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Aqui está ela, a lista dos melhores discos do ano. Enfim, os melhores discos de entre os que os jornalistas e colaboradores que habitualmente escrevem sobre música no Observador ouviram ao longo de 2021. Conclusões? A primeira e mais óbvia está na tendência que espelha também a influência do streaming: há poucas repetições, diferentes universos e outras tantas linguagens criativas.
Mas há mais informação a retirar desta lista. A canção, por exemplo, é uma clara vencedora. Assume cada vez mais possibilidades, pemite-se ser manipulada até à exaustão e revela que continua a ter segredos. Isto numa era em que percebemos outra evidência: nunca as nossas vidas dependeram tanto de uma só canção, álbuns à parte.
Ainda assim, são eles que vão permanecendo como o estímulo maior para que inventivos e destemidos criadores se atirem ao estúdio — mais profissional ou mais caseiro — como caldeirão que destila tudo: a vida pessoal, as histórias de ficção ou os terrenos que se ficam pelo meio destes dois cenários. E talvez neste campeonato a música britânica, entre a pop e a composição urbana mais experimental, tenha conseguido chegar a um patamar de desafio raro. Avalie, compare, descubra, mas, acima de tudo, ouça:
André Almeida Santos
Henry Franklin — The Skipper At Home (Real Gone Music / Black Jazz Records)
A Black Jazz Records existiu durante seis anos, entre 1969 e 1975, produzindo 21 álbuns. Nos últimos meses, a Real Gone Music tem reeditado o catálogo, que é de uma coesão e estética impressionantes. Os dois álbuns de Henry Franklin, Skipper (1972) e The Skipper At Home (1974), este reeditado neste ano, jogam em linhas mais tradicionais do jazz, com energias e códigos próprios, que deixam entrar sorrateiramente o funk, o eléctrico e algumas frases mais livres. Tudo ameno e limpo.
Loraine James — Reflection (Hyperdub)
No álbum anterior – For You And I –, Loraine James brincava com os códigos da eletrónica que se chega à música de dança, explorando de forma livre a herança deixada por Burial, Kode9 e Skream, nos tempos em que o dubstep rebentou para o mainstream. Em “Reflection” sai dessa bolha, desconstrói a música de dança limpinha britânica que nasceu dessa herança e trabalha livremente sobre o que entende como beats / breaks. Segura no seu desconforto, expressiva e clara como voz de uma geração que vive hoje no Reino Unido.
Low — HEY WHAT (Subpop)
Existir há quase três décadas no meio musical independente, assistir a inúmeras mudanças no meio musical, na cultura popular, na cultura independente – sobretudo a norte-americana – e renascer umas quantas vezes é obra. Os Low são capazes disso. Acresce que têm uma carreira praticamente imaculada, uma mão cheia de obras-primas criadas na sua primeira década de existência e, agora, de uma assentada, três álbuns – Ones And Sixes (2015), Double Negative (2018) e este HEY WHAT – que se colocam lá bem em cima. Não só da sua carreira, mas no contexto criativo do rock/rock experimental atual. O peso da idade, o não saber como existir nos Estados Unidos atuais e uma vontade de sobrevivência imensa têm despoletado o melhor dos Low.
Ben LaMar Gay — Open Arms to Open Us (International Anthem / Nonesuch)
No contexto 2021, de segundo ano de pandemia e com o movimento BLM no caldeirão, a editora de Chicago International Anthem teve uma mão cheia de lançamentos que expuseram o presente, como causa e consequência na música que editaram. Apesar de o álbum de Ben LamarGay não ser aquele onde essa presença é mais notória, imediata, é aquele onde ela existe na fluência da própria música, que vira mensagem de forma modesta. Música que recusa género, que se reinventa e descobre a cada audição.
Mário Rui Silva — Stories From Another Time 1982-1988 (Time Capsule)
A associação a álbuns como Angola 72, de Bonga, ou Lindeza, do Duo Ouro Negro, são fortes referências para se prestar a atenção ao trabalho de Mário Rui Silva. Contudo, foi preciso alguém de fora, uma editora londrina, pegar no seu trabalho a solo para o apresentar com uma tonalidade única e juntá-lo a nomes como Naná Vasconcelos, Francis Bebey ou Jon Hassell. A compilação conta uma história, começa com temas mais terrenos para depois se abrir a experiências no território do jazz e da eletrónica cheia de estímulos e instinto, contornando o paternalismo da “música do mundo”. Uma ótima escolha do trabalho de Mário Rui Silva nos 1980s, que serve também de história e é uma porta de entrada para um músico fascinante.
Filipa Teixeira
Floating Points, Pharoah Sanders & The London Symphony Orchestra — Promises (Luaka Bop)
É uma obra prima aquela que Sam Shepherd, conhecido como Floating Points, assinou com o veteraníssimo saxofonista americano Pharoah Sanders. Este é um daqueles discos intemporais que nos chega às mãos como se fosse um presente do universo, um estilhaço do próprio Big Bang. É uma viagem sonora existencialista, tão depurada quanto densa, que se exprime numa única onda contínua enlevada pelos arranjos da Orquestra Sinfónica de Londres. Para ouvir nesta ou noutra galáxia qualquer.
Rodrigo Amado Motion Trio, Alexander von Schlippenbach — The Field (NoBusiness)
Não foi fácil decidir qual dos dois álbuns que Rodrigo Amado lançou em simultâneo este ano deveria figurar nesta lista – e é quase ultrajante ter que despromover Let the free be men. Ambos os registos deixam escancarado aquilo que é óbvio: que Rodrigo Amado é um dos maiores do jazz mundial. Em The Field, o saxofonista apresenta-se com o seu Motion Trio ao lado do lendário Alexander von Schlippenbach. O que se ouve em disco é uma batalha de ideias tão viscerais que deixam o ouvinte de rastos, agradecendo cada ataque de nota como se dela dependesse a sua vida.
Gisela João — AuRora (Universal Music Portugal)
Era um regresso muito esperado e não desiludiu: com AuRora, Gisela João confirmou que é uma das maiores vozes atuais do fado e revelou-nos, como em nenhum outro trabalho, a sua intimidade. Assinou pela primeira vez temas seus, expandiu a sonoridade do seu fado para o campo da eletrónica, sem desvirtuar o sentimento que é inerente – e urgente – ao género e mostrou-nos como cada poema, cada canção, se pode transformar num grito tão pessoal quanto universal.
Luca Argel — Samba de Guerrilha (Ed. de autor)
Pela estética, pelas referências históricas e pela reflexão que Samba de Guerrilha propõe, sobre a forma como a escravatura continua a ser uma questão mal resolvida num Brasil profundamente dividido, não deixa de ser um dos álbuns mais coesos de 2021. Nele, Luca Argel lança-se numa composição em três atos feita de temas mais e menos conhecidos do grande público, intercalados por narrativas da escritora e música Telma Tvon. Uma viagem de resistência e contestação em jeito de samba.
Arlo Parks — Collapsed in Sunbeams (Transgressive)
Não sendo um álbum coeso do início ao fim, é, contudo, um marco importante de 2021 ao assinalar a estreia de uma das vozes que melhor escreve e canta sua geração. Neste disco, a britânica Arlo Parks mostrou toda a sua sensibilidade, assente numa poética (com refinada ironia à mistura) que reflete sobre o amor, as questões de identidade, o autoconhecimento, a depressão, enfim, tudo o que atormenta uma jovem de 21 anos. É uma lírica que gera empatia em versos como You’re not alone, like you think you are.
Gonçalo Correia
Cassandra Jenkins — An Overview On Phenomenal Nature (Ba Da Bing)
Talvez as circunstâncias que vivemos ajudem a favorecer a música ansiolítica, espécie de calmantes triturados e passados para a linguagem e o ritmo de canções.
Este não é um álbum de auto-ajuda, é menos simples do que isso, mas pode ter um efeito semelhante. Ouvimos os sussurros desta nova-iorquina de 37 anos, os momentos em que a música acelera sem se tornar caótica, ouvimo-la cantar sobre o momento em que “o David [Berman] morreu”, ouvimos belíssimos arranjos jazzísticos e de folk-jazz, reflexões faladas e spoken-word, chilrear de pássaros e sons ambiente, ouvimo-la usar a voz como uma narradora que nos conta histórias… ouvimos tudo isto e o disco continua a surpreender com novos sons a cada audição. Não é só a música casar na perfeição com as letras e a voz, é também que essa harmonia perfeita é complexa, distante das soluções musicais mais tradicionais da folk. Se não for o melhor, é pelo menos o disco mais bonito de 2021.
The Weather Station — Ignorance (Fat Possum / Next Door)
Em outubro do ano passado, Tamara Lindeman — cantora, compositora e multi-instrumentista canadiana — lançava uma canção chamada “Robber” com o seu projeto musical The Weather Station. Para quem a seguia há uma série de anos, foi uma surpresa: já sabíamos que era uma extraordinária escritora, que era capaz de espantar pela minúcia e originalidade com que escrevia sobre relações humanas, emoções e vida interior. Mas nunca a tínhamos ouvido assim, a expandir as suas canções em duração e em ambição instrumental, a trazer um swing jazzístico e levemente dançante à música.
Até aqui, The Weather Station, que pode ser visto como banda mas é sobretudo um projeto musical imaginado, concebido e dirigido por uma pessoa só (Tamara Lindeman), fizera um belo disco íntimo de folk (o muito jonimitchelliano Loyalty, de 2015) e uma aproximação não especialmente memorável ao folk-rock rural (com um disco homónimo, de 2017). Em Ignorance, álbum muito inspirado por reflexões sobre como lidamos com a crise climática e o aquecimento global, desinibe-se, aproveita todas as potencialidades de um grande estúdio e faz uma aproximação original à pop, aperaltando as canções e engrandecendo os arranjos. Os temas que a atormentam podem ser pesados, mas Lindeman sabe dançar e gingar sobre eles. Ignorance é um álbum sem pontas soltas, inatacável até nas baladas como a belíssima (e de despedida) “Subdivisions”.
Ka — A Martyr’s Reward (Iron Works)
No hip-hop, foram poucos os álbuns mediáticos e populares entusiasmantes. Talvez os que mais se tenham aproximado disso tenham sido Sometimes I Might Be Introvert, da rapper britânica Little Simz — um disco com grandes canções como “Introvert” e “Woman”, mais ambicioso mas talvez por isso um pouco mais disperso do que o anterior Grey Area (2019) — e Call Me If You Get Lost, de Tyler the Creator.
Houve ainda assim ouro escondido no hip-hop: Pray For Haiti, do rapper Mach-Hommy, Haram, uma colaboração do duo de hip-hop Armand Hammer (Billy Woods & Elucid) com o produtor The Alchemist, Half God, do nova-iorquino Wiki, Disco!, do também nova-iorquino MIKE, e sobretudo este A Martyr’s Reward, do rapper Ka. Oriundo de Brownsville, com longa carreira na música independente, Ka rappa por cima de batidas muito pouco tradicionais. Sem as percussões habituais, em tom de contos noir, rima como um profeta, como alguém que viu tudo e nos narra agora o (sub)mundo com a sua voz rouca e mestria nos jogos de palavras, ditas de modo claro, pausado quanto baste, profundo. Não há ligeirezas por aqui.
Carlos do Carmo — E Ainda… (Universal Music Portugal)
Seria justo destacar por aqui AuRora, um disco em que Gisela João continua a provar fazer como ninguém novo fado clássico, álbum que celebra não o isolamento mas a liberdade, um certo desprendimento e a força feminina: canções como “Já Não Choro por Ti”, “Canção ao Coração”, “Não Fico Para Dormir” e sobretudo “Louca” obrigavam à referência, tal como o casamento entre o estilo clássico de cantar o fado e algumas nuances eletrónicas novas que não o desvirtuam, dão-lhe apenas mais nome próprio.
Porém, não é todos os dias que temos um fadista a cantar um poema de Herberto Helder, muito menos um fadista desta dimensão. Candidato a grande voz masculina da história do fado, dono de uma carreira longa e sem manchas, Carlos do Carmo morreu a 1 de janeiro de 2021. Felizmente tinha deixado sete temas cantados para um novo disco, a que se somam dois instrumentais (um dos quais com o fadista a recitar palavras do escritor Mia Couto). É difícil não ouvir o álbum como uma carta de despedida. Seja-o ou não, é um último capítulo belíssimo, com fados como “Mariquinhas.com”, “Canção De Vida”, “Bem Disposto, Então Vá” e sobretudo esse monumento para a posteridade que é “Poemas Canhotos”, ao que parece a primeira vez que Herberto Helder é cantado em fado.
Archie Shepp & Jason Moran — Let My People Go (Archieball)
Muito haveria para destacar no jazz e na música instrumental que com ele dialoga. Com marca portuguesa, desde logo, Entre Paredes (Sexteto Bernardo Moreira), The Field (Rodrigo Amado Motion Trio com o pianista Alexander von Schlippenbach) e Intimate Strangers (Sara Serpa com Emannuel Iduma). Com marca sul-africana e brasileira, respetivamente, UMDALI (Malcolm Jiyane Tree-O) e Sankofa (Amaro Freitas). Com marca britânica, Space 1.8 (Nala Sinephro) e a colaboração de Floating Points com Pharoah Sanders e a Orquestra Sinfónica de Londres (Promises). Vindo da Suécia, o eclético mas belíssimo Natura Morta (Sven Wunder). E com marcas polaca e grega, Years From Now (Zenjungle & Valiska).
Dos EUA e da América do Norte também chegaram, claro, discos a reter. Nomeadamente, o improvisado Made Out of Sound (Chris Corsano e Bill Orcutt), a revisão do arquivo da Blue Note Records de Makaya McCraven (Deciphering the Message), o politizado Open the Gates (Irreversible Entanglements) e ainda Tone Poem (Charles Lloyd), Talk Memory (dos canadianos BADBADNOTGOOD), Shadow Plays (Craig Taborn) e Uneasy (Vijay Iyer Trio). Nenhum álbum porém me soa tão premente e tão incisivo quanto este Let My People Go, que junta dois instrumentistas e compositores excecionais: o pianista Jason Moran, mais jovem, e o veterano saxofonista Archie Shepp. São particularmente pungentes as interpretações de “Sometimes I Feel Like a Motherless Child” e “Go Down Moses”, dois temas que remontam à época de escravidão negra nos EUA.
Menções honrosas: “Far In” (Helado Negro), “Private Reasons” (Bruno Pernadas), “For The First Time” (Black Country, New Road), “Manoel” (Sensible Soccers), “Better Way” (Casper Clausen), “Quietly Blowing It” (Hiss Golden Messenger), “Afrique Victime” (Mdou Moctar), “Um Café e a Conta” (Sam the Kid), “Demolition Derby” (Minta & The Brook Trout). E ainda três revelações na música portuguesa: Rita Vian, Silly e Euclides
Isilda Sanches
Anadol — Uzun Havalar (Kinship)
Anadol é um projecto de Gozen Atila, artista turca residente em Berlim, que se divide entre a música e a fotografia. Uzun Havalar foi gravado em 2015, editado inicialmente em cassete e foi ganhando culto ao ponto de merecer lançamento em vinil. É um disco enfeitiçante, que reinventa canções folk do médio oriente em sessões de improvisação com electrónica e vários músicos. O resultado são baladas cósmicas entre o synth pop, o jazz e a música para filmes. Hipnótico e fascinante.
Bruno Pernadas — Private Reasons (Pataca Discos)
Private Reasons é um intrincado mundo de fantasia entre o passado e o futuro. O quarto álbum de Bruno Pernadas é um disco de canções meticulosamente arranjadas, que vão do easy listening à pop psicadélica e afrobeat, com influências orientais e do Brasil e muitas pequenas estranhezas. Um disco dinâmico, luminoso e exuberante, que encanta desde o primeiro momento e confirma Bruno Pernadas como um dos nossos músicos mais imaginativos e virtuosos.
Sault — Nine (Forever Living Originals)
Mesmo sem darem a cara ou tocarem ao vivo, os Sault, projeto liderado pelo londrino Inflo, já provaram que são uma das bandas mais importantes da música actual. Nine, o quinto álbum, reflete sobre a complexidade da vida nos bairros sociais de Londres e as lutas dos seus habitantes, é um retrato de uma realidade que os Sault dizem conhecer bem e traduzem em canções poderosas. Da soul mais acetinada ao jazz e electrónica, Nine é mais um exercício conceptual político-estético dos Sault.
Vanishing Twin — Ookii Gekkou (Fire)
Os Vanishing Twin são um quinteto londrino que se movimenta no universo da pop psicadélica retro futurista, mas que sempre consegue soar mais original do que a descrição pode dar a entender. Ookki Gekkou é o terceiro álbum, mistura, como habitualmente, vários estilos e referências, da space pop, ao jazz ou electrónica experimental, tudo unido pela percussão certeira da baterista Valentina Magaletti. Música pop exploratória, uma banda sonora intergalática para tempos de confinamento.
Little Simz — Sometimes I Might Be Introvert (Age 101 / AWAL)
Sometimes I Might Be Introvert é o quinto álbum de Little Simz, rapper, cantora e atriz britânica de origens nigerianas. Uma mulher consciente de si, da sua história e da sua introversão e capaz de traduzir isso em rimas ágeis. É difícil arrumar o disco numa prateleira, mistura muita coisa, arranjos orquestrais rap, afrobeat, electrónica, soul, jazz. Às vezes é quase excessivo, mas nunca resvala. A produção é de Inflo, o homem dos Sault, projeto com quem Little Simz costuma colaborar.
João Bonifácio
Sault – (NINE) (Forever Living Originals)
Ninguém sabe exatamente quem são os Sault, mas desconfia-se que se trate de uma comunidade de músicos liderada por Inflo, o produtor de Cleo Sol, Michael Kiwanuka e de Little Simz, em que estes três colaboram com o primeiro para criar a mais estranha sedutora, clássica e simultaneamente aventureira música negra dos últimos anos. Tão aventureira que já não existe: (NINE) ficou disponível para compra ou encomenda de vinil no bandcamp da banda e, a 1 de outubro, quando os vinis encomendados foram ser enviados aos que compraram, o disco foi retirado de todos os serviços de streaming e deixará de existir. É quase cruel: primeiro mostram-nos o futuro da música, depois retiram-no. Mas quem ouviu aquelas linhas de baixo, a fusão entre eletrónica e África, aquela combinação de soul e jazz não só não esqueceu como tem a certeza de que (NINE) foi um dos acontecimentos do ano.
Little Simz – Sometimes I Might Be Introvert (Age 101 / AWAL)
Little Simz já merecia ser uma estrela mundial e não apenas um nome bem conhecido dos mais atentos, ou uma presença regular nas listas de candidatos a prémios musicais. Mas se ela pode ser introvertida a sua música não o é de todo: apoiada pelo extraordinário produtor Inflo, Simz faz do hip-hop mais confrontacional e desafiante dos nossos tempos: beats poderosos, linhas de baixo grossas, sintetizadores dementes, coros, violinos luxuosos, flautas, tudo se junta ao redor dos disparos de Simz, que discorre sobre ser negra e mulher em 2021 com uma perícia e coragem e talento apenas ao alcance das eleitas. No dia em que Simz quiser ser uma estrela mundial, basta-lhe criar um par de canções mais fáceis – mas isso não acontecerá, porque ela escolheu ser extraordinária e o capitalismo não vende coisas extraordinárias.
Sarah Mary Chadwick — Me and Ennui Are Friends, Baby (Ba Da Bing!)
Podia fazer-se um elogio de Me and Ennui Are Friends, Baby, de Sarah Mary Chadwick, a nossa nova miserável preferida, enumerando apenas os inúmeros one-liners que ela nos oferece ao longo do disco:
“Every loser needs a mother
Every drunk I’ll make my lover
You’re not special you’re another
Way I give life to my father”
É um exemplo do talento de Sarah para descrever aquele tipo de mulher que surge ao lado da palavra “sarilho” no dicionário. Me and Ennui Are Friends, Baby é uma espécie de diário à guitarra, que por vezes nos provoca vergonha alheia, outras riso ou empatia, é uma sucessão de confissões e reclamações existenciais que vão do sexo gratuito à confissão de uma tentativa de suicídio real. Entre a biografia e a dor, Sarah Mary ergue-se como herdeira de David Berman, “alguém capaz de enunciar a mais tenebrosa metereologia emocional recorrendo às mais inesperadas imagens”, como disse um poeta.
Mdou Moctar – Afrique Victime (Matador)
Talvez isto vos surpreenda, mas no deserto do Saara não há Spotify nem Youtube – a música é carregada em cartões de memória e escutada em telefones. Foram estes cartões que tornaram Mdou Moctar uma estrela graças à sua estranha mistura de solos de guitarra e caixas de ritmo e autotune. Com o tempo, o som de Moctar foi mudando: menos autotune, mais guitarra e que guitarra — arabescos que explodem em torrentes de eletricidade, palma, coros em call-and-response. Ao vivo, o quarteto liderado por Moctar tornou-se uma máquina mecanizada como o meio campo do Liverpool e com a magia dos médios do City – fora de palco ele passa o tempo a abrir poços para as comunidades do Níger, que têm dificuldade no acesso à água. Felizmente, estamos em 2021 e não temos dificuldade nenhuma em aceder à música de Moctar.
Black Country, New Road — For the first time (Ninja Tune)
40 anos após o seu falecimento, o pós-punk tirou as ligaduras, deu uma de Lázaro e agora anda por aí feliz da vida, pelo menos em For the First Time, o primeiro álbum dos Black Country New Road – que são sete músicos que usam uma conjugação incomum de instrumentos (bateria, baixo, teclas, duas guitarras, saxofone e violino) para criarem canções inclassificáveis de seis ou nove minutos: For the First Time é uma espécie de Zelig musical que ora soa a pós-punk ora salta até aos EUA (quando repescam o cajun, música do Louisianna feita com violinos), passam pela pop e, pelo caminho, abraçam o klezmer javarado. O que é isto, quem são estas pessoas, música é esta? Não importa – é tudo tão bom que nenhuma destas perguntas importa.
The Armed – Ultrapop (Sargent House)
Se uma das diversões preferidas dos melómanos é etiquetar a música que se ouve, então Ultrapop, dos The Armed, tem tudo para os deixar de cabeça perdida: isto é metal, é a pop desta nova era proto-fascista, ou uma forma tortura, que consiste em esconder ótimas melodias debaixo de um vórtice de eletricidade psicopata? Pouco indicado para almas e ouvidos sensíveis, Ultrapop rompe barreiras entre géneros e avança a uma velocidade maior que qualquer foguetão e Jeff Bezos – é metálico e industrial, submerso em sintetizadores esgaçados por guitarras estridentes. A voz é abafada por um mil folhas de ruído, e os instrumentos não parecem coordenar-se sob a forma de canção, antes atropelar-se e andar à pancada. Uma admirável banda sonora para serões de natal de famílias disfuncionais.
Luís Freitas Branco
C. Tangana — El Madrileño (Sony Spain)
O carnaval estava montado. Um rapper espanhol de trap manhoso, de providência duvidosa, achou por qualquer delírio que era a pessoa correta para congregar a canção hispânica por inteiro num único álbum: o reggaeton; o flamenco tradicional e alternativo; a rumba; a canção romântica espanhola; a alma de Cuba, México, Porto-Rico, Argentina e arredores; até o coitado do José Feliciano. E ao mesmo tempo, a reclamar que tem demasiado dinheiro e mulheres. Era irresistível testemunhar o desastre. Esta desfeita é que ninguém esperava: o melhor álbum do ano.
Black Country, New Road — For the first time (Ninja Tune)
A sobrevivência do espécime musical jurássico, também conhecido como rock ‘n roll, depende da sua capacidade de adaptação, e sobretudo, de putos ingénuos com a mania. Os Black Country, New Road são a conjugação perfeita destes fatores, uns miúdos de calção que acharam boa ideia, como se a vida fosse assim tão fácil, criar o elo perdido entre o pós-rock e o jazz londrino. E com a lição estudada, sabem que agora só lhes resta queimar tudo e começar de novo – “What we built must fall to the rising flamеs”.
Tyler, the Creator — Call Me If You Get Lost (Columbia)
Há uma década, desafiaram-me pela primeira vez a tamanha incubência, a seleção dos melhores álbuns do ano, e nada me dava mais alento que a grosseria de Tyler, the Creator, o timbre macabro de um agitador da canção. O rapaz fez-se homem, as idiossincrasias floresceram, e estava eu, sempre próximo, na mesma viagem da maioridade, de passaporte em punho. Call Me If You Get Lost é mais uma paragem determinante, com a bagagem do rap de volta, entre o insolente e meloso, e uma garantia que nos deixa descansados: quando quiseres, liga-me.
The Weather Station — Ignorance (Fat Possum / Next Door)
É o álbum mais sorrateiro do ano. O primeiro impacto são as canções grandiosas, os arranjos surpreendentemente sumptuosos, após anos de canções despidas – de resto, Julien Baker e Snail Mail fizeram exatamente o mesmo em 2021. A diferença está no segundo impacto, as canções afinal não têm uma forma aparente, são irrequietas, desamarradas, e Tamara Lindeman fisgou-nos para meditar sobre o colonialismo, as alterações climáticas, e a auto-destruição da humanidade. Spoiler: o futuro não vai ser incrível.
Gisela João — AuRora (Universal Music Portugal)
O fado deve ser tratado com pinças, sem movimentos bruscos. Um passo maior que as pernas é uma heresia, um passo em falso é uma caricatura, e um passo atrás é faduncho. A passada de Gisela João é sempre sensata, o produtor californiano – Michael League – é um enfeite subtil que encobre a única protagonista de AuRora, a voz sem sapato alto, cada vez mais descalça, entregue à cruel verdade do fado: “Bato nas tábuas do palco/ Arranho o joelho e sangro/ Eu não uso salto alto/ Eu calço o soalho e sangro”.