Há músicas que vivem da palavra e há as que, vivendo da palavra, se tornam universais por aquilo que comunicam para lá delas. Quem interpreta tem a exígua missão de extrair a significância das palavras, como o beija-flor que pica o estame de um brinco-de-princesa, e expressá-la ao mundo de uma forma tão inequívoca e visceral que, mesmo quem não a compreenda, se sinta polonizado pela emoção que a palavra contém.
Assim é o fado, essa música que se chora bem, como cantava Amália, e que LINA_ define como “um refúgio” e “uma abstração da realidade” que nos permite entrar “numa espécie de levitação e de introspeção”. É a arte antiga de se entregar tão completa e vulneravelmente à poesia que é cantada ao ponto de se ser capaz de provocar uma resposta emocional no outro que a escuta. É, em suma, o louvor da emoção.
LINA_, fadista crescida em Aveleda, povoação bragantina fundada nas entranhas de Portugal, carrega esse dom ancestral na sua voz. A isto, alia uma formação clássica e um conhecimento detalhado das várias estruturas do fado tradicional, das suas regras e rimas, na medida em que lhe presta veneração sem, contudo, se deixar amedrontar pelos seus rígidos ditames.
Este delicado equilíbrio entre o rigor formal, o domínio técnico e a abstração sentimental, feito de reverência, desconforto, transgressão e suplantação, é o que torna álbuns como Fado Camões tão necessários e sublimes. O desafio de escuta, para a qual LINA_ já nos tinha convocado com o antecessor LINA_Raül Refree (2020), neste seu esforço consciente de expandir o fado para lá da sua ortodoxia, exige-nos peito aberto. Entreguemo-nos a ele sem âncoras ou mágoa.
Redondilhas e sonetos camonianos vestidos de fados tradicionais
Para que a expansão aconteça é necessário lançar os ramos a outros céus, ou seja, ir à procura de olhares que acrescentem novas mundividências a uma realidade que já nos é familiar. “Eu não me centralizo só na música do fado. Gosto de absorver e de ouvir outras coisas e de pegar nessas influências. Se nos centralizarmos muito num estilo musical, acabamos por não alargar os nossos horizontes e não saber daquilo que somos capazes”. Esta lucidez levou LINA_ a falar com o produtor catalão Raül Refree para o seu disco anterior (disco do ano para a World Music Chart) e pô-la agora em contacto com Justin Adams, produtor britânico que tem no currículo trabalhos com Tinariwen, Robert Plant e Brian Eno.
Se no primeiro caso, o que a motivou foi a “renovação das paisagens musicais do fado”, com base no cancioneiro de Amália Rodrigues, em Fado Camões o desafio partiu “das palavras que têm habitado o fado” para o repensar, “indo até ao representante máximo das nossas origens linguísticas”. “Ao folhear a lírica de Camões, acabei por me emocionar bastante.”
[“O que Temo e o que Desejo”, com Rodrigo Cuevas”:]
Quando a ideia lhe ocorreu, há dois anos, folheou a obra completa de Camões, tateando a musicalidade dos poemas renascentistas e clássicos. “O meu conhecimento de fados tradicionais permitiu-me encaixar um poema num fado tradicional que, tanto na estrutura como na temática, ficasse bem”. Fê-lo com a ajuda de Amélia Muge, que lhe possibilitou uma leitura mais profunda sobre as acentuações, sonoridade silábicas e temáticas da poesia camoniana, principalmente das sextilhas, onde as rimas mais vezes diferiam da estrutura tradicional do fado.
“A Amélia ajudou-me nesse sentido e também a ser teimosa. Incentivou-me e encorajou-me, mostrando-me que eu era capaz”, confidencia a fadista nascida como Carolina e que, sob esse nome, editou dois álbuns anteriores a esta sua fase mais experimentalista: Carolina, em 2014, e EnCantada, em 2017. LINA_ olha para esses tempos com gentileza, rejeitando a ideia de rutura. “Estes dois discos foram a procura de um caminho. Há uma evolução e não uma rutura. Evoluo à medida que vou ouvindo outras músicas.”
O silêncio e a alma das canções
Voltemos então a Fado Camões e a Amélia Muge, que entre várias adaptações, assinou a composição de Senhora Minha, em que um órgão e uma interpretação sacra de LINA_, parecendo a sua voz ecoar nas paredes de pedra fria de uma igreja gótica, choram um amor debuxado. Foi também Amélia que deu força à fadista de 39 anos para gravar Amor é um Fogo que Arde sem se Ver, advertindo-a para a importância de “dizer muito bem as palavras”: “Eu fazia gravações, ouvia-as, percebia que ainda não estavam bem, voltava a gravar para tentar dar o máximo de significado ao poema e intensidade às palavras”.
Daqui resultou umas das faixas mais arrepiantes de Fado Camões, na qual LINA_ se confunde com Sílvia Pérez Cruz na forma como dilata e contrai cada respiração, cada nota, fazendo do silêncio entre as palavras tão preponderante quanto a sua dicção. “É necessário dar espaço às palavras para que as pessoas tenham tempo de interiorizar cada frase e de sentir o que estão a ouvir e para eu própria conseguir chegar a um patamar em que a música se faça com calma e sentimento”.
Esse sentimento já vem da adolescência, altura em que estudou canto lírico no Porto, cantando árias de olhos fechados, como se fossem fados. “Cantar de olhos fechados é uma forma de olharmos para dentro de nós e até para fora, de nos abstrairmos de várias coisas”, diz. Para que a abstração se fizesse total em Fado Camões – para lá da roupa branca com que se apresenta em palco, simbolizando a “pureza” e a desmaterialização da voz – foi essencial o contributo de Justin Adams.
Ele, quando recebeu o convite para produzir o disco, quase nada sabia sobre o fado. Nem sequer lhe entendia o groove, como explicou num documentário passado recentemente na RTP2. Para LINA_ isso pouco interessava: o conhecimento e a paixão que Justin alimentava pelas músicas tradicionais e a participação em projetos como o último álbum da argelina Souad Massi, Sequana (2022), foram razões mais do que suficientes para ter a certeza de que era com ele que queria trabalhar.
A fórmula resultou tão bem que, à primeira ida para estúdio, gravaram Desamor, musicado a partir da estrutura do Fado Menor do Porto de José Francisco Cavalheiro Jr. “Não mexemos na música depois da primeira gravação em estúdio. Apesar de nunca ter estado com ele, foi como se eu já o conhecesse. Foi muito interessante”.
Entre os sons ambientais e as heranças medievais
Quem tão pouco sabia navegar nas águas do fado era John Baggott, teclista experiente no campo do jazz e da música clássica, colaborador de projetos como os Massive Attack e os Portishead, chamado por Justin para “harmonizar” a equipa. O convite foi “assustador”, confidenciou no mesmo documentário, mas depois de uma “conversa honesta” e de se maravilhar com o “som tecnicamente perfeito” de LINA_, não mais olhou para trás. A ele juntou-se a guitarra portuguesa de Pedro Viana, instrumento preterido no trabalho assinado com Refree e agora repescado para desbravar novos modos de tocar, e o violino de Ianina Khmelik, presente em Amor é um Fogo que Arde sem se Ver e em Desencontro, um fado corrido popular salpicado de poeiras do Sahara.
[“Desamor”:]
Desta mistura de campos musicais tão distintos resultou um álbum tão rico quanto minimalista, tal e qual uma açorda alentejana. Fado Camões é habitado por elementos ambientais, dados pelos sintetizadores de Baggott – teremos ouvido o ovni de Humming, dos Portishead, em Lina Vaz de Camões? – por toques magrebinos e árabes, principalmente nos ritmos e percussões – em In Labirinto, canção com base no Fado Bailado de Alfredo Marceneiro, é palpável a pele quente do tambor –, pelo lamento da música sufi, respirando o mesmo lamento de uma Arooj Aftab, pelos tropos gregorianos ou pelo cancioneiro popular e galaico-português, cujos temas Desencontro, Canção e O que Temo e o que Desejo são a expressão máxima dessa herança.
“Luz, vídeo, emoção e voz”
Para este último, LINA_ chamou Rodrigo Cuevas: “Me gusta trabajar com tías majas”, partilhou o músico asturiano no documentário LINA_Fado Camões, confessando-se admirador da fadista portuguesa. Os dois conheceram-se no Museu do Oriente, aquando de um concerto de Cuevas em Lisboa. A empatia foi imediata. “Explorar sonoridades e texturas diferentes que nos façam arrepiar e sentir as emoções de uma forma mais intensa, não só pelo facto de ser algo tradicional e identitário, é uma coisa pela qual eu tenho curiosidade”. A afirmação é de LINA_, mas bem poderia ser de Rodrigo Cuevas.
A parceria não tinha por onde errar e ficou ainda mais robusta com a intervenção de Amélia Muge. Foi ela que fez a junção de dois poemas na mesma letra, um em português e outro em galaico-português, nascendo assim uma canção “que resultou muito bem”. Batida, palmas, deserto, danças medievais, tudo cabe em O que Temo e o que Desejo, a nossa História e o nosso Futuro.
Fado Camões tem ainda duas composições inéditas da autoria de LINA_: Se de Saudade Morrer ou Não, que tanto lembra José Afonso na colocação da voz como, ao longe, o ritmo da Xiringüelu de Cuevas; e Lina Vaz de Camões, adaptação do poema Fermosa e Gentil Dama, onde o piano de Baggott é fatal, tão fatal como Bernardo Sassetti um dia foi para Carlos do Carmo. “Decidi chamar-lhe assim por ser a primeira música que escrevi e por ser de Camões. Fui cantando os versos e dando-lhes a entoação que achava que melhor vestiam o poema.”
O álbum, fruto de praticamente quatro meses intensos de trabalho, viajará agora pelo mundo, com paragens nos palcos de Espanha, França e Noruega. Antes, apresenta-se no Festival Eurosonic, nos Países Baixos, no preciso dia do seu lançamento. “Não estava à espera deste convite de última hora. Deixou-me muito feliz”, partilha LINA_, que já tinha passado por este festival de referência em 2020, com Raül Refree. Portugal terá oportunidade de ouvir Fado Camões ao vivo no dia 30 de janeiro, no Teatro da Trindade, em Lisboa, e a 17 de fevereiro, no Teatro Pax Júlia, em Beja. Outras datas serão anunciadas mais para o final do ano, adianta a fadista. Para estes concertos, promete alguns convidados, “sempre que possível”, “luz, vídeo, emoção e voz”. Fechemos então os olhos e deixemos morrer e renascer o fado.