A foto foi publicada pouco antes de embarcar num voo saído de Las Vegas com destino final em Portugal. Com a folha do casting na boca, Rui Paixão, 19 anos, acabado de sair do ensino secundário, anunciava desta forma ter sido selecionado para o novo projeto do Cirque du Soleil. O rapaz de Santa Maria da Feira, que se identifica como “palhaço contemporâneo”, simples desconhecido habituado a passar o chapéu em espetáculos de rua, percebeu então que a sua vida tinha mudado num lapso de 12 horas: nas chegadas do aeroporto de Lisboa, vários jornalistas aguardavam o primeiro português contratado pela companhia de entretenimento internacional.
Muitas coisas mudaram desde esse ano de 2017 em que foi selecionado entre 300 candidatos para apenas quatro lugares. O espetáculo estreou-se na China dois anos depois, esteve em cena durante mais de seis meses, até que a pandemia o obrigou a fazer o primeiro confinamento do mundo no país onde o vírus nasceu. Agora, Rui Paixão é o protagonista de um novo filme, cuja estreia está marcada para este domingo, 2 de outubro, pelas 17h, no Cinema Charlot, em Setúbal, seguido de conversa com os responsáveis da Dona Edite Produções, o próprio Rui Paixão e performers que participam no documentário/ficção (com moderação de Patrícia Portela). “Fato Macaco” é uma longa metragem rodada no Bairro dos Pescadores e no Bairro do Grito.
Desafiando a lógica e o diálogo que vulgarmente se estabelece no teatro, ao longo do filme podemos ver o protagonista perante situações do dia-a-dia, interagindo em silêncio com os moradores, criando momentos tão desconcertantes quanto simples, pela aparente normalidade com que estes encaram alguém escondido numa máscara monstruosa. “A câmara começava a rodar no momento em que punha a mascote na cabeça. A partir daí valia tudo”, conta Rui Paixão ao Observador, que durante dez dias, juntamente com a equipa de filmagens, foi-se aproximando das gentes do bairro.
Não lançaram logo o ator disfarçado na sua bizarra aparência. “Como havia um set para montar, íamos para o café, bebíamos umas cervejas e partilhávamos as nossas histórias, a mesma precariedade. Tal como acontece com os artistas, ali, o desemprego e as dificuldades são uma dura realidade. E isso foi algo que nos uniu desde o princípio.” Ao terceiro dia, começaram a montar câmaras e a iluminação, no dia seguinte o ator assumiu o personagem. Gravaram mais de dez horas num confronto de banalidades entre o ator e os verdadeiros habitantes, sem guião ou narrativa.
Esse é na verdade o trabalho que Rui Paixão desenvolve desde o momento em que descobriu a ideia de ser clown como forma de vida. Habitar o espaço público como um palco, provocando situações caricatas, surreais, divertidas e desconfortáveis no seu público. “Costumo dizer uma frase para definir o meu trabalho: no teatro estamos protegidos num jardim zoológico, na rua é a savana. Podes comer ou ser comido”, afirma o ator de Santa Maria da Feira, que tenta reinventar-se sem rede em todos os seus trabalhos, dono de um respeitável currículo, que o levou a viajar de leste a oeste do globo. Entre outras distinções, em 2015, com 20 anos, foi considerado pelo IMAGINARIUS — Festival Internacional de Artes de Rua de Santa Maria da Feira a revelação das artes de rua em Portugal e venceu o prémio OFF CIRCADA no festival CIRCADA, em Sevilha, como artista emergente no circo contemporâneo.
Passar o chapéu
Filho de mãe doméstica e de um pai operário numa empresa de mármores, Rui Paixão até começou pelo desporto, mas cedo apontou para as artes. “Andava no basquete, mas como era tão mau os meus pais acabaram por me inscrever no teatro”, conta. Seria o princípio de tudo: “aos 14 anos comecei a fazer performances na rua”. Como o dinheiro não abundava na família humilde, era habitual passar os chapéu depois de cada espetáculo para juntar algum dinheiro. “Não era a forma como eu via a minha vida a desenrolar-se, mas não pensava como seria aos 30. Queria viajar e ser maluco. E a aparente precariedade do chapéu soava-me a algo poético.”
Com uma profícua atividade nas ruas, o ator decidiu que era tempo de estudar e foi para a Academia de Teatro do Porto. Após três anos percebeu que dificilmente teria sucesso tendo um palhaço como segunda pele. “O mercado estava bastante viciado e senti que sujeitar-me era matar-me por dentro. Chegaram a dizer-me: tens de te apresentar como ator, seres um palhaço é um statement demasiado forte”. Precisava de encontrar uma estratégia para internacionalizar os seus espetáculos de rua: “um palhaço que não falava”. A ausência de palavras era exatamente o ponto de união com o seu público.
Desconcertante, criativo, provocador, transgressor, sem rede, capaz de conduzir ou de ser conduzido pelos seus interlocutores na rua, Rui Paixão foi-se destacando em festivais internacionais como o de Edimburgo, onde venceu uma competição sem saber. Apenas as viagens eram pagas, mas foi na capital escocesa que o chapéu lhe rendeu mais dinheiro: 500 euros por dia. Depois veio o prémio: “Passei para uma zona do festival que era uma competição e eu tinha uma ideia inovadora de palhaço. Ter ganho o prémio fez-me pensar por que razão me tinha calhado na rifa ser palhaço, e estava apaixonado por aquela sensação.” Fez uma tour de quatro anos na qual divulgou o seu trabalho por países como Portugal, Espanha, França, Alemanha, Holanda, Escócia, Suécia, Polónia e Brasil. Criou HANNO e integrou o OLE — Outdoor Lab Experience em França no festival Cratère Surfaces.
Parte do percurso explicava-se nas raízes. Crescer em Santa Maria da Feira, onde vivem todos os amigos, cidade com um festival de artes de rua, uma feira medieval e vários eventos no espaço público, que é onde realmente se sente em casa, foi o rastilho de uma carreira. “A cidade influenciou-me totalmente. Eu já tinha a paixão pelas artes de rua, foi ali que percebi ser possível viver assim. Todos os anos havia um grupo de artistas internacionais que vinha à cidade e eu achava aquilo extraordinário. Aquela ideia de que não conheces a pessoa que está ali, que só a encontras na rua, que se propõe a fazer-te rir a, transformar o teu dia, e depois desaparece. Essa foi a primeira lição que Santa Maria da Feira me deu: intervenção, a manifestação, provar o impacto nas pessoas.”
Da China a Portugal
Tinham passado dois anos desde o casting em Las Vegas. Durante esse período, ensaiou em casa, fez algumas viagens e começou a preparar-se para ser o protagonista do novo espetáculo do Cirque Du Soleil, na cidade de Hangzhou, com seis milhões de habitantes, na China. “Foi um processo longo. Fiz o casting em 2016 e fui para a China em 2019. Pelo meio ainda estive no Canadá, na sede da companhia, já para trabalhar no meu papel.” Uma produção que implicou a construção de um novo teatro de raiz, tendo Rui preparado de forma intensa, já no Oriente: treino diário de cardio, preparação muscular, piscina e constantes avaliações.
Já antes fizera aulas de acrobacia, desenvolvimento de novos movimentos para responder ao que lhe era pedido pela companhia: um clown físico, com técnica, capaz de fazer rir o mais pacato dos chineses. “Era uma espécie de videojogo, usava uns trackings que faziam a bancada acompanhar-me sempre. Passava o espetáculo praticamente todo em palco e tive grande liberdade criativa do meu personagem, chamado Kino, muito cómico, inspirado no início do teatro italiano. Tive um coach que me ajudou a construir o número de clown.” Depois da estreia, em julho de 2009, juntamente com os dois americanos, um francês e um italiano selecionados no mesmo casting.
Contra todas as probabilidades, um português vindo de uma pequena cidade tinha chegado a uma companhia internacional. Quis o destino que a peça fosse interrompida seis meses depois, devido à pandemia de covid-19. Seguiu-se o confinamento e o regresso a Portugal, vazio, desenquadrado, como se tivesse acordado de um sonho. “Aquilo foi, na verdade, bastante tempo, com muita entrega da nossa parte. Não houve sequer tempo para um adeus, foi a primeira vez que vivi fora da casa dos meus pais. Quando voltei senti-me meio perdido, qual seria o próximo passo? Nem era possível prever devido à pandemia.”
Salvaguardou-se com o dinheiro que tinha juntado na China, estudou a fundo o que se propunha na vida – ser palhaço – e no processo surgiu a ideia para um novo espetáculo: Albano. Partindo de lugares mitológicos e filosóficos, explorando a personagem de Albano Beirão, o ator questionava o seu lugar enquanto palhaço, mas também “o do público enquanto público e, eventualmente, enquanto palhaço também”. Um argumento para o desconforto e o ridículo e a ideia de noção.
Com um discurso naturalmente de protesto – inflamado pela democratização da arte e de uma maior abertura dos espaços – Rui Paixão tem conseguido furar o difícil mercado sem fazer concessões. “Só ficarei feliz quando um palhaço ou um cantor pimba atuarem num teatro nacional.” Prova disso é este “Fato Macaco”, cujo título remete para o universo do labor, do sindicalismo e das dificuldades. A ante-estreia aconteceu durante uma patuscada no Café do Sr. Ângelo. “Era a nossa prova de fogo, apresentar primeiro filme aos moradores. Foi extraordinário porque as pessoas nunca se calaram durante a exibição. Comentaram, riram e no final choraram.”