessoas acusam-na de estar a tentar subverter a democracia, de estar a tentar contornar a vontade do povo, mas disse várias vezes que a sua intenção não é lutar contra a decisão de sair da União Europeia. Qual é, então?
[Ouve-se a gargalhada de Gina do outro lado do telefone… “Surreal”, solta pelo meio] Não estou a tentar passar por cima da decisão de ninguém. Estou precisamente a tentar que o país se mantenha a democracia parlamentar que sempre foi. O que eu quero é um debate a sério sobre o que é que Brexit significa. Há uma coisa que as pessoas se esquecem. No artigo 50 diz-se que cada país só pode acionar o artigo seguindo os seus requisitos constitucionais. Ora, nós somos uma democracia onde o Parlamento é soberano. Isto é simples: só pode ir para a frente com um ato parlamentar.

Manifestantes à porta do Supremo Tribunal de Justiça, que pela primeira vez reuniu todos os 11 juízes para apreciar a ação de Gina Miller

FACUNDO ARRIZABALAGA/EPA

Falou também, durante a exposição do seu caso, que não acredita que a “prerrogativa real” possa ser utilizada neste caso. Porquê?
A última vez que a “prerrogativa real” foi utilizada para decidir questões internas foi em 1610. Imagine tudo o que já alcançámos desde aí. Se deixássemos uma decisão tão importante como esta, que afetará a vida de todos os britânicos, ser decidida sem um debate alargado e inclusivo, estaríamos a passar por cima de séculos de soberania parlamentar. Além disso, só podemos sair da Europa pela mesma forma que entramos, por uma decisão parlamentar. Qualquer estudante do primeiro ano de direito vê isso.

A questão da imigração dominou a campanha. Há analistas que falam mesmo de “afunilamento temático”. O Reino Unido é hoje o destino da maioria dos emigrantes portugueses, por exemplo. A Gina também é imigrante. O destino destas pessoas pesou na decisão de levar o governo a tribunal?
É absolutamente vergonhoso que não tenha havido informação nenhuma da parte do governo sobre aquilo que irá acontecer aos cidadãos da União Europeia a viver no Reino Unido. Tem que lhes ser dada segurança. E isso só será assegurado se houver um debate no Parlamento, extenso, duradouro, sustentado por estudos, e é para isso que eu peço que os termos da nossa saída sejam votados no Parlamento, para assegurar que toda a gente sabe o que vai mudar. O governo devia ter dito, claramente e com detalhe, quais os planos que tinha em relação aos imigrantes. O impacto nas pessoas será enorme, em todos os aspetos da sua vida. Elas estão preocupadas com a sua família, com as suas crianças, com a educação delas. As mudanças que a nossa saída trará são tão abrangentes quanto complexas.

O que é certo é que, muitas pessoas — e isso verificou-se, tanto na campanha, como em alguma violência contra os imigrantes que se registou depois — votaram para reduzir a entrada de estrangeiros. Isso pode acontecer quando de facto a saída se concretizar?
Não. Vamos olhar para isto do ponto de vista de quem votou. Há imensos mal-entendidos. Eu falo com pessoas que acham que, quando sairmos, as pessoas vão ter que ir todas embora, em duas semanas ou assim, e é nisso que elas votaram, na crença de que eles terão que ir embora. Isto não vai acontecer. Esta ideia de que as pessoas vão simplesmente procurar uma nova morada imediatamente é ilusória, no mínimo. A maioria da imigração continua a ser extra e não intra-europeia. Esse é um problema do qual não podemos fugir. O que David Cameron [primeiro-ministro britânico que liderou, e perdeu, a campanha pela permanência demitindo-se depois] deveria ter feito durante a campanha era envolver toda a Europa num debate sobre as melhores formas de receber as pessoas que podemos receber e instituir medidas que fiscalizem a imigração ilegal.

É absolutamente vergonhoso que não tenha havido informação nenhuma da parte do governo sobre aquilo que irá acontecer aos cidadãos da União Europeia a viver no Reino Unido. Tem que lhes ser dada segurança. E isso só será assegurado se houver um debate no Parlamento, extenso, duradouro, sustentado por estudos, e é para isso que eu peço que os termos da nossa saída sejam votados em parlamento, para assegurar que toda a gente sabe o que vai mudar.
Gina Miller, gestora financeira e promotora de uma ação legal contra o governo britânico

Diz que não quer ser a heroína de ninguém, mas apercebe-se que está a representar muitas pessoas?
Sim. Os que votaram para ficar e também os que votaram para sair. As pessoas chamam-me muitas vezes uma intrometida. A última das sufragistas. Nunca consegui caminhar de um lado da estrada se do outro lado estivesse a ver alguém a ser ofendido, ou mal-tratado. Quando eu vejo que ninguém se está a importar com uma injustiça, então eu mesma tomo essa dor. Temos que ter direito de nos revoltarmos, de nos insurgirmos, porque se não, o governo faz o que quer sem oposição e isso é totalitarismo, não é um país onde alguém queira viver.

Acha que o Reino Unido ficou mais intolerante com quem é, de alguma forma, um outsider como a Gina?
Os avanços incríveis que eu vi acontecer nos últimos 40 anos na Grã-Bretanha, em termos de tolerância, parece que foram aspirados para dentro de buraco negro nos últimos meses. “Se não nasceres aqui não és britânico”, já me disseram a mim. Eu nunca pensei ouvir isto. A coisa melhor deste país é que sempre foi uma nação inclusiva, com uma mente coletiva virada para o mundo e beneficiámos disso. Durante a campanha, contudo, estava tudo em carne viva e desde o voto há uma divisão e uma polarização que seria inaceitável há uns anos. O que se passou no referendo foi como se cada um de nós andasse com uma picareta a espicaçar as feridas dos outros. Isto porque os políticos são irresponsáveis e fazem uso disto, dão exposição e utilizam estas posições extremistas que são, obviamente, minoritárias.

Os avanços incríveis que eu vi a acontecer nos últimos 40 anos na Grã-Bretanha em termos de tolerância parece que foram aspirados para dentro de buraco negro nos últimos meses. "Se não nasceres aqui não és britânico", como me disseram a mim. Eu nunca pensei ouvir isto.
Gina Miller, gestora financeira e promotora de uma ação legal contra o governo britânico

Há muitas notícias sobre as ameaças de morte, de violação, feitas a si e à sua família. Ao início não ligou, mas a sua rotina acabou por mudar completamente. Como lida com isso?
Tenho que acreditar que estas ameaças vêm de uma minoria, que sempre lá esteve e que de alguma forma, agora, se sente autorizada a sair do armário, sentem-se mais corajosos para falarem em público sobre as suas opiniões. Se eu não falar, se eu não me insurgir contra eles, se eu não continuar a lutar, por medo, ou se nós não fizermos isso em conjunto, então eles ganharam, essa minoria intolerante. Não passam de bullies. Não estou preparada para aceitar isso. Pensar que foi também por apatia minha que eles ganharam. Mas estou muito preocupada sim, tudo mudou, todos os aspetos da minha vida. A minha vida pessoal, os meus horários, o sítio de onde faço a gestão dos meus negócios, que é hoje segredo. Não lhe posso sequer contar sob que medidas de segurança estou, não imagina o que poderia acontecer se soubessem onde eu vivo. A polícia britânica teve que se envolver no caso, eles trataram de tudo.

Os juízes também foram acusados de parcialidade e de serem “inimigos do povo” por alguma imprensa. Considera que há uma tentativa de descredibilização?
É mais abrangente que isso. Qualquer pessoa que é inteligente, ou tem sucesso, ou é académico, ou tem anos de experiência em qualquer coisa e de repente é alguém em quem não se pode confiar, é uma elite. Isso é um sítio muito perigoso para se estar. Isto porque, à medida que formos saindo da União Europeia precisamos das melhores cabeças, de pessoas brilhantes para encontrarem as melhores soluções para o país, porque não vão ser tempos fáceis de navegar. Ao mesmo tempo, as pessoas não querem ouvir “especialistas”, isso é uma doença muito perigosa, e incapacitante, que parece que se está a espalhar.

Enquanto se estava a ouvir o recurso interposto pelo governo, Theresa May passou uma moção, que não é vinculativa, mas que demonstra que a grande maioria do Parlamento está preparada para acionar o Brexit quando for chamada a fazê-lo. Isso não esvazia o seu caso?
Não podemos tomar nada como adquirido. Quando o debate começar vamos ver o que falta explicar. Eu recebo imensas mensagens, tanto de pessoas que votaram sim, como das que votaram não, que me dizem que não anteciparam esta “saída dura”, sem explicação, sem se saber o futuro, as consequências. Há muita gente que quer saber mais detalhes. Não houve debate nenhum durante a campanha, então agora tem que haver.

Theresa May fala esta terça-feira sobre a forma como pretende levar a cabo o Brexit

SOEREN STACHE/EPA

Quais os assuntos mais complexos, na sua opinião?
Todos. E ainda não saímos, por isso é que as pessoas ainda não viram o tal colapso financeiro, porque ele vai acontecer. Precisamos muito dos académicos, de um batalhão de especialistas. A complexidade é abissal. Não é possível sair sem que se entendam as implicações para o comércio, o que é o mercado único, o que é a Organização Mundial de Comércio e se esta é uma troca favorável. Como é que fazemos para trocar produtos fora da União? Como é que vai ser com os serviços financeiros? E com os direitos dos trabalhadores protegidos por leis europeias? E que corpo de funcionários públicos temos à disposição para processar todas estas mudanças? Pouquíssimos. E os apoios à agricultura? E as leis para a proteção do ambiente?

Está confiante de que o governo perderá o recurso?
Saberemos apenas 24 horas antes a decisão, lá para o meio de janeiro, mas estou absolutamente confiante. É quase matemática legal. A minha equipa não vê como poderíamos perder. Não há hipótese.

Como antevê as negociações com o resto da União Europeia?
É a grande ironia. Aparentemente, votámos para estarmos entregues a nós próprios, para controlarmos o nosso destino, e nunca estivemos tão dependentes como agora dos parceiros europeus. O que nos dizem aqui é que Theresa May e o seu governo vão desenhar um pacote de medidas e exigências para sairmos, vão levá-las a Bruxelas e o resto dos países vai aceitar. Claro que não vão aceitar. Estão a manter as pessoas na obscuridade!

"À medida que formos saindo da União Europeia precisamos das melhores cabeças, de pessoas brilhantes para encontrarem as melhores soluções para o país porque não vão ser tempos fáceis de navegar. Ao mesmo tempo as pessoas não querem ouvir "especialistas", isso é uma doença muito perigosa, e incapacitante, que parece que se está a espalhar".
Gina Miller, gestora financeira e promotora de uma ação legal contra o governo britânico

Qual é a solução?
Temos que ter mais tempo e mais cenários estudados. É por isso que eu estou a tentar levar isto ao Parlamento, é a razão de tudo isto. Os deputados fizeram todos um péssimo trabalho, não fizeram perguntas, especialmente a oposição, especialmente o partido Trabalhista. Espero que o trabalho que eu fiz lhes dê o espaço e o tempo para o escrutínio necessário. Espero que eles tenham coragem também.

E se o governo ganha?
Não vejo uma réstia de possibilidade de que isso possa acontecer. Se isso acontecer, então perdemos todos os nossos direitos constitucionais. Ainda temos muito trabalho pela frente, mesmo depois de conhecermos o veredito. Digo isto porque, se nós ganharmos, ou seja, se o acionamento do Artigo 50 tiver que passar pelo Parlamento e o governo tentar contornar isso usando uma resolução ou uma moção e não um ato parlamentar, com debate sério de todos os partidos, eu vou levá-los de novo a tribunal.

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