O parque da Bela Vista é quase sinónimo de Rock in Rio, mas no início de setembro há um festival que quer mudar isso. Começa logo pelo próprio nome: ‘Bela Vista’ ou, no grego, ‘Kalorama’ — uma empresa fundada pela empresa espanhola “Last Tour” com menos de 8 meses de existência em Portugal. Com datas marcadas para 1, 2 e 3 de setembro, o festival foi anunciado a 23 de novembro do ano passado pelos Artic Monkeys. Nesse dia, a banda anunciou no Instagram que no dia 2 de setembro estaria em Lisboa no Festival Kalorama. Até esse momento ninguém tinha ouvido falar ainda no evento, nem a própria autarquia. Ao que o Observador apurou a marca, inclusivamente, nem tinha ainda começado o processo de registo, mas já dava a realização por garantida.

Esta sexta-feira, depois de dois adiamentos, a proposta de protocolo entre a Câmara Municipal de Lisboa e o Festival Kalorama que prevê um investimento da autarquia de mais de 2,1 milhões de euros — entre isenções de taxas e fornecimento de bens, serviços ou meios, bem como pagamento de energia e água — acabou por ser viabilizado pelo Partido Socialista. 

Depois de várias indecisões relativas a novo adiamento, pedido inclusivamente por Carlos Moedas, o executivo autárquico acabou por aprovar o apoio — se adiasse mais a votação, o festival ficaria comprometido. Falta agora que a Assembleia Municipal se pronuncie sobre a questão, sendo certo que Carlos Moedas deixou “garantias” de que ia esclarecer tudo sobre a “relação legal entre o Rock in Rio e o Kalorama”.

As dúvidas sobre a relação entre os dois festivais começam na partilha das infraestruturas (palcos e outras) entre o Rock in Rio e o novo Kalorama. Perante a dificuldade do executivo em esclarecer várias questões suscitadas durante a reunião — já depois de dois adiamentos e um documento com esclarecimentos enviado aos vereadores — ficou o compromisso de esclarecer tudo antes da votação na Assembleia Municipal. O adiamento esta sexta-feira da votação deixava em risco a realização do festival. Agora, o próximo passo é a votação na Assembleia Municipal de Lisboa, agendada para a próxima terça-feira, a última antes das férias.

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Empresa Kalorama criada em novembro vai receber apoio de 2 milhões

A viabilização do Partido Socialista deu luz verde ao protocolo, que prevê isentar o pagamento de 1.769.262,80 euros em taxas, mais 26.280 euros em energia e água e ainda 360 mil euros em bens, serviços e meios humanos da autarquia (entre a gestão do parque, da monitorização do ruído ou bebedouros de água, por exemplo, bem como a Polícia Municipal), que serão colocados ao serviço do festival.

Nas últimas semanas, no executivo da autarquia surgiram várias dúvidas em relação aos moldes da realização do festival Kalorama e ao apoio dado pela autarquia. A 23 de novembro, o festival foi anunciado pelos Artic Monkeys, sendo só depois confirmado pela equipa que está à frente do Kalorama. No Twitter, a 27 de novembro a empresa explicava como podiam ser comprados os bilhetes. No dia seguinte, os ingressos seriam colocados à venda, em regime de pré-compra. A 1 de dezembro abriu a venda geral de bilhetes.

No dia em que o festival foi anunciado, a 23 de novembro, ficou à disposição dos interessados, desde logo, a inscrição numa lista de espera que dava depois acesso à pré-venda. Mas há um pormenor a ter em conta: até esse dia, nem a Câmara de Lisboa sabia da existência do festival, nem sequer existia formalmente a empresa.

Ao que o Observador apurou a reunião com o vereador na autarquia lisboeta Ângelo Pereira foi pedida precisamente a 23 de novembro, mas só aconteceu efetivamente uma semana depois, a 30 de novembro, data a partir da qual começaram os contactos entre a promotora do evento e os serviços da autarquia para avançar com a preparação do festival.

A constituição da sociedade Giras e Audaciosas foi deliberada dois dias depois de os Artic Monkeys precipitarem a divulgação pública do festival, a 25 de novembro. Com um capital social de 3.000 euros e tendo como titular único a empresa espanhola ‘Last Tour Concerts, Sociedad Limitada’, gerida por Alfonso San Vicente, só meses mais tarde a empresa mudou de nome para Kalorama Festival, Unipessoal Lda.

A alteração ao contrato de sociedade foi decidida a 23 de fevereiro de 2022 e foi publicada no mesmo dia. Antes disso, a empresa Last Tour, no dia em que constituiu a empresa Giras e Audaciosas, a 25 de novembro, deu entrada com um pedido para registo da marca Kalorama a nível europeu.

Como aceitaram então os Artic Monkeys fazer parte de um cartaz de um festival organizado por uma empresa que ainda não estava criada? Na realidade, a Last Tour — que fundou a Giras e Audaciosas — tem os Artic Monkeys no cartel de artistas que agencia. Para o novo festival em Lisboa, a empresa jogou com a prata da casa.

Antes que o processo de registo de marca tivesse sido dado como terminado, a empresa mudou o nome e ainda conseguiu que a Meo se assumisse como naming sponsor do festival. A 17 de junho, a marca ficou finalmente registada a nível europeu, segundo conseguiu apurar o Observador.

Protocolo com autarquia de Lisboa ascende a dois milhões, mas executivo continua com dúvidas

Sem tempo ainda para conseguir apresentar relatório de contas, considerando os apenas os oito meses de existência a empresa Kalorama viu esta sexta-feira a Câmara de Lisboa viabilizar o protocolo, mesmo depois de muita hesitação. Ainda assim, o apoio terá ainda de ser viabilizado em sede de Assembleia Municipal.

O licenciamento do festival continuará a correr nos serviços da autarquia até que o protocolo seja selado. Ao Observador, a organização do festival Kalorama diz que só colocou os bilhetes à venda “com o devido processo de licenciamento do evento em curso junto dos serviços municipais”.

Apesar de tudo, a autarquia não esclareceu ao Observador em que data a empresa pediu esse licenciamento. Constituída a 25 de novembro, a empresa terá pedido o licenciamento num dos três dias subsequentes até à abertura da pré-venda, ainda antes da reunião com o vereador Ângelo Pereira.

Caso o protocolo entre a autarquia e o festival seja agora rejeitado em sede de Assembleia Municipal, a organização do Kalorama diz ao Observador que “o evento mantém o processo de licenciamento em curso”. Ficará então a cargo da empresa o pagamento de um total de 2.155.542,80 euros.

Em 2019, a autarquia de Lisboa aprovou um protocolo com o Rock in Rio para duas edições do festival em 2020 (que acabou por não se realizar dadas as restrições relacionadas com a Covid-19 e 2022) com um custo total de 2.991.743,82 euros. A empresa responsável pelo festival, a Better World, tem um capital social de mais de 10,3 milhões de euros e recebeu cerca de três milhões de euros de apoio da autarquia para duas edições.

Duas edições representavam um investimento da autarquia de três milhões de euros. Pondo em perspetiva, a a realização da primeira edição do Kalorama vai implicar um apoio da autarquia de cerca de 800 mil euros à Kalorama.

Kalorama usará infraestruturas do Rock in Rio. Autarquia não diz quem paga

Ao Observador, a organização do festival recusa que haja qualquer acordo “entre os festivais Kalorama e Rock in Rio Lisboa”, mas confirma que irá utilizar as infraestruturas do RiR, que se realizou em junho e que se manterão no local até setembro.

Rejeitando “qualquer envolvimento do Rock in Rio Lisboa” nas “negociações e contratações realizadas diretamente entre o festival e os respetivos fornecedores”, sem “intermediação do Rock in Rio”, a Kalorama confirma que pagará aos “proprietários/fornecedores dos equipamentos”, cumprindo “os compromissos publicamente assumidos, em linha com com a Agenda 2030 e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável estabelecidos pela Assembleia Geral das Nações Unidas, que passa pela reutilização de equipamentos, infraestruturas, materiais, etc, sempre que possível”.

Até lá, o parque da Bela Vista não poderá ser utilizado na sua totalidade pelos lisboetas. Questionada pelo Observador, a autarquia confirma que “algumas estruturas irão permanecer no Parque da Bela Vista, transitando do Rock in Rio para o Kalorama, incluindo o Palco Mundo”.

“Estas estruturas vão ser vedadas, ficando grande este espaço verde aberto e acessível aos munícipes até perto da data do evento Kalorama, que decorre de 1 a 3 de setembro”, confirma a autarquia sem justificar quem pagará as taxas de ocupação entre o final de julho quando termina o protocolo com o Rock in Rio e o dia 15 de agosto, a data definida no protocolo com o Kalorama, caso este seja viabilizado pela autarquia.

A autarquia respondeu ao Observador que o Rock in Rio “demora cerca de um mês a desmontar as estruturas do festival”, ainda que haja vários relatos de moradores da freguesia que contrariam essa ideia, incomodados ainda com a presença de estruturas mais de um mês depois.

Segundo a autarquia, a área central do parque da Bela Vista deve abrir a 22 de julho, mas continuarão algumas estruturas e áreas vedadas até à realização do Kalorama no primeiro fim de semana de setembro.